Cannabis Medicinal: Interações medicamentosas e os cuidados que todos médicos devem ter

Publicado em 12/09/25 | Atualizado em 12/09/25 Leitura: 10 minutos

Cannabis como MedicamentoEducação MédicaSem categoria

Com a crescente adoção da cannabis medicinal em diversos protocolos terapêuticos, a compreensão das suas interações farmacológicas torna-se uma competência clínica fundamental. Embora a pesquisa pré-clínica, sobretudo os estudos in vitro, aponte para um vasto potencial de interações, a evidência em ensaios clínicos é ainda limitada, gerando um desafio na extrapolação dos achados para a prática diária. 

No post de hoje vamos explorar sobre os mecanismos de interações medicamentosas com canabinoides, destacando os casos clínicos mais importantes e a necessidade de uma conduta segura para pacientes em polifarmácia.

Mecanismos Farmacocinéticos e a Via do Citocromo P450

Para compreender a fundo as interações entre canabinoides e outros fármacos, é fundamental entender o papel das enzimas do citocromo P450 (CYP). As CYPs são hemoproteínas ligadas à membrana que desempenham um papel central no metabolismo de uma vasta gama de substâncias, tanto endógenas quanto exógenas (xenobióticos). Elas são essenciais para a desintoxicação e a homeostase celular, e sua atividade pode ser modulada por indução ou inibição.¹

Essa regulação é a base das interações medicamentosas. A inibição enzimática é um mecanismo chave, onde um fármaco pode reduzir a capacidade de uma enzima CYP de metabolizar outro, levando ao acúmulo da segunda substância no organismo. Por outro lado, a indução pode acelerar o metabolismo, diminuindo a eficácia terapêutica de um medicamento. A compreensão dos substratos, indutores e inibidores das isoformas do CYP é, portanto, um auxílio crucial para que médicos possam determinar a melhor estratégia terapêutica e dosagem de medicamentos.¹

As interações farmacocinéticas entre canabinoides e outros fármacos são predominantemente mediadas por essa via. Substâncias como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) são metabolizadas por múltiplas isoenzimas CYP, mas também atuam como inibidores e, em menor grau, indutores de algumas delas. Essa dualidade é a chave para a maioria das interações clinicamente relevantes.²

Por exemplo, o CBD é um potente inibidor da CYP2C19. Já o THC é conhecido por inibir a CYP2C9. Essa característica faz com que eles sejam agentes capazes de modificar a farmacocinética de outros medicamentos que compartilham essas mesmas vias metabólicas, exigindo uma vigilância clínica cuidadosa.²

Evidências das interações medicamentosas

Apesar da raridade de interações graves em estudos de prática clínica, a literatura médica já consolidou alguns casos com relevância comprovada que exigem atenção. Estes exemplos servem como um guia prático para a gestão da polifarmácia com canabinoides, destacando tanto os riscos quanto às oportunidades de otimização terapêutica.

Clobazam

Esta é uma das interações farmacológicas mais bem documentadas. O clobazam, um antiepiléptico, é extensivamente metabolizado em seu principal metabólito ativo, o N-desmetilclobazam (N-CLB), pela enzima CYP3A4. O N-CLB, por sua vez, é subsequentemente inativado pela CYP2C19. Devido à sua potente ação inibitória sobre a CYP2C19, o CBD eleva significativamente os níveis séricos de N-CLB, o que pode resultar em aumento de efeitos adversos, como sedação e sonolência.³ 

No entanto, é importante notar que essa interação permitiu, em ensaios clínicos, a redução da dose de clobazam sem perda da eficácia anticonvulsivante. Isso transforma a interação em uma ferramenta de otimização, permitindo a manutenção dos efeitos terapêuticos primários com menor carga medicamentosa.³

Ácido Valpróico (Valproato de Sódio)

Um estudo com pacientes pediátricos demonstrou uma correlação entre o uso concomitante de CBD e ácido valproico e a ocorrência de trombocitopenia. Nove crianças em terapia combinada apresentaram contagem de plaquetas reduzida, um achado ausente em pacientes que utilizavam apenas CBD. Além disso, foram observadas alterações nos testes de função hepática. Este caso ressalta a necessidade de um monitoramento contínuo e cuidadoso das funções hepática e hematológica em pacientes que combinam esses dois medicamentos.4

