A endometriose e a adenomiose são condições ginecológicas crônicas que causam dor significativa e impactam profundamente a qualidade de vida das mulheres. Ambas estão associadas a processos inflamatórios, alterações hormonais e envolvimento do sistema nervoso central na modulação da dor. O canabidiol, um composto não psicotrópico da planta Cannabis sativa, tem emergido como uma alternativa terapêutica promissora para o alívio da dor e a modulação dos sintomas associados a essas condições. Neste post, vamos explorar o potencial terapêutico do canabidiol no alívio das dores causadas pela endometriose e adenomiose.
Endometriose
A endometriose é uma condição ginecológica crônica caracterizada pela presença de tecido semelhante ao endométrio fora da cavidade uterina, afetando principalmente ovários, peritônio e ligamentos útero-sacros. Essa doença inflamatória está associada a dor pélvica severa, infertilidade e, frequentemente, a um impacto profundo na qualidade de vida das pacientes. A dor causada pela endometriose é multifatorial, envolvendo processos inflamatórios crônicos, inervação aberrante e fenômenos neuropáticos, além de alterações anatômicas devido à formação de aderências. Esses mecanismos contribuem para manifestações como dismenorreia, dispareunia, dor pélvica crônica e disúria, que variam em intensidade e frequência, desafiando a individualização do manejo clínico.¹
A dor crônica da endometriose afeta diversas dimensões da vida das pacientes, indo além do desconforto físico. No aspecto psicológico, é comum que as pacientes apresentem altas taxas de ansiedade, depressão e insônia, diretamente relacionadas à gravidade da dor.¹ No âmbito social, a dispareunia e a necessidade de abstinência sexual frequentemente comprometem relacionamentos interpessoais. Já no funcional, as crises de dor podem resultar em ausência no trabalho ou na escola, gerando prejuízos econômicos e acadêmicos. Além disso, a dor constante limita atividades cotidianas, reduzindo significativamente a percepção de bem-estar geral.¹
O manejo da endometriose exige uma abordagem multidisciplinar por parte dos médicos, começando pelo controle da dor com terapias hormonais, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) e analgésicos neuropáticos. Em casos refratários, a intervenção cirúrgica pode ser necessária, com foco na excisão de lesões e restauração anatômica. Apoio psicossocial, incluindo terapias comportamentais e grupos de apoio, é fundamental para lidar com o impacto emocional. Além dessas estratégias, avanços recentes apontam para novas alternativas terapêuticas, como o uso de canabinoides, que têm demonstrado potencial promissor no manejo da dor crônica associada à endometriose.
Adenomiose
A adenomiose é uma condição ginecológica caracterizada pela presença de tecido endometrial ectópico infiltrando o miométrio, resultando em uma reação inflamatória crônica e hipertrofia uterina. Essa doença está frequentemente associada a dor pélvica crônica, dismenorreia severa, sangramentos menstruais abundantes (menorragia) e infertilidade, impactando significativamente a qualidade de vida das pacientes. ²
A dor associada à adenomiose tem origem em múltiplos mecanismos fisiopatológicos. A invasão do miométrio por tecido endometrial ectópico desencadeia uma resposta inflamatória que envolve a liberação de citocinas pró-inflamatórias e prostaglandinas, contribuindo para a sensibilidade aumentada e a dor intensa. Além disso, a hipertrofia miometrial e as alterações na contratilidade uterina exacerbam os sintomas dolorosos, especialmente durante o ciclo menstrual. Esse quadro doloroso crônico frequentemente interfere na funcionalidade das pacientes, limitando atividades diárias, relações sociais e profissionais.²
O impacto da adenomiose na qualidade de vida vai além do desconforto físico. A dor persistente é frequentemente acompanhada de altos níveis de ansiedade e depressão, que se correlacionam com a intensidade dos sintomas. Além disso, o sangramento excessivo pode levar à fadiga crônica e à anemia, agravando ainda mais o comprometimento do bem-estar geral. Do ponto de vista social, a redução da capacidade de trabalho e a dificuldade em manter relações interpessoais, especialmente pela dispareunia, são aspectos frequentemente relatados por pacientes com adenomiose.²
O manejo da adenomiose, assim como o da endometriose, exige uma abordagem multidisciplinar. O tratamento inicial inclui o uso de terapias hormonais, como agonistas do GnRH, DIU liberador de levonorgestrel e contraceptivos orais combinados, que visam reduzir a dor e o sangramento. Analgésicos, incluindo anti-inflamatórios não esteroides, também são frequentemente utilizados. Nos casos mais graves ou refratários, opções cirúrgicas, como a adenomiomectomia ou, em última instância, a histerectomia, podem ser necessárias. Além disso, o suporte psicossocial é essencial para abordar os impactos emocionais e funcionais associados à doença.²
Reconhecer a complexidade da dor na adenomiose e seu impacto multidimensional é fundamental para o manejo clínico eficaz. Ao adotar uma abordagem integrada e centrada na paciente, os médicos podem não apenas aliviar os sintomas físicos, mas também melhorar substancialmente a qualidade de vida dessas mulheres.
