Efeitos e Mecanismos de Ação dos Canabinoides: Uma Jornada pela Ciência da Medicina Endocanabinoide.

Publicado em 22/07/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 11 minutos

Canabinoides

O uso medicinal da cannabis e seus derivados têm ganhado crescente atenção no cenário científico e clínico. Esta planta, utilizada há milênios para diversas finalidades terapêuticas, é hoje objeto de diversos estudos devido à descoberta do sistema endocanabinoide (SEC). Este sistema é crucial na manutenção da homeostase e na regulação de diversas funções fisiológicas. No post de hoje, vamos explorar os efeitos e mecanismos de ação dos canabinoides, elucidando sua importância na medicina contemporânea.

Sistema Endocanabinoide

O sistema endocanabinoide é uma complexa rede de sinalização composta por receptores canabinoides, ligantes endógenos (endocanabinoides) e enzimas responsáveis pela biossíntese e degradação desses compostos. As principais classes de receptores do SEC são os receptores canabinoides tipo 1 (CB1) e tipo 2 (CB2).

Os receptores CB1 são altamente expressos no sistema nervoso central (SNC), especialmente em regiões-chave envolvidas na modulação da nocicepção, memória, controle do apetite e regulação do humor, como o hipocampo, córtex cerebral, gânglios da base e cerebelo. A ativação desses receptores influencia a liberação de neurotransmissores excitatórios e inibitórios, modulando a neurotransmissão e contribuindo para os efeitos neurofisiológicos observados com o uso de canabinoides.¹

Os receptores CB2, por sua vez, são predominantemente encontrados em células do sistema imunológico, incluindo células B, macrófagos e micróglia. A ativação dos receptores CB2 desempenha um papel crucial na modulação de respostas inflamatórias e imunológicas, através da regulação da liberação de citocinas e outros mediadores inflamatórios, sendo um alvo terapêutico promissor para condições inflamatórias e autoimunes.¹

Os endocanabinoides, como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG), são derivados de ácidos graxos poli-insaturados e atuam como ligantes endógenos para os receptores canabinoides. Esses compostos são sintetizados sob demanda a partir de precursores lipídicos presentes nas membranas celulares, permitindo uma resposta rápida e localizada. A anandamida é hidrolisada pela enzima FAAH (amida hidrolase de ácido graxo), enquanto o 2-AG é degradado pela enzima MAGL (monoacilglicerol lipase). Essas enzimas regulam a biodisponibilidade e a sinalização dos endocanabinoides, desempenhando um papel crítico na homeostase do SEC.

Canabinoides: Naturais e Sintéticos

Os canabinoides podem ser classificados em três categorias principais: fitocanabinoides, endocanabinoides e canabinoides sintéticos, cada um com características e funções distintas.

Fitocanabinoides

Os fitocanabinoides são compostos bioativos naturalmente encontrados na planta Cannabis sativa. Entre os mais estudados estão o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). O THC é o principal componente psicoativo da cannabis, responsável pelos efeitos eufóricos e alterações perceptivas. Seu mecanismo de ação inclui a ativação parcial dos receptores CB1, modulando a neurotransmissão dopaminérgica e glutamatérgica no SNC. O CBD, por outro lado, não possui efeitos psicotrópicos e apresenta um perfil farmacológico distinto, atuando como um modulador alostérico negativo dos receptores CB1, agonista parcial dos receptores 5-HT1A e antagonista dos receptores GPR55, o que contribui para seus efeitos ansiolíticos, antiepilépticos e anti-inflamatórios.²

Endocanabinoides

Os endocanabinoides são moléculas lipídicas endógenas, como a anandamida e o 2-AG, que se ligam aos receptores canabinoides para mediar uma variedade de processos fisiológicos. A anandamida, derivada do ácido araquidônico, atua como agonista parcial dos receptores CB1 e CB2, enquanto o 2-AG, um éster glicerol de ácido araquidônico, é um agonista total desses receptores. A sinalização endocanabinoide é essencial para a regulação de funções neurológicas e imunológicas, modulando a liberação de neurotransmissores e respostas inflamatórias diversas.

