Segurança e eficácia de dispositivos inaladores de canabinoides

Publicado em 27/08/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 10 minutos

Cannabis como MedicamentoVias de administração

O uso de dispositivos inaladores de derivados canabinoides pode ser uma alternativa terapêutica bastante útil para pacientes que precisam de um alívio rápido de sintomas graves como quadros intensos de dor, náuseas e vômitos incoercíveis e crises de pânico. Esses dispositivos oferecem uma alternativa às outras vias mais comuns de administração de derivados canabinoides, como a ingestão oral ou a aplicação tópica, proporcionando uma absorção mais rápida e potencialmente eficaz dos compostos ativos da cannabis. Por isso, a segurança e a eficácia desses dispositivos têm sido áreas de interesse crescente, tanto de profissionais médicos quanto dos próprios pacientes. Neste post, vamos explorar as evidências científicas sobre o uso de inaladores de derivados canabinoides, abordando aspectos relevantes de segurança e eficácia.

Via Inalatória

Existem três métodos de inalação de produtos derivados da cannabis: fumo, dabbing (inalação de concentrados de cannabis utilizando equipamentos de vidro, conhecidos como pipes ou cachimbos) e uso de dispositivos de vaporização. Cada método apresenta características distintas em termos de farmacocinética, segurança e eficácia, o que afeta diretamente a escolha do método mais apropriado para fins medicinais.

Fumo de cigarros de Cannabis

O fumo é a forma mais conhecida de inalação de cannabis, e também, a mais prejudicial à saúde, devido aos conhecidos riscos associados à combustão. Durante o ato de fumar, a temperatura de combustão do cigarro de cannabis pode variar de 700 a 1200ºC, resultando na produção de mais de 2.000 compostos por pirólise, incluindo substâncias tóxicas e potencialmente cancerígenas, como benzeno, tolueno e monóxido de carbono.¹ Essas temperaturas elevadas também inativam cerca de 30% a 50% dos compostos canabinoides e terpenos presentes na planta, reduzindo o potencial terapêutico dos elementos da planta.² Por todos esses motivos, esse método de inalação de compostos da cannabis não é recomendável para fins medicinais.

Vaporização de E-Liquids de Cannabis

Nos países que também legalizaram o uso adulto de cannabis, a vaporização de e-liquids (soluções líquidas contendo THC ou CBD) tornou-se popular. Embora os solventes utilizados, como glicerina e propilenoglicol, sejam considerados seguros para ingestão, há evidências de que eles liberam subprodutos tóxicos quando aquecidos e inalados, o que pode levar a lesões pulmonares graves  como a EVALI, Lesão Pulmonar Associada ao Uso de Cigarro Eletrônico.5 Devido à falta de regulamentação e aos riscos potenciais à saúde, a vaporização de e-liquids também não é recomendada para fins medicinais.

Vaporização de concentrados de Cannabis

A vaporização de concentrados de cannabis, também conhecida como “dabbing“, é uma técnica de inalação que utiliza equipamentos de vidro de formatos específicos para vaporizar extratos concentrados da planta. Este método envolve o uso de dispositivos de vidro, conhecidos como pipes ou dab rigs, que aquecem o concentrado até que ele se transforme em vapor, que é então inalado. Embora essa técnica reduza a toxicidade da fumaça através da condensação da água, os concentrados frequentemente utilizados contêm contaminantes e concentrações extremamente altas de THC (20-75%), com baixos níveis de CBD.6 Isso pode levar a sintomas agudos e incapacitantes, como ansiedade, paranoia e taquicardia, tornando o dabbing também inadequado para uso medicinal.7

Vaporização da Flor de Cannabis

A vaporização de flores de cannabis é a via de administração inalatória mais segura para uso medicinal. Dispositivos eletrônicos de vaporização aquecem a flor de cannabis a temperaturas controladas (150-350ºC), suficientes para volatilizar os fitocanabinoides sem causar combustão. Isso minimiza significativamente a produção de subprodutos tóxicos e preserva a maioria dos canabinoides e terpenos, apresentando uma muito melhor relação canabinoide/alcatrão em comparação ao fumo.³ Estudos mostram que a vaporização de uma dose padronizada de 0,9 g de uma flor de cannabis com 3,56% de THC pode alcançar níveis plasmáticos médios de THC de 126,1 ng/mL nos primeiros 3 minutos após a inalação, com uma rápida diminuição para 6,4 ng/mL após 60 minutos.4