O uso do canabidiol (CBD) tem emergido como uma abordagem promissora no manejo da dor associada à adenomiose, especialmente em pacientes que não respondem bem às terapias convencionais. O CBD atua principalmente através da modulação do sistema endocanabinoide, regulando a liberação de neurotransmissores e citocinas envolvidas nos processos inflamatórios e na sensibilização da dor. Além disso, o CBD apresenta propriedades analgésicas e anti-inflamatórias, reduzindo a produção de prostaglandinas e atenuando a inflamação no tecido miometrial.³
Sistema endocanabinoide e endometriose e adenomiose
O sistema endocanabinoide (SEC) exerce um papel crucial na regulação de diversos processos fisiológicos do sistema reprodutor feminino, sendo particularmente relevante em condições como endometriose e adenomiose. Componentes do SEC, como os receptores CB1 e CB2, estão estrategicamente distribuídos em órgãos reprodutivos, incluindo os ovários e o endométrio, onde desempenham funções essenciais na maturação dos ovócitos, desenvolvimento folicular, ovulação e decidualização endometrial, processos fundamentais para a fertilidade e a homeostase uterina. Alterações no funcionamento desse sistema têm sido associadas à patogênese de doenças ginecológicas caracterizadas por inflamação crônica e dor persistente.³
O SEC é composto por receptores canabinoides (principalmente CB1 e CB2), ligantes endógenos (endocanabinoides como anandamida e 2-AG) e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses ligantes.³ A ativação do receptor CB2 tem sido associada à redução da liberação de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1β e TNF-α, enquanto o CB1, amplamente expresso no sistema nervoso periférico e central, desempenha um papel crítico na modulação da dor neuropática e inflamatória.
Além disso, a interação do SEC com fatores angiogênicos sugere que ele pode influenciar diretamente a formação de novos vasos sanguíneos nas lesões endometrióticas. A angiogênese é um processo fundamental na patogênese da endometriose, promovido por fatores como VEGF e HIF-1α, que são superexpressos em lesões ectópicas. O CBD apresenta propriedades antiangiogênicas bem documentadas, capazes de inibir a expressão de VEGF e COX-2, suprimindo a formação de novos vasos sanguíneos e limitando a densa vascularização, característica das lesões endometrióticas. Ao reduzir a hipóxia tecidual e a produção de mediadores angiogênicos, o CBD pode interferir diretamente no crescimento e na sustentação das lesões endometrióticas.4
Pesquisas têm demonstrado uma redução expressiva na expressão dos receptores CB1 e CB2 em glândulas e células estromais de lesões adenomióticas e endometrióticas, em comparação ao endométrio eutópico de pacientes e controles saudáveis. Essa diminuição nos receptores, possivelmente relacionada a um mecanismo de feedback negativo, pode ser uma resposta ao aumento dos níveis de endocanabinoides circulantes, como a anandamida (AEA). No entanto, esse desequilíbrio prejudica os efeitos anti-inflamatórios mediados pelo SEC, contribuindo para o ambiente pró-inflamatório e a perpetuação da dor característica da adenomiose.5
Além disso, o aumento da expressão de receptores CB2 em células imunológicas dessas pacientes sugere um esforço compensatório para combater a inflamação. A expressão elevada de TRPV1, um receptor relacionado à transmissão de estímulos dolorosos, tem sido associada à dor pélvica crônica, indicando sua relevância na fisiopatologia da doença e seu potencial como alvo terapêutico.6
Ademais, estudos apontam uma redução nas enzimas catabólicas FAAH, NAPE-PLD, MAGL e DAGL em tecidos adenomióticos, o que resulta em uma degradação mais lenta de endocanabinoides como a AEA. Esse acúmulo de AEA, embora inicialmente possa sugerir um efeito protetor, não é suficiente para contrabalançar a redução dos receptores canabinoides, exacerbando o quadro inflamatório local.7
A abordagem do SEC como alvo terapêutico para a endometriose e adenomiose oferece uma perspectiva inovadora para o manejo dessas doenças, atuando simultaneamente em múltiplos mecanismos patológicos. Evidências sugerem que os canabinoides podem exercer efeitos antiestrogênicos, reduzir o estresse oxidativo e a fibrose, inibir a angiogênese exacerbada e modular a apoptose celular e a decidualização estromal. Além disso, os compostos derivados da cannabis têm demonstrado benefícios na redução da dor e na gestão de sintomas associados, como ansiedade, depressão e distúrbios do sono, melhorando significativamente a qualidade de vida das pacientes. 3
Evidências científicas
Estudos indicam que mulheres com endometriose têm até quatro vezes mais chances de recorrer ao uso excessivo de analgésicos, incluindo opioides, o que pode levar à dependência e abuso de medicamentos. Nesse contexto, a cannabis medicinal surge como uma alternativa promissora, oferecendo uma nova abordagem para o manejo da dor, inflamação, distúrbios do sono e sintomas emocionais associados à doença.8
Para saber mais sobre o uso da Cannabis no tratamento de dores crônicas acesse: Cannabis no manejo da Dor Crônica – WeCann Academy
Em um esforço para expandir as opções terapêuticas, pesquisadores têm investigado o potencial do canabidiol para o manejo da endometriose. Recentemente, um estudo que analisou dados de amostras de pacientes e ensaios em animais, além de uma revisão da farmacocinética dos produtos de CBD disponíveis, sugeriu que o CBD possui propriedades promissoras para o alívio da dor e de outros sintomas associados à endometriose.9
O estudo destacou como o CBD interage com múltiplos alvos moleculares envolvidos na patogênese da endometriose, incluindo vias que influenciam a formação e o crescimento das lesões endometriais. A atividade do CBD sobre esses alvos pode fornecer um alicerce para novos tratamentos direcionados à regulação dos sintomas da endometriose. A análise, porém, também apontou que são necessários mais estudos para determinar quais dos mecanismos de ação do CBD são mais eficazes no controle da dor e de outros sintomas comórbidos, como distúrbios gastrointestinais e distúrbios de humor. Esses achados reforçam a necessidade de uma investigação mais profunda para esclarecer a eficácia do CBD e otimizar suas aplicações clínicas.9
O feedback das pacientes também revelou informações positivas sobre o uso do CBD. De acordo com os relatos, os produtos à base de CBD foram bem tolerados e apresentaram impactos favoráveis tanto na dor quanto nos sintomas associados, como distúrbios do sono e alterações no humor. Esses resultados indicam que o CBD pode não apenas ser eficaz no controle da dor, mas também no manejo de aspectos psicológicos e físicos frequentemente associados à endometriose. Além disso, o CBD demonstrou efeitos analgésicos, anti-inflamatórios, imunomoduladores, antiangiogênicos, antiproliferativos e neuroprotetores, o que reforça sua perspectiva como agente terapêutico promissor nessa condição.9
Estudos conduzidos na Europa, envolvendo mais de 900 mulheres da Alemanha, Suíça e Áustria, revelaram que 17% das pacientes com endometriose usaram cannabis para aliviar seus sintomas. Essa percentagem reflete não apenas o interesse crescente pelo uso medicinal da planta, mas também sua eficácia relatada no manejo de aspectos como sono (91%), dor menstrual (90%) e dor pélvica não cíclica (80%). Notavelmente, 90% das pacientes que utilizaram cannabis relataram uma redução significativa na dependência de analgésicos, com quase metade obtendo uma redução superior a 50%.10
Além de seu potencial analgésico, a cannabis mostrou benefícios psicológicos para as pacientes. Cerca de 75% das mulheres com ansiedade ou humor deprimido relataram melhorias consideráveis após o uso de cannabis. Esse efeito é atribuído à interação dos compostos da planta, como o THC e o CBD, com o sistema endocanabinoide, que desempenha um papel fundamental na modulação da dor, inflamação e humor. Essa interação pode ajudar a explicar por que a cannabis tem se mostrado eficaz não apenas no alívio dos sintomas físicos da endometriose, mas também no aumento da qualidade de vida geral das pacientes.10
Apesar desses resultados promissores, a pesquisa também destaca as limitações atuais no acesso à cannabis medicinal e a necessidade de estudos adicionais. Os autores enfatizam que mais investigações são necessárias para determinar a melhor via de administração, dosagem adequada, proporção ideal entre THC e CBD e possíveis efeitos a longo prazo. Além disso, o interesse dos pacientes em produtos à base de cannabis é notável: 80% das pacientes que nunca utilizaram cannabis expressaram interesse em produtos de CBD, e 60% demonstraram abertura ao uso de produtos com THC, especialmente se prescritos por médicos.10
Esses achados reforçam a cannabis como uma ferramenta potencial em uma abordagem multimodal para o tratamento da endometriose e adenomiose. Apesar dessas descobertas preliminares, ainda são necessárias evidências robustas provenientes de ensaios clínicos controlados randomizados para confirmar os benefícios clínicos do CBD e avaliar seus potenciais efeitos colaterais. Com a expectativa de que os resultados de testes em andamento possam esclarecer essas questões nos próximos dois a três anos, a pesquisa em torno do CBD continua a avançar, oferecendo uma nova perspectiva para pacientes que buscam alternativas terapêuticas seguras e eficazes.
Conclusão
O uso do canabidiol no alívio da dor causada pela endometriose e adenomiose representa uma abordagem terapêutica inovadora e promissora, especialmente para pacientes que não respondem adequadamente às terapias convencionais. A interação do CBD com o sistema endocanabinoide pode modular diversos processos inflamatórios, reduzir a angiogênese e minimizar os efeitos da dor neuropática e inflamatória, proporcionando alívio significativo aos sintomas dessas condições.
Estudos emergentes reforçam a importância de considerar o CBD como uma alternativa eficaz, ajudando a melhorar a qualidade de vida das pacientes ao atenuar não apenas a dor, mas também os impactos emocionais e funcionais. Embora mais pesquisas sejam necessárias para consolidar sua eficácia e segurança a longo prazo, o CBD representa uma opção promissora no manejo da dor crônica associada à endometriose e adenomiose.
Manter-se atualizado sobre as opções terapêuticas para endometriose e adenomiose é essencial para que os médicos ofereçam mais opções de tratamentos eficazes e baseados em evidências a essas pacientes. Nesse contexto, a WeCann se destaca como uma importante parceira da comunidade médica, fornecendo suporte na tomada de decisões clínicas fundamentadas em ciência. Através de recursos técnicos, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a instituição capacita os profissionais médicos a explorar o potencial terapêutico dos canabinoides no manejo de condições clínicas complexas. Essa abordagem permite que os médicos integrem essas terapias de forma segura, ética e alinhada às mais recentes descobertas científicas.
Referências
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