Canabinoides Sintéticos

Os canabinoides sintéticos são compostos criados em laboratório para imitar ou modular os efeitos dos canabinoides naturais. Esses agentes são desenvolvidos tanto para pesquisa quanto para aplicações terapêuticas específicas. Exemplos de canabinoides sintéticos incluem o dronabinol (THC sintético) e a nabilona, ambos aprovados para uso clínico no tratamento de náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia, e para estimular o apetite em pacientes com síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS). Além disso, os canabinoides sintéticos são utilizados em estudos pré-clínicos para elucidar os mecanismos de ação do SEC e desenvolver novas terapias para uma variedade de condições clínicas.

Mecanismos de ação dos Canabinoides

Os canabinoides, compostos bioativos da planta Cannabis sativa, exercem seus efeitos farmacológicos predominantemente através da interação com os receptores canabinoides CB1 e CB2. Contudo, esses compostos também modulam outros receptores e canais iônicos, influenciando uma vasta gama de processos fisiológicos e patológicos. Abaixo, detalhamos os principais mecanismos de ação dos canabinoides.

Interação com Receptores CB1 e CB2

Os receptores CB1 são amplamente expressos no sistema nervoso central, particularmente em regiões como o córtex cerebral, hipocampo, gânglios da base e cerebelo. A ativação dos receptores CB1 pelos canabinoides, especialmente o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), resulta em uma série de efeitos neurofisiológicos significativos, incluindo neuroproteção, analgesia e redução da ansiedade.¹

Os mecanismos subjacentes a esses efeitos envolvem a modulação da liberação de neurotransmissores. A ativação dos receptores CB1 inibe a liberação de glutamato, um neurotransmissor excitatório, e aumenta a liberação de GABA, um neurotransmissor inibitório, resultando em diminuição da excitabilidade neuronal e aumento da plasticidade sináptica. Além disso, a estimulação dos receptores CB1 pode reduzir a liberação de dopamina, serotonina e norepinefrina, contribuindo para os efeitos ansiolíticos e antidepressivos observados com o uso de canabinoides.

Os receptores CB2 são predominantemente expressos em células do sistema imunológico, como macrófagos, células B e células T. A ativação dos receptores CB2 tem efeitos anti-inflamatórios e imunomoduladores importantes. Esse processo envolve a redução da produção de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1, IL-6 e TNF-α, e a inibição da migração de células imunes para os locais de inflamação. Como resultado, a ativação dos receptores CB2 ajuda a controlar processos inflamatórios e doenças autoimunes, tornando-se um alvo terapêutico promissor para condições inflamatórias crônicas.

Os canabinoides podem se ligar aos receptores canabinoides de diferentes maneiras, produzindo distintos efeitos fisiológicos. Eles interagem com os receptores no sítio ortostérico, onde os ligantes nativos são ligados, e nos sítios alostéricos, que, embora diferentes do ortostérico, têm uma influência significativa na atividade do receptor. Além disso, os receptores canabinoides exibem uma atividade constitutiva, ou seja, uma oscilação natural entre seus estados ativo e inativo, resultando em um nível basal de atividade.³ A natureza da interação entre os canabinoides e os receptores pode classificá-los em diferentes categorias:

  • Agonistas Totais: Produzem a ativação total dos receptores, resultando no máximo efeito possível.
  • Agonistas Parciais: Produzem apenas uma resposta parcial, não atingindo a ativação máxima dos receptores.
  • Antagonistas: Bloqueiam a ligação de outros ligantes ao receptor, mas não reduzem o efeito basal.
  • Agonistas Inversos: Reduzem a atividade do receptor abaixo do nível constitutivo, diminuindo o efeito global.
  • Moduladores Alostéricos Positivos (MAPs): Aumentam a afinidade ou a eficácia dos agonistas, potenciando o efeito do receptor.
  • Moduladores Alostéricos Negativos (MANs): Diminuem a afinidade ou a eficácia dos agonistas, inibindo o efeito do receptor.

