A Cannabis sativa, uma planta com mais de 120 fitocanabinoides identificados, tem ganhado destaque no tratamento de diversos distúrbios de saúde, com destaque para os distúrbios do sono. O sono, essencial para a saúde física e mental, regula processos vitais como a função cognitiva, a imunidade e o equilíbrio metabólico. Distúrbios do sono, como a insônia, afetam uma proporção significativa da população, comprometendo a qualidade de vida e a saúde geral. Entre os principais compostos da cannabis, o Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) são os mais estudados devido aos seus efeitos sobre o sistema endocanabinoide, um modulador crucial de processos fisiológicos, como sono, dor e humor. No post de hoje vamos explorar os mecanismos envolvidos no uso da cannabis medicinal para o tratamento de distúrbios do sono, avaliar as evidências científicas disponíveis e discutir os desafios terapêuticos associados ao seu uso.
Sono e os seus distúrbios:
O sono é um processo biológico fundamental que desempenha um papel crucial na manutenção da saúde física e mental. Durante o sono, o corpo e a mente passam por uma série de processos reparadores e restauradores que afetam a função cognitiva, a regulação emocional, o sistema imunológico e o metabolismo. A qualidade do sono pode, portanto, ter um impacto significativo na qualidade de vida geral e na saúde.¹
Fisiologia do Sono
O sono é um processo complexo e dinâmico que se caracteriza pela alternância entre os estágios REM (Rapid Eye Movement) e NREM (Non-Rapid Eye Movement). O sono NREM é subdividido em quatro estágios, que podem ser identificados através do eletroencefalograma (EEG). O estágio 1 representa a transição entre a vigília e o sono, com ondas alfa e teta no EEG, e é um período de sono leve, onde a pessoa pode ser facilmente despertada. O estágio 2 é caracterizado por uma redução na atividade cortical com a presença de fusos do sono e complexos K, indicando um sono um pouco mais profundo. Os estágios 3 e 4, também conhecidos como sono de ondas lentas ou sono delta, são os mais profundos do sono NREM, revelando ondas delta de baixa frequência e alta amplitude no EEG. Este sono profundo é crucial para a recuperação física, restauração imunológica e consolidação da memória, e a dificuldade em acordar durante esses estágios, reflete a sua profundidade.²
O sono REM, por outro lado, é caracterizado por um EEG com ondas dessincronizadas e de baixa amplitude, semelhante à atividade cerebral durante a vigília. Esta fase do sono está associada a sonhos vívidos e desempenha um papel fundamental na consolidação da memória e na regulação emocional. Durante o sono REM, há uma atonia muscular quase completa para evitar a execução física dos sonhos.²
A regulação do sono é um processo altamente coordenado que envolve a interação entre diferentes regiões do cérebro e neurotransmissores específicos. Os circuitos tálamo-corticais, que incluem o tálamo e o córtex cerebral, são centros cruciais na modulação das ondas cerebrais durante o sono. O tálamo, particularmente seus núcleos reticulares, regula a sincronização das ondas cerebrais, refletida nas fases NREM e REM do sono.² Compreender a estrutura e regulação do sono é fundamental para diagnosticar e tratar distúrbios do sono, como a insônia e a apneia obstrutiva do sono. A interação entre os sistemas neurofisiológicos e os neurotransmissores oferece insights valiosos para desenvolver intervenções terapêuticas e promover um sono saudável e reparador.
Distúrbios do sono e Insônia
Os distúrbios do sono constituem uma preocupação crescente devido ao impacto significativo que têm na saúde geral e no bem-estar dos indivíduos. Dentre esses distúrbios, a insônia se destaca como uma das condições mais prevalentes, sendo definida pela dificuldade persistente em iniciar ou manter o sono, mesmo quando as condições para dormir são adequadas. Este transtorno não apenas compromete a qualidade do sono, mas também resulta em sérias consequências durante o dia, como déficits funcionais significativos e a diminuição da qualidade de vida.
Para que a insônia seja classificada como crônica, é necessário que a condição persista por no mínimo três meses, com uma frequência de pelo menos três episódios por semana.³ Entre 50 a 70 milhões de indivíduos nos Estados Unidos sofrem de algum tipo de distúrbio do sono.4 Dentro desse grupo, a insônia figura como um dos problemas mais prevalentes. Em unidades de atenção primária, até 69% dos pacientes relatam experiências ocasionais de dificuldade para dormir, evidenciando a alta incidência de episódios de insônia nessa população.4 Destes, aproximadamente 6 a 15% acabam recebendo um diagnóstico formal de transtorno de insônia, o que afeta negativamente a qualidade de vida e o bem-estar geral.
A insônia não apenas afeta o bem-estar imediato, mas também está associada a um risco aumentado de desenvolvimento de transtornos mentais, como ansiedade, depressão, transtorno bipolar e abuso de substâncias.5 Adicionalmente, a insônia é um fator de risco significativo para o surgimento de doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes tipo II, dor crônica, traumas e doença do refluxo gastroesofágico.6 O impacto da insônia na qualidade de vida pode se manifestar em diversas esferas do cotidiano. Entre as principais consequências estão o aumento do absenteísmo no trabalho, a redução da capacidade de concentração e o comprometimento na execução de atividades diárias, resultando em queda significativa no desempenho funcional e bem-estar.
Além da insônia crônica, outros distúrbios do sono frequentemente diagnosticados incluem a apneia obstrutiva do sono, caracterizada por repetidas pausas respiratórias durante o sono, resultando em hipoxemia e fragmentação do sono; a narcolepsia, um distúrbio neurológico que provoca episódios súbitos e incontroláveis de sono; a síndrome das pernas inquietas, marcada por uma sensação incômoda nas extremidades inferiores que provoca uma necessidade irresistível de movimento; e diversas parassonias, como o sonambulismo e o transtorno comportamental do sono REM, que envolvem comportamentos anômalos durante o sono.³
O manejo terapêutico desses distúrbios pode englobar uma combinação de psicoterapia, modificações no estilo de vida e intervenções farmacológicas. Estratégias não farmacológicas, como atividade física regular, medidas de higiene do sono e terapia cognitivo-comportamental, são preferidas como primeira linha de tratamento, mas em casos refratários, medicamentos tornam-se necessários. Entre as opções farmacológicas, os benzodiazepínicos são frequentemente prescritos, embora sejam acompanhados de uma ampla gama de efeitos adversos, como sonolência diurna excessiva, comprometimento das funções cognitivas e motoras, além de elevado risco de tolerância, dependência e sintomas de abstinência.7
Diante dos desafios impostos pela insônia e pelos distúrbios do sono em geral, é evidente a necessidade de explorar alternativas terapêuticas que ofereçam eficácia e segurança a longo prazo, especialmente para pacientes que não respondem adequadamente aos tratamentos convencionais. Nