Alívio da dor crônica: O papel dos tratamentos à base de Cannabis

Publicado em 10/07/24 | Atualizado em 16/07/24 Leitura: 9 minutos

CanabinoidesCannabis como MedicamentoDoenças

A dor crônica é uma condição debilitante que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, impactando significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Tradicionalmente, o manejo da dor crônica tem se baseado em medicamentos opioides, gabapentinoides e anti-inflamatórios, que, embora eficazes, frequentemente resultam em efeitos colaterais indesejados, riscos de dependência e, muitas vezes, insuficiência terapêutica. Nesse contexto, os tratamentos à base de cannabis têm emergido nos últimos anos como uma alternativa promissora, oferecendo alívio da dor com um perfil de segurança potencialmente mais favorável. Neste post, iremos abordar o papel da cannabis no tratamento da dor crônica.

Dor Crônica

A dor crônica é definida como uma dor persistente que dura mais de três meses, muitas vezes resistindo aos tratamentos convencionais. No Brasil, as dores crônicas fazem parte do cotidiano de 36,9% das pessoas com mais de 50 anos, das quais 30% recorrem ao uso de opioides para aliviar o problema, causando um impacto significativo na funcionalidade física e no bem-estar psicológico dos pacientes.¹ A etiologia da dor crônica é diversa e pode incluir condições como osteoartrite, fibromialgia, neuropatia diabética e síndromes de dor neuropática pós-traumática. Cada uma dessas condições contribui para a complexidade do manejo da dor crônica, exigindo abordagens terapêuticas personalizadas e multidimensionais.

Nesse contexto, os tratamentos convencionais para dor crônica, incluindo opioides, gabapentinoides e anti-inflamatórios, frequentemente trazem uma série de efeitos colaterais indesejados. Entre os opioides, por exemplo, os efeitos adversos podem incluir constipação intestinal, náusea, sonolência, e, o mais preocupante, o risco de dependência e abuso.² Os Gabapentinoides, como a gabapentina e a pregabalina podem causar tontura, ganho de peso, náuseas e fadiga.³ Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) estão associados a riscos de úlceras gástricas, sangramentos gastrointestinais e efeitos cardiovasculares adversos. Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) frequentemente causam efeitos colaterais como náuseas, vômitos, dor abdominal, diarréia, agitação, ansiedade, insônia, nervosismo, fadiga, tremores, disfunções sexuais e reações dermatológicas.5 Já os opioides, têm efeitos adversos como constipação, náusea, vômitos, depressão respiratória e sedação, além de causar tolerância, hiperalgesia, abuso, dependência física, efeitos imunomodulatórios, alterações hormonais, distúrbios do sono e desordens psicomotoras.6

Diante dos desafios e riscos associados às terapias convencionais, a cannabis medicinal surge como uma alternativa promissora para o alívio da dor crônica. Os canabinoides presentes na cannabis, como o THC e o CBD, oferecem uma abordagem diferente e segura para o manejo da dor, com um perfil de efeitos colaterais que pode ser mais tolerável para muitos pacientes. A cannabis medicinal, ao interagir com o sistema endocanabinoide, oferece benefícios analgésicos e anti-inflamatórios sem os riscos elevados de dependência e os efeitos colaterais significativos frequentemente associados aos tratamentos convencionais.

Mecanismos de ação da Cannabis na modulação da dor

A cannabis contém numerosos compostos bioativos, sendo os mais destacados os canabinoides tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD). Estes compostos interagem com o sistema endocanabinoide (SEC), uma rede complexa composta por receptores (CB1 e CB2), endocanabinoides endógenos (como anandamida e 2-AG) e enzimas metabólicas (FAAH e MAGL), que desempenham um papel crucial na modulação de várias funções fisiológicas, incluindo a percepção da dor.