Outros Receptores e Canais Iônicos

Além dos receptores canabinoides, os canabinoides interagem com uma variedade de outros receptores e canais iônicos, expandindo seu espectro de ação farmacológica. O receptor vaniloide do tipo 1 (TRPV1) é um canal iônico envolvido na percepção da dor e na regulação da temperatura corporal. O canabidiol (CBD) e outros canabinoides podem atuar como agonistas do TRPV1, ativando esses canais e modulando a percepção da dor. A ativação do TRPV1 pelo CBD está associada a efeitos analgésicos, sendo uma via potencial para o tratamento da dor neuropática e inflamatória.4

O receptor acoplado à proteína G55 (GPR55) é outro alvo relevante para os canabinoides. Embora a função fisiológica completa do GPR55 ainda esteja sendo elucidada, sabe-se que ele está envolvido na modulação da pressão arterial e na regulação do metabolismo ósseo. Estudos indicam que o GPR55 pode atuar como um receptor canabinoide não convencional, e a sua modulação por canabinoides pode influenciar processos como na regulação energética, na reabsorção óssea, no câncer e na dor.5

Os canabinoides também interagem com os receptores de serotonina, particularmente o 5-HT1A. O CBD, por exemplo, tem mostrado afinidade por esses receptores, o que pode explicar parte dos seus efeitos ansiolíticos e antidepressivos. A ativação do receptor 5-HT1A pelo CBD resulta em uma inibição da liberação de neurotransmissores excitatórios, contribuindo para a redução da ansiedade e do estresse, além de melhorar o humor e o bem-estar geral.

Efeitos Clínicos e Terapêuticos

Os mecanismos de ação descritos acima contribuem para os diversos efeitos terapêuticos dos canabinoides, que são explorados em várias condições médicas. Por exemplo:

  • Analgesia: A ativação dos receptores CB1 e TRPV1 resulta em efeitos analgésicos, sendo útil no manejo da dor crônica neuropática e inflamatória.
  • Neuroproteção: Os efeitos neuroprotetores mediados pelos receptores CB1 podem ser benéficos em condições neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer e a esclerose múltipla.
  • Modulação Imunológica: A ativação dos receptores CB2 apresenta potencial terapêutico em doenças inflamatórias e autoimunes, como artrite reumatoide e doença inflamatória intestinal.
  • Efeitos Ansiolíticos e Antidepressivos: A interação com os receptores 5-HT1A e a modulação da liberação de neurotransmissores contribuem para os efeitos ansiolíticos e antidepressivos dos canabinoides, especialmente do CBD.

 

Em resumo, os canabinoides exercem seus efeitos farmacológicos através de uma complexa rede de interações com receptores canabinoides, outros receptores de membrana e canais iônicos. A compreensão detalhada desses mecanismos é essencial para o desenvolvimento de novas terapias baseadas em derivados canabinoides e para a otimização de seus usos clínicos.

Conclusão

Em conclusão, a compreensão aprofundada dos efeitos e mecanismos de ação dos canabinoides revela seu vasto potencial terapêutico na medicina contemporânea. A interação complexa dos canabinoides com os receptores CB1 e CB2, bem como com outros receptores e canais iônicos, demonstra a importância do sistema endocanabinoide na modulação de diversas funções fisiológicas e patológicas. A capacidade dos canabinoides de atuar em múltiplas frentes—desde a analgesia e neuroproteção até a modulação imunológica e efeitos ansiolíticos—abre caminho para o desenvolvimento de novas terapias e a otimização de tratamentos já existentes. Assim, o avanço na pesquisa sobre a medicina endocanabinoide continua a promover inovações significativas e benefícios clínicos substanciais para uma variedade de condições clínicas. Nesse sentido, a WeCann desempenha um papel fundamental ao fornecer informações científicas atualizadas e recursos técnicos qualificados sobre cannabis medicinal para profissionais da área médica. 

Referências

  1. Francischetti, E. A., & Genelhu de Abreu, V. (2006). O Sistema Endocanabinoide: Nova Perspectiva no Controle de Fatores de Risco Cardiometabólico. The Endocannabinoid System: A New Perspective for Cardiometabolic Risk Control. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, RJ. https://doi.org/10.1590/S0066-782X2006001700023
  2. Eigenbrodt, A. K. et al. Diagnosis and management of migraine in ten steps. Nat. Rev. Neurol. 17, 501- 514 (2021).
  3. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  4. Campos AC, Moreira FA, Gomes FV, Del Bel EA, Guimarães FS. Multiple mechanisms involved in the large-spectrum therapeutic potential of cannabidiol in psychiatric disorders. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2012 Dec 5;367(1607):3364-78. doi: 10.1098/rstb.2011.0389. PMID: 23108553; PMCID: PMC3481531.
  5. Wong H, Cairns BE. Cannabidiol, cannabinol and their combinations act as peripheral analgesics in a rat model of myofascial pain. Arch Oral Biol. 2019;104(1):33-9.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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