A dor neuropática é um tipo de dor crônica que surge a partir de lesões ou disfunções no sistema nervoso, podendo ser provocada por condições como diabetes, herpes zoster, esclerose múltipla, lesões traumáticas ou cirúrgicas, entre outras. Caracterizada por sintomas como formigamento, queimação e dor intensa, muitas vezes não responde adequadamente aos tratamentos convencionais, o que motiva a busca por terapias alternativas. Nesse cenário, o canabidiol (CBD), um dos principais componentes da planta Cannabis sativa, tem atraído grande interesse devido ao seu potencial terapêutico no manejo da dor neuropática. No post de hoje iremos explorar como o canabidiol pode ajudar no manejo da dor neuropática.
Dor Neuropática
A dor neuropática é uma condição clínica caracterizada pela ativação aberrante do sistema somatossensorial, resultante de lesões ou disfunções nos nervos periféricos ou centrais. Essa condição pode ser causada por uma ampla variedade de etiologias, incluindo lesões traumáticas, diabetes mellitus, infecções virais (como o herpes zoster), acidentes vasculares cerebrais, esclerose múltipla, neuropatias hereditárias e síndromes de compressão nervosa.¹
Fisiopatologicamente, a dor neuropática envolve uma série de alterações nos mecanismos de percepção e transmissão da dor, incluindo sensibilização central, alterações nos canais iônicos neuronais, perda de inibição gabaérgica e disfunção da microglia e astrócitos. A sensibilização central refere-se ao aumento da excitabilidade dos neurônios da medula espinhal e do cérebro, resultando em respostas amplificadas a estímulos normalmente não dolorosos (alodinia) ou em respostas exageradas a estímulos dolorosos (hiperalgesia). Além disso, as alterações nos canais de sódio e cálcio nas fibras nervosas lesionadas podem levar à geração de potenciais de ação ectópicos, contribuindo para a dor espontânea.¹
Clinicamente, a dor neuropática apresenta-se com características particulares, incluindo queimação, choque, formigamento, e, em alguns casos, sensações paradoxais, como dor ao toque leve. O diagnóstico é baseado na avaliação clínica detalhada, incluindo a história do paciente e o uso de escalas específicas, como o PainDETECT ou o Neuropathic Pain Questionnaire (NPQ). O exame neurológico deve avaliar sinais de lesão nervosa, como hipoestesia, alodinia ou parestesia.1,2
O manejo da dor neuropática é desafiador e requer uma abordagem multimodal. Os neuromoduladores, como gabapentinoides (gabapentina, pregabalina) e antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina), são frequentemente utilizados como terapias de primeira linha. No entanto, esses tratamentos, apesar de eficazes em muitos casos, apresentam limitações consideráveis devido aos efeitos colaterais não raras vezes significativos, e à variabilidade na resposta dos pacientes.¹
Os gabapentinoides, amplamente prescritos para o tratamento da dor neuropática, são eficazes, mas frequentemente associados a efeitos adversos como sonolência, tontura, edema periférico e ganho de peso, o que pode limitar sua utilização em populações vulneráveis, como idosos ou pacientes com comorbidades metabólicas. Da mesma forma, os antidepressivos tricíclicos, embora potencialmente eficazes no controle da dor neuropática, podem provocar importante constipação intestinal, ganho de peso e complicações cardiovasculares, como arritmias, que são especialmente preocupantes em pacientes com doenças cardíacas preexistentes.³
Os inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN), como duloxetina e venlafaxina, também têm se mostrado eficazes no manejo da dor neuropática, mas apresentam efeitos colaterais como náuseas, insônia, hipertensão arterial, redução da libido e disfunção sexual. Esses efeitos podem ser limitantes, principalmente em doses mais elevadas, que exigem monitoramento rigoroso em pacientes com hipertensão arterial sistêmica e outras doenças cardiovasculares.³
Além disso, a utilização de opioides no tratamento da dor neuropática, geralmente como última linha de intervenção, traz desafios consideráveis. Embora possam oferecer alívio temporário, o uso prolongado está associado a riscos elevados de tolerância, dependência, depressão respiratória e disfunção cognitiva, tornando essa classe de medicamentos uma escolha controversa para pacientes com dor neuropática crônica.³
Diante desses efeitos colaterais e da resposta terapêutica limitada em muitos casos, tem havido uma demanda crescente por terapias alternativas mais seguras e eficazes. Nesse contexto, o canabidiol emergiu como uma opção promissora no manejo da dor neuropática. Ao contrário dos tratamentos convencionais, o CBD possui um perfil de segurança mais favorável, com menos efeitos adversos relatados em ensaios clínicos, especialmente em terapias de longo prazo. O CBD atua em múltiplos alvos moleculares, desempenhando um papel crucial na modulação da dor, e é uma alternativa valiosa, principalmente para pacientes que não respondem bem às opções terapêuticas convencionais.
Dor Neuropática e Sistema Endocanabinoide
O sistema endocanabinoide (SEC) tem se destacado no controle da dor neuropática, demonstrando um papel essencial em diversas etapas da modulação nociceptiva. Sua atuação ocorre em múltiplos níveis do sistema nervoso central (SNC) e periférico, incluindo a modulação de estímulos dolorosos nos nervos sensoriais, medula espinhal e estruturas cerebrais. Este sistema consiste em receptores canabinoides, endocanabinoides e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses compostos, exercendo funções moduladoras em processos inflamatórios, imunes e neuronais.4
Os receptores canabinoides, principalmente CB1 e CB2, estão amplamente distribuídos por vias de modulação da dor. No sistema nervoso periférico, a ativação dos receptores CB1 inibe a transmissão nociceptiva nos neurônios sensoriais. Já os receptores CB2, presentes em células imunológicas periféricas, têm uma função importante na regulação da inflamação, um componente central na gênese da dor crônica, ao reduzir a liberação de citocinas pró-inflamatórias.4
A nível espinhal, a ativação dos receptores CB1 no gânglio da raiz dorsal e no corno dorsal da medula espinhal promove a inibição da condução de estímulos nociceptivos, reduzindo a sensibilização neuronal. Os receptores CB2 desempenham um papel modulador nas respostas neuroimunológicas, auxiliando no controle da inflamação e na neuroplasticidade associada à dor neuropática.5
No sistema supraespinhal, os receptores CB1 exercem uma função significativa no controle da percepção da dor. No tálamo, especificamente no núcleo ventroposterolateral, esses receptores inibem a ascensão de estímulos dolorosos, modulando a discriminação sensorial. No córtex sensitivo-motor e na amígdala, sua ativação influencia a resposta emocional e cognitiva à dor, reduzindo a sensação de desconforto e sofrimento.6
Além das vias aferentes, os receptores CB1 ativam as vias descendentes inibitórias da dor, localizadas na substância periaquedutal e nos núcleos da rafe, ambos no tronco cerebral. Essa ativação reduz a sensibilidade à dor em diversas condições patológicas.6
O canabidiol atua como um modulador alostérico negativo dos receptores canabinoides CB1 e CB2, além de inibir a degradação de endocanabinoides ao bloquear a enzima FAAH, resultando em um aumento nos níveis de anandamida e promovendo analgesia.7 Sua interação como agonista total nos receptores de serotonina 5-HT1a e nos canais TRPV1 contribui para os efeitos ansiolíticos e analgésicos do CBD. A ativação parcial dos receptores de dopamina D2 pode estar relacionada a sua influência no processamento da memória emocional no hipocampo ventral.7
Adicionalmente, a modulação alostérica negativa no receptor MOR (receptor opioide μ) é uma ação de destaque do CBD no gerenciamento do abuso de opioides. O agonismo nos receptores de adenosina A1 e nos receptores nucleares PPARγ também sugere potenciais efeitos benéficos na modulação de processos inflamatórios crônicos. Por fim, o CBD demonstra um efeito inibitório sobre os canais de sódio e cálcio, o que explica o seu potencial terapêutico no tratamento da dor neuropática.7
Os receptores não canônicos, como o TRPV1, GPR55 e os receptores ativados por proliferadores de peroxissoma (PPARs), também participam da modulação da dor mediada pelo sistema endocanabinoide. Estes receptores estão presentes em diversas vias da dor e são alvo de estudos por seu potencial papel na analgesia induzida por derivados canabinoides. O TRPV1, por exemplo, é envolvido na sensação de dor e na resposta inflamatória, enquanto os PPARs têm sido associados ao controle da inflamação e à modulação metabólica.8
Evidências Científicas