Varfarina

O THC pode inibir a enzima CYP2C9, uma via metabólica crítica não apenas para a varfarina, mas para diversos outros fármacos. Relatos de caso sugerem que o uso de canabinoides pode elevar o INR (Razão Normalizada Internacional) em pacientes em uso de varfarina, aumentando o risco de sangramento. A potencial gravidade dessa interação exige extrema cautela e monitoramento frequente dos parâmetros de coagulação, bem como atenção a outros medicamentos metabolizados por essa mesma via.5

No entanto, é fundamental mencionar que a literatura não apresenta um consenso absoluto. Apesar dos relatos de caso, estudos com medicamentos anticoagulantes semelhantes à varfarina não encontraram essa correlação estatisticamente significativa, o que sugere a complexidade da farmacocinética do THC e sua interação com outras variáveis. Isso reforça a necessidade de cautela e de um monitoramento individualizado e frequente dos parâmetros de coagulação.6

Grupos de Risco e a Estratégia de Monitoramento

Determinados grupos de pacientes exigem atenção redobrada. Pacientes em polifarmácia, idosos (devido à fragilidade e comorbidades), portadores de câncer ou imunossuprimidos são mais suscetíveis a interações adversas.

Ao considerar a polifarmácia, é fundamental dar atenção especial à coadministração de canabinoides com potentes inibidores das isoenzimas CYP2C9, CYP2C19 ou CYP3A4. Essa combinação pode resultar em um aumento significativo dos níveis séricos de CBD, THC e seus principais metabólitos, elevando o risco de efeitos adversos.7 O artigo de Kocis & Vrana (2020), da Universidade da Pensilvânia, reforça esse alerta ao mapear uma lista de 57 medicamentos com índice terapêutico estreito (ITE) que são potencialmente impactados por canabinoides. Essa lista serve como um guia clínico importante.8

Para ter acesso ao artigo completo acesse: Delta-9-Tetrahydrocannabinol and Cannabidiol Drug-Drug Interactions – PubMed

A compreensão do perfil metabólico do paciente é uma etapa indispensável na prescrição de cannabis medicinal. O conhecimento sobre as interações potenciais com inibidores enzimáticos específicos permite ao médico ajustar doses, monitorar com maior precisão e, se necessário, considerar alternativas terapêuticas. Essa abordagem proativa é fundamental para garantir a segurança e a eficácia do tratamento, minimizando os riscos associados à acumulação indesejada de canabinoides no organismo.

As principais interações medicamentosas dos derivados canabinoides que têm demonstrado relevância clínica na prática médica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
As principais interações medicamentosas dos derivados canabinoides que têm demonstrado relevância clínica na prática médica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
As principais interações medicamentosas dos derivados canabinoides que têm demonstrado relevância clínica na prática médica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
As principais interações medicamentosas dos derivados canabinoides que têm demonstrado relevância clínica na prática médica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

Dicas para a prática clínica

Apesar de as interações medicamentosas com canabinoides raramente se manifestarem de forma grave, elas não devem ser subestimadas. A limitada informação sobre o perfil farmacocinético e farmacodinâmico dos produtos disponíveis no mercado exige uma abordagem cautelosa e bem planejada na prática clínica.

Para garantir a segurança e otimizar os resultados, é fundamental:

  • Iniciar com doses baixas e realizar uma titulação gradual: Isso permite observar a resposta do paciente e identificar precocemente qualquer sinal de interação.
  • Monitorar de perto a evolução clínica: Acompanhe a melhora dos sintomas, o surgimento de efeitos adversos e possíveis sinais de toxicidade, ajustando o tratamento conforme necessário.
  • Priorizar o monitoramento em casos de alto risco: Dê atenção especial a medicamentos com índice terapêutico estreito (ITE), como a varfarina e os antiepilépticos, e a pacientes em grupos de risco elevado.