  • THC: O THC exerce sua ação predominantemente através da ativação dos receptores CB1 no sistema nervoso central (SNC), influenciando a neurotransmissão e modulando a percepção da dor. Adicionalmente, demonstra propriedades anti-inflamatórias ao interagir com receptores CB2 em células imunes periféricas. Além disso, atua nos receptores vaniloides TRPV1, que desempenham um papel crucial na modulação da sensibilidade nociceptiva e na resposta inflamatória.4 Essa interação resulta na dessensibilização dos nociceptores e na redução da liberação de mediadores pró-inflamatórios, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e a interleucina-1 beta (IL-1β), contribuindo significativamente para o alívio da dor. Além disso, o THC pode mitigar a hiperalgesia induzida por lesão nervosa crônica, interferindo na plasticidade neuronal a longo prazo nos circuitos envolvidos na percepção dolorosa.7
  • CBD: O CBD, diferentemente do THC, não possui efeitos psicotrópicos significativos e exerce seus efeitos através de mecanismos diversos. Primeiramente, inibe a degradação dos endocanabinoides endógenos, como a anandamida e o 2-AG, prolongando assim sua ação no sistema endocanabinoide (SEC). Além disso, o CBD modula vários tipos de receptores, incluindo os receptores serotoninérgicos 5-HT1A, que estão envolvidos na regulação da dor, humor e ansiedade.9 Ele também interage com os receptores vaniloides TRPV1, que têm um papel crucial na modulação da sensibilidade à dor.7 Esses mecanismos combinados contribuem para os efeitos anti-inflamatórios e analgésicos do CBD, reduzindo a resposta inflamatória e modulando a percepção da dor. Essa ampla gama de interações entre receptores permite ao CBD ser considerado uma opção terapêutica promissora para o manejo da dor crônica.

 

Evidências Científicas e Estudos Clínicos

A literatura científica até o momento inclui aproximadamente 300 estudos que examinam o papel do SEC e a eficácia dos tratamentos à base de cannabis em condições de dor crônica, incluindo 41 ensaios clínicos em humanos e 47 ensaios clínicos randomizados e controlados (ECRs) duplo-cegos.10

Recentemente, um estudo prospectivo conduzido por Bar-Lev Schleider et al. (2022) em Israel, destacou-se pela sua amplitude e relevância. Com mais de 10.000 participantes, o estudo focou na avaliação dos efeitos da cannabis medicinal em condições crônicas como dor e distúrbios do sono. Cerca de 80% dos pacientes relataram dor crônica e problemas de sono como seus sintomas principais. Após seis meses de tratamento, mais de 70% dos pacientes experimentaram melhorias na intensidade da dor, com mais de 60% alcançando reduções significativas de 30% ou mais. Além disso, houve uma queda notável no número de pacientes que classificaram sua dor entre 8 e 10 na escala de intensidade, passando de 62% antes do tratamento para apenas 5% após o período de seis meses de tratamento.11 Esses resultados reforçam a eficácia e a aceitação crescente da cannabis medicinal como uma opção terapêutica promissora para condições crônicas debilitantes.

Além disso, os benefícios do CBD em comparação com outros tratamentos farmacológicos para dor crônica são notáveis. Estudos recentes destacam que formulações de Cannabis, especialmente aquelas com uma proporção equilibrada de CBD e THC (1:1), têm demonstrado eficácia superior em comparação com medicamentos convencionais amplamente utilizados, como duloxetina, gabapentinoides, amitriptilina, tramadol, ibuprofeno, metadona e oxicodona.12 Essa superioridade é atribuída à capacidade única do CBD de interagir com diversos alvos no sistema nervoso e imunológico, resultando não apenas em alívio da dor, mas também em significativa redução da inflamação associada. Esses efeitos combinados fazem das formulações de CBD uma opção terapêutica promissora e bem tolerada para pacientes que enfrentam desafios no controle da dor crônica.

Conclusão

Em suma, o avanço no tratamento da dor crônica está marcado pela crescente aceitação e comprovação científica dos benefícios dos tratamentos à base de cannabis. Essa abordagem emerge como uma alternativa viável e promissora para mitigar o sofrimento de pacientes com dor crônica. Com um perfil de segurança favorável e respaldo crescente de estudos clínicos robustos, a cannabis medicinal oferece um potencial significativo de alívio das dores crônicas. Nesse sentido, a WeCann fornece suporte e orientação técnica qualificada à comunidade médica, ancorados na  vasta experiência prática do nosso corpo técnico e na sólida abordagem baseada em evidências científicas, caminho fundamental para os profissionais médicos que desejam explorar os benefícios dos medicamentos à base de cannabis na prática médica.

Referências 

  1. BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa aponta que quase 37% dos brasileiros acima de 50 anos têm dores crônicas. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/pesquisa-aponta-que-quase-37-dos-brasileiros-acima-de-50-anos-tem-dores-cronicas. Acesso em: 24 jun. 2024.
  2. KRAYCHETE, Durval Campos et al. Recomendações para uso de opioides no Brasil: Parte IV. Efeitos adversos de opioides. Revista Dor, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 133-139, jun. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdor/a/pSMBBGPmL4ThRHrG6ghh9ps/?lang=pt. Acesso em: 24 jun. 2024.
  3. Sagy I, Bar-Lev Schleider L, Abu-Shakra M, Novack V. Safety and Efficacy of Medical Cannabis in Fibromyalgia. J Clin Med. 2019 Jun 5;8(6):807. doi: 10.3390/jcm8060807. PMID: 31195754; PMCID: PMC6616435.
  4. OLIVEIRA, Mariana Martha C. de et al. O uso crônico de anti-inflamatórios não esteroidais e seus efeitos adversos. Caderno de Medicina, [S.l.], v. 2, n. 2, 2019. 
  5. MORENO, Ricardo Alberto; MORENO, Doris Hupfeld; SOARES, Márcia Britto de Macedo. Psicofarmacologia de antidepressivos. Braz. J. Psychiatry, v. 21, supl. 1, maio 1999. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-44461999000500006. Acesso em: 04 jul. 2024.
  6. KRAYCHETE, Durval Campos; GARCIA, João Batista Santos; SIQUEIRA, José Tadeu Tesseroli de. Recomendações para uso de opioides no Brasil: Parte IV. Efeitos adversos de opioides. Rev. dor, v. 15, n. 3, jul./set. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.5935/1806-0013.20140047. Acesso em: 04 jul. 2024.
  7. De Petrocellis L, Di Marzo V. Non-CB1, non-CB2 receptors for endocannabinoids, plant cannabinoids, and synthetic cannabimimetics: focus on G-protein-coupled receptors and transient receptor potential channels. J Neuroimmune Pharmacol. 2010 Mar;5(1):103-21. doi: 10.1007/s11481-009-9177-z. Epub 2009 Oct 22. PMID: 19847654.
  8. Richardson JD, Kilo S, Hargreaves KM. Cannabinoids reduce hyperalgesia and inflammation via interaction with peripheral CB1 receptors. Pain. 1998 Mar;75(1):111-119. doi: 10.1016/S0304-3959(97)00213-3. PMID: 9539680.
  9. Campos AC, Moreira FA, Gomes FV, Del Bel EA, Guimarães FS. Multiple mechanisms involved in the large-spectrum therapeutic potential of cannabidiol in psychiatric disorders. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2012 Dec 5;367(1607):3364-78. doi: 10.1098/rstb.2011.0389. PMID: 23108553; PMCID: PMC3481531.
  10. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  11. Bar-Lev Schleider L, Mechoulam R, Sikorin I, Naftali T, Novack V. Adherence, Safety, and Effectiveness of Medical Cannabis and Epidemiological Characteristics of the Patient Population: A Prospective Study. Front Med (Lausanne). 2022 Feb 9;9:827849. doi: 10.3389/fmed.2022.827849. PMID: 35223923; PMCID: PMC8864967.
  12. NUTT, D. J. et al. A Multicriteria Decision Analysis Comparing Pharmacotherapy for Chronic Neuropathic Pain, Including Cannabinoids and Cannabis-Based Medical Products. *Cannabis and Cannabinoid Research*, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 153-167, 2021. DOI: 10.1089/can.2020.0129.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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