A cannabis tem se mostrado eficaz no tratamento da dor neuropática, com vários estudos evidenciando a eficácia dos derivados canabinoides, especialmente o CBD e o THC, na redução da dor. Ensaios clínicos controlados randomizados (ECRs) indicam que a administração de derivados canabinoides pode resultar em uma diminuição significativa nas medidas de dor em comparação com placebo. Um exemplo disso é o uso de nabiximols, um spray oral que combina THC e CBD, cujas doses diárias entre 8 e 12 pulverizações/dia (aproximadamente 22-32 mg de THC e 20-30 mg de CBD) demonstraram eficácia e segurança no controle da dor neuropática.9
A metanálise realizada por Darkovska-Serafmovska et al. (2018) analisou a eficácia dos nabiximols no manejo da dor crônica, evidenciando que a administração de uma média de dez pulverizações diárias, que totaliza 25 mg de CBD e 27 mg de THC, resulta em um controle significativo da dor em populações específicas, incluindo pacientes com dor neuropática, artrite reumatoide e câncer. Os resultados sugerem que essa combinação de fitocanabinoides atua sinergicamente, proporcionando alívio analgésico.10
Adicionalmente, revisões sistemáticas recentes com metanálises têm demonstrado a eficácia de diversas terapias à base de cannabis no tratamento da dor neuropática crônica. As análises revelaram que combinações de CBD e THC, bem como o THC isolado, como o dronabinol e a nabilona, resultaram em reduções significativas nas avaliações de dor quando comparadas ao placebo. Essas intervenções mostram um potencial promissor para o manejo da dor neuropática, implicando em mecanismos analgésicos que envolvem a modulação dos receptores canabinoides e a interação com vias de sinalização nociceptiva.11
Em contraste, a canabidivarina (CBDV) e o canabinoide sintético CT-3 não apresentaram diferenças significativas em relação ao placebo nas revisões clínicas analisadas.12 Esses achados indicam que, embora algumas formulações de derivados canabinoides sejam eficazes no controle da dor neuropática, outras composições não demonstram benefícios clínicos, ressaltando a importância de estudos mais aprofundados para elucidar os perfis de eficácia dos diferentes canabinoides nas condições de dor neuropática.
Conclusão
O uso do canabidiol no tratamento da dor neuropática representa uma abordagem promissora, especialmente em pacientes que não obtêm alívio adequado com as terapias convencionais. As propriedades anti-inflamatórias, neuroprotetoras e moduladoras da dor proporcionadas pelo CBD, aliadas ao seu ótimo perfil de segurança, fazem desse derivado canabinoide uma alternativa viável e promissora para o manejo da dor neuropática. Apesar dos avanços, ainda há muito a ser estudado sobre a melhor forma de utilizar o CBD nesse cenário clínico, como doses ideais e o tempo de tratamento necessário para obter resultados consistentes. No entanto, as evidências atuais sugerem que o CBD tem o potencial de melhorar significativamente a qualidade de vida de pacientes com dor neuropática, proporcionando alívio da dor e redução do uso de medicamentos com importantes efeitos colaterais, minimizando os riscos associados às demais terapêuticas.
É fundamental que os médicos busquem constantemente se atualizar sobre o uso medicinal da cannabis e temas correlatos, a fim de proporcionar melhores resultados para seus pacientes. Nesse cenário, a WeCann se destaca como referência internacional em educação médica continuada, oferecendo recursos e informações atualizadas e de alta qualidade sobre a cannabis medicinal. Nosso propósito é apoiar médicos na tomada de decisões clínicas baseadas em evidências científicas e na implementação de terapêuticas personalizadas, contribuindo para um manejo mais seguro e eficaz da dor neuropática.
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