A pesquisa realizada por Aviram et al. oferece uma análise aprofundada da administração de cannabis medicinal por meio do inalador Syqe, um dispositivo de dosagem precisa que possibilita o uso de baixas doses de Δ9-THC. Este estudo retrospectivo acompanhou 143 pacientes, predominantemente diagnosticados com dor neuropática crônica, ao longo de 15 meses. Os resultados demonstraram uma redução significativa na intensidade da dor, com uma diminuição média de 22,8% a 28,4%, especialmente notável em pacientes com dor intensa (NPS ≥8). Além disso, 92% dos participantes relataram uma melhoria na qualidade de vida, sublinhando a eficácia terapêutica do dispositivo. No que se refere à segurança, os eventos adversos foram majoritariamente leves e ocorreram durante a fase de titulação, com apenas 7% dos pacientes apresentando efeitos psicoativos, como ansiedade. Estes achados indicam que o inalador Syqe não apenas mantém a eficácia analgésica a longo prazo, mas também oferece um perfil de segurança superior em comparação com outras formas de administração de cannabis medicinal, destacando-se como uma opção promissora para o manejo de dores crônicas.8

Outro estudo realizado por Vulfsons et al. explorou a viabilidade e segurança do uso do inalador Syqe® em pacientes hospitalizados que faziam uso de cannabis medicinal. O dispositivo, que permite a administração precisa de fitocanabinoides, incluindo, tetrahidrocanabinol em doses controladas, foi avaliado em termos de redução da dor, satisfação dos pacientes e usabilidade no ambiente hospitalar. Com uma dose média diária de 51 mg de flor de cannabis, significativamente menor que a quantidade utilizada antes da hospitalização (1.000 mg), os pacientes experimentaram uma redução substancial na intensidade da dor, caindo de uma média de 7 para 4 na escala visual analógica após o uso do inalador. Além da eficácia analgésica, a alta aceitação do dispositivo foi evidente, com os pacientes reportando uma satisfação média de 6 em 7. O perfil de segurança foi favorável, com poucos efeitos adversos leves, como alguns episódios de tosse, que se resolveram espontaneamente. Esses resultados demonstram que o inalador Syqe® é uma ferramenta eficaz e segura para a administração de cannabis inalada em pacientes hospitalizados, proporcionando controle adequado da dor com doses precisas e significativamente menores e garantindo a satisfação dos pacientes.9

Mecanismos de Ação e Vantagens Terapêuticas

A via de administração inalada proporciona uma entrega rápida e eficiente dos compostos ativos da cannabis ao sistema circulatório. Ao serem inalados, os derivados canabinoides são transportados pelos alvéolos pulmonares diretamente para a corrente sanguínea, evitando a metabolização de primeira passagem hepática, que ocorre quando os canabinoides são ingeridos pela via oral.  Estudos mostram que a biodisponibilidade dos canabinoides inalados varia entre 10-35%². Essa variação depende de diversos fatores, incluindo o tipo de dispositivo inalador utilizado, a técnica de inalação do paciente, a temperatura de vaporização alcançada, e a composição do produto inalado. A via inalatória proporciona um início de ação muito rápido, geralmente perceptível em 1 a 5 minutos, com uma duração média dos efeitos terapêuticos entre 1 a 3 horas.10 Isso torna a inalação particularmente vantajosa para o manejo de condições que requerem alívio imediato, como a dor crônica agudizada, espasmos musculares, náuseas e vômitos e crises de pânico.

A temperatura de vaporização é um fator determinante na eficiência da inalação dos canabinoides. Temperaturas mais baixas (entre 150-350ºC) usadas em vaporizadores evitam a combustão, reduzindo a formação de substâncias tóxicas e preservando os fitocanabinoides e terpenos. Além disso, a composição do produto inalado, incluindo a concentração de THC e CBD, e a presença de outros compostos, também afeta a biodisponibilidade e a eficiência do tratamento.³

Desafios e Considerações

O uso de dispositivos inaladores de canabinoides, apesar de apresentar algumas vantagens terapêuticas, também apresenta uma série de desafios e limitações que devem ser considerados para garantir a segurança e a eficácia da abordagem tratamento. Os profissionais médicos precisam estar cientes de todos esses fatores ao recomendar e orientar a inalação de derivados canabinoides para os seus pacientes.

Ao considerar o uso de dispositivos inaladores de canabinoides, é essencial avaliar cuidadosamente a origem e a composição dos produtos utilizados. Além disso, a educação do paciente é fundamental para o uso seguro e eficaz de dispositivos inaladores de canabinoides. Muitos pacientes podem não estar familiarizados com a técnica correta de inalação ou com as diferenças entre os dispositivos. 

Conclusão

A utilização de dispositivos inaladores de canabinoides oferece uma alternativa promissora para pacientes que necessitam de alívio rápido de sintomas graves. A via inalatória proporciona uma rápida absorção e início de ação dos compostos ativos e uma alta biodisponibilidade, tornando-a especialmente importante para o manejo de condições graves como dor crônica agudizada, espasmos musculares, náuseas e vômitos incoercíveis, e crises de pânico. Os profissionais médicos têm a responsabilidade de educar os pacientes sobre o uso correto dos dispositivos e monitorar continuamente a resposta ao tratamento para ajustar as doses conforme necessário. Ao abordar esses desafios com conhecimento técnico e cuidado, a inalação de canabinoides pode ser uma ferramenta terapêutica valiosa e segura para determinadas situações clínicas. Portanto, é de suma importância que os médicos se mantenham atualizados sobre as melhores práticas para oferecer o melhor cuidado aos seus pacientes. Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel fundamental ao fornecer informações atualizadas e baseadas em evidências científicas sobre a cannabis medicinal, capacitando médicos para que possam ofertar o melhor cuidado aos seus pacientes.

Referências

  1. Lucas, C. J., Galettis, P. & Schneider, J. The pharmacokinetics and the pharmacodynamics of cannabinoids. Br J. Clin. Pharmacol. 84,2477-2482 (2018).
  2. McGilveray, I.J. Pharmacokinetics of Cannabinoids, Pain Res. Manag: 10, 15A-22A (2005).
  3. Hazckamp, A., Ruhaak, R., Zuurman, L,van Gerven, J.& Verpoorte, R. Evaluation of a vaporizing device (Volcano’) for the pulmonary administration of tetrahydrocannabinol. J. Pharm. Sci. 95, 1308- 1317 (2006).
  4. Canada, H. Information for bealth care professionals: cannabis (maribuana, marijuana) and the cannabinoids. (Health Canada Ottawa, 2013).
  5. Kalininskiy, A. et al. E-cigarette, or vaping, product use associated lung injury (EVALI): case series and diagnostic approach. Lancet Respir. Med. 7, 1017- 1026 (2019).
  6. Raber, J. C., Elzinga, S. & Kaplan, C. Understanding dabs: contamination concerns of cannabis concentrates and cannabinoid transfer during the act of dabbing. J. Toxicol. Sci, 40, 797-803 (2015).
  7. Rickner,S.S., Cao, D., Kleinschmidt, K. & Fleming, S A little “dab” will do ya in: a case report of neuro-and cardiotoxicity following use of cannabis concentrates, Clin. Toxicol. 55, 1011-1013 (2017).
  8. Aviram J, Atzmony D, Eisenberg E. Long-term effectiveness and safety of medical cannabis administered through the metered-dose Syqe Inhaler. Pain Rep. 2022 May 17;7(3):e1011. doi: 10.1097/PR9.0000000000001011. PMID: 35620248; PMCID: PMC9116950.
  9. Vulfsons S, Ognitz M, Bar-Sela G, Raz-Pasteur A, Eisenberg E. Cannabis treatment in hospitalized patients using the SYQE inhaler: Results of a pilot open-label study. Palliat Support Care. 2020 Feb;18(1):12-17. doi: 10.1017/S147895151900021X. PMID: 31196236.
  10. Grotenhermen, F. Clinical Pharmacokinetics of Cannabinoids.J.Cannabis Ther: 3, 3-51 (2003).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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