 

Para saber mais sobre potenciais efeitos adversos da terapêutica à base de cannabis clique aqui: Os efeitos colaterais da cannabis medicinal e como lidar com eles

Ao adotar essa abordagem baseada em evidências, rigorosa e vigilante, o médico pode não apenas mitigar os riscos, mas também potencializar os benefícios da terapia com cannabis, tornando-a um complemento valioso na otimização dos protocolos terapêuticos.

Conclusão

A jornada no campo da cannabis medicinal nos mostra que a prática clínica vai muito além da prescrição. Trata-se de uma medicina de precisão, que exige do profissional não apenas o conhecimento dos mecanismos farmacológicos, mas também uma vigilância ativa e individualizada. As evidências de interações medicamentosas, potencialmente relevantes, servem como um lembrete de que a cautela e o monitoramento são essenciais, especialmente em pacientes com condições complexas.

Ao mesmo tempo, é impossível ignorar o impacto positivo que a cannabis tem na vida de muitos pacientes. Para aqueles que não encontram alívio em terapias convencionais, essa ferramenta pode representar uma nova esperança, aliviando quadros de dores crônicas, controlando crises convulsivas e melhorando a qualidade de vida de diversos pacientes com quadros clínicos refratários e incapacitantes. Portanto, a capacitação médica nessa área não é apenas uma necessidade técnica, mas um ato de compaixão. Estar preparado para oferecer a melhor terapêutica significa ter a capacidade de mitigar riscos e, acima de tudo, potencializar os benefícios de uma terapia que tem o poder de transformar vidas.

Descubra como o Tratado de Medicina Endocanabinoide pode transformar sua prática clínica.

A ciência avança, e com ela, o uso da cannabis medicinal em diversas patologias. Mas essa evolução traz um novo desafio para o médico: as interações medicamentosas. Este post desvenda um aspecto importante da farmacologia dos canabinoides, mostrando que a terapia com cannabis não atua sozinha. Ela pode impactar o metabolismo e a segurança de outros medicamentos do paciente.

Neste cenário, a WeCann surge como uma aliada estratégica da comunidade médica, oferecendo formação baseada em evidências e ferramentas práticas para integrar o conhecimento sobre o SEC à prática clínica. Entre esses recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, uma obra técnico-científica de referência internacional, que capacita médicos a compreender e aplicar com segurança os canabinoides em condições clínicas complexas, incluindo distúrbios metabólicos e inflamação crônica.

Se você é um profissional da saúde que busca atuar de forma ética, atualizada e centrada no paciente, o acesso ao Tratado de Medicina Endocanabinoide é um passo decisivo para transformar sua abordagem terapêutica.

Referências

  1. Manikandan P, Nagini S. Cytochrome P450 Structure, Function and Clinical Significance: A Review. Curr Drug Targets. 2018;19(1):38-54. doi: 10.2174/1389450118666170125144557. PMID: 28124606.
  2. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  3. Gunning, B. et al. Cannabidiol in conjunction with clobazam: analysis of four randomized controlled trials. Acta Neurol. Scand. 143, 154-163 (2021).
  4. Gaston, T. E. et al. Interactions between cannabidiol and commonly used antiepileptic drugs. Epilepsia 58. 1586-1592 (2017).
  5. Damkier, P. et al. Interaction between warfarin and cannabis, Basic Clin, Pbarmacol. Toxicol. 124,28-31 (2019).
  6. Hsu, A. & Painter, N. A. Probable interaction between warfarin and inhaled and oral administration of cannabis. J. Pbarm. Pract. 33, 915-918 (2020). 
  7. Thomas, T.F. et al. Case report: Medical cannabis- warfarin drug-drug interaction.J.Cannabis Res: 4 1-6 (2022).
  8. US Food and Drug Administration. Drug Development and Drug Interactions | Table of Substrates, Inhibitors and Inducers. https://www. fda.gov/drugs/drug-interactions-labeling/drug- development-and-drug-interactions-table-substrates- inhibitors-and-inducers (2020).
  9. Kocis PT, Vrana KE. Delta-9-Tetrahydrocannabinol and Cannabidiol Drug-Drug Interactions. Med Cannabis Cannabinoids. 2020 Jul 7;3(1):61-73. doi: 10.1159/000507998. PMID: 34676340; PMCID: PMC8489344.

Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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