Cannabis no tratamento da Síndrome de Tourette

Publicado em 12/09/24 | Atualizado em 19/09/24 Leitura: 9 minutos

Neurológicas

A Síndrome de Tourette (ST) é uma condição neuropsiquiátrica complexa caracterizada pela presença de tiques motores e vocais. Esses tiques, que são movimentos e sons repetitivos e involuntários, frequentemente surgem na infância e podem persistir na vida adulta, impactando significativamente a qualidade de vida dos pacientes. O tratamento convencional para ST inclui medicamentos antipsicóticos e abordagens comportamentais, que muitas vezes apresentam eficácia limitada e efeitos colaterais indesejados. Esse cenário tem gerado interesse crescente no uso de cannabis como uma alternativa terapêutica. Neste post, iremos explorar as evidências atuais sobre o uso de cannabis para o tratamento da Síndrome de Tourette, analisando os mecanismos de ação, a eficácia e a segurança.

Síndrome de Tourette

A Síndrome de Tourette (ST) é um distúrbio neuropsiquiátrico com início na infância, caracterizado pela presença de tiques motores e vocais. Os tiques são movimentos ou sons repetitivos e involuntários que ocorrem em padrões distintos e frequentemente são precedidos por uma sensação de tensão ou desconforto. A condição pode ter um impacto significativo na vida dos pacientes, interferindo em sua função acadêmica, social e emocional.¹

Além dos tiques, a maioria dos pacientes com ST apresentam comorbidades psiquiátricas, que podem incluir transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), depressão, ansiedade e transtorno do espectro do autismo.² Essas comorbidades podem complicar o diagnóstico e o tratamento, e frequentemente requerem abordagens terapêuticas adicionais.

A fisiopatologia da Síndrome de Tourette ainda não é completamente compreendida. Acredita-se que os tiques ocorram devido a um desequilíbrio nas alças córtico-estriato-tálamo-corticais.¹ Vários sistemas de neurotransmissão estão envolvidos na patogênese da ST, incluindo os sistemas dopaminérgico, GABAérgico, glutamatérgico, serotoninérgico, histaminérgico e endocanabinoide. Essas disfunções neuroquímicas contribuem para a regulação inadequada dos tiques e das comorbidades associadas.¹

Essa síndrome pode ter um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes, afetando sua função acadêmica, social e emocional. Os tiques podem causar estigmatização e isolamento social, levando a problemas de autoestima e dificuldades em interações sociais. Além disso, os pacientes com ST podem enfrentar desafios adicionais relacionados a comorbidades, como dificuldades de aprendizado e problemas comportamentais. O tratamento adequado e o suporte psicológico são essenciais para melhorar a qualidade de vida e promover o bem-estar geral dos pacientes.

Atualmente, não há cura para a Síndrome de Tourette, e o tratamento é multidimensional e visa controlar os sintomas, melhorar a funcionalidade e reduzir o impacto dos tiques na vida do paciente. As opções de tratamento incluem medicamentos antipsicóticos, como haloperidol e risperidona, que visam reduzir a frequência e a severidade dos tiques. Agonistas adrenérgicos, como clonidina e guanfacina, também são utilizados para auxiliar no controle dos sintomas. Além das intervenções farmacológicas, a terapia comportamental, como a terapia de reversão de hábitos, tem sido empregada com frequência em muitos casos.

No entanto, muitos pacientes apresentam resultados limitados e enfrentam efeitos colaterais significativos com esses tratamentos medicamentosos, como ganho de peso, sedação e efeitos extrapiramidais, o que ressalta a necessidade de alternativas terapêuticas. Nesse cenário, a cannabis medicinal emerge como uma opção promissora, oferecendo uma potencial alternativa para o manejo da Síndrome de Tourette.

Sistema Endocanabinoide e Síndrome de Tourette

O Sistema Endocanabinoide (SEC) é um dos sistemas neuromoduladores mais cruciais no corpo humano, desempenhando um papel essencial na regulação da neurotransmissão e na manutenção da homeostase. Os dois principais receptores que medeiam a função do SEC são os receptores canabinoides tipo 1 (CB1) e tipo 2 (CB2). Enquanto os receptores CB1 são predominantemente encontrados no sistema nervoso central (SNC), os receptores CB2 estão localizados principalmente no sistema nervoso periférico e no sistema imunológico.³

Além dos receptores CB1 e CB2, o SEC inclui vários outros receptores, como o receptor acoplado à proteína G 118 (GPR18), GPR55, GPR119 e o receptor de potencial transitório vaniloide 1 (TRPV1). A presença desses receptores em várias regiões do cérebro, especialmente nos gânglios da base, sugere que o SEC desempenha um papel importante no controle motor e na modulação da atividade neuronal. Estudos indicam que o SEC é o sistema neuromodulador mais significativo no cérebro, o que levanta a hipótese de que disfunções neste sistema podem contribuir para distúrbios neurológicos, como a Síndrome de Tourette (ST).4

A relação entre o SEC e a Síndrome de Tourette é respaldada por evidências que sugerem que alterações na neurotransmissão endocanabinoide podem estar associadas à manifestação dos tiques. Um estudo recente realizado por Müller-Vahl et al. analisou os níveis de endocanabinoides no líquido cefalorraquidiano (LCR) de pacientes adultos com ST em comparação com controles. Os resultados mostraram níveis significativamente elevados de vários endocanabinoides, incluindo anandamida (AEA), 2-araquidonoilglicerol (2-AG), palmitoiletanolamida (PEA) e ácido araquidônico (AA), em pacientes com ST.5

Esses achados sugerem que os níveis elevados de endocanabinoides podem refletir uma tentativa de compensar alterações em outros sistemas neurotransmissores, como o sistema dopaminérgico, ou poderiam representar uma causa primária para a ST. Essa hipótese é consistente com a ideia de que a disfunção no SEC pode contribuir para a regulação inadequada da neurotransmissão, levando à manifestação dos tiques típicos da Síndrome de Tourette.5

Evidências Científicas 

O nabiximols, comercializado sob o nome Sativex®, é um produto que combina THC e CBD em um spray bucal. Embora inicialmente desenvolvido para a espasticidade associada à esclerose múltipla, a combinação equilibrada de CBD e THC demonstra ser também promissora para pacientes com ST. Trainor et al. (2016) descreveram o caso de um paciente de 26 anos com ST grave que apresentou uma redução significativa dos tiques motores (85%) e vocais (90%) após quatro semanas de tratamento com nabiximols, na dose de 2 puffs 2x/dia (10.8 mg de THC e 10 mg de CBD). O paciente também mostrou uma melhora de 35% na Escala de Tiques da Síndrome de Tourette (YGTSS-TTS), sem efeitos adversos relatados.6

Jakubovski et al. (2019) relataram o caso de um homem de 19 anos com ST complexa, incluindo tiques de bloqueio vocal e palilalia. Após iniciar o tratamento com cannabis medicinal vaporizada (Bedrocan®, contendo 22% de THC e 1% de CBD), com uma dose inicial de 0.1 g/dia aumentada para 0.6 g/dia, o paciente mostrou uma melhora acentuada nos tiques de bloqueio e uma significativa melhoria na qualidade de vida.7 

Em um estudo randomizado, duplo-cego e controlado por placebo conduzido por Müller-Vahl et al. (2002), foram administradas doses orais de THC (5, 7.5 ou 10 mg) a 12 pacientes com ST. O tratamento com THC resultou em uma redução significativa dos tiques e das comorbidades associadas, como transtornos obsessivo-compulsivos (TOC). Efeitos colaterais como cefaleia, náusea e tontura foram relatados, mas foram considerados leves a moderados.8

Entenda mais sobre a segurança dos canabinoides em terapias de longo prazo aqui: Segurança dos Canabinoides em terapias a longo prazo (wecann.academy)

Conclusão

O uso de cannabis no tratamento da Síndrome de Tourette representa uma abordagem terapêutica inovadora que, embora ainda esteja em desenvolvimento, oferece perspectivas promissoras. As evidências atuais indicam que a cannabis pode reduzir significativamente a frequência e a severidade dos tiques motores e vocais, oferecendo uma alternativa viável e complementar às terapias convencionais, que frequentemente têm eficácia limitada e efeitos colaterais indesejáveis. Contudo, é essencial que mais pesquisas sejam realizadas para elucidar em mais detalhes os mecanismos de ação da cannabis, bem como, a segurança e eficácia a longo prazo dessa terapia. 

É fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem informações tecnicamente qualificadas sobre as terapêuticas à base de cannabis. Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel essencial ao fornecer conteúdos técnicos de qualidade, sempre baseados em rigor científico, contribuindo para a incorporação segura da cannabis medicinal na prática médica e promovendo uma abordagem mais assertiva e personalizada no manejo de pacientes portadores de transtornos crônicos, refratários e incapacitantes.

Referências

  1. SZEJKO, Natalia; SARAMAK, Kamila; LOMBROSO, Adam; MÜLLER-VAHL, Kirsten. Cannabis-based medicine in treatment of patients with Gilles de la Tourette syndrome. Neurologia i Neurochirurgia Polska (Polish Journal of Neurology and Neurosurgery), v. 56, n. 1, p. 28-38, 2022. DOI: 10.5603/PJNNS.a2021.0081. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34708399. Acesso em: 24 ago. 2024.
  2. GREYDANUS, D., TULLIO, J.. Tourette’s disorder in children and adolescents. Translational Pediatrics, North America, 9, nov. 2019. Available at: <https://tp.amegroups.org/article/view/31560>. Date accessed: 26 Aug. 2024.
  3. Tratado
  4. Lu HC, Mackie K. Review of the endocannabinoid system. Biol Psychiatry Cogn Neurosci Neuroimaging. 2021; 6(6): 607–615, doi: 10.1016/j.bpsc.2020.07.016, indexed in Pubmed: 32980261.
  5. Müller-Vahl KR, Bindila L, Lutz B, et al. Cerebrospinal fluid endocannabinoid levels in Gilles de la Tourette syndrome. Neuropsychopharmacology. 2020; 45(8): 1323–1329, doi: 10.1038/s41386-020-0671-6, indexed in Pubmed: 32272483.
  6. Trainor D, Evans L, Bird R. Severe motor and vocal tics controlled with Sativex®. Australas Psychiatry. 2016; 24(6): 541–544, doi: 10.1177/1039856216663737, indexed in Pubmed: 27558217.
  7. Jakubovski E, Müller-Vahl K. Speechlessness in Gilles de la Tourette syndrome: cannabis-based medicines improve severe vocal blocking tics in two patients. Int J Mol Sci. 2017; 18(8), doi: 10.3390/ijms18081739, indexed in Pubmed: 28796166.
  8. Müller-Vahl KR, Schneider U, Koblenz A, et al. Treatment of Tourette’s syndrome with Delta 9-tetrahydrocannabinol (THC): a randomized crossover trial. Pharmacopsychiatry. 2002; 35(2): 57–61, doi: 10.1055/s-2002-25028, indexed in Pubmed: 11951146.

 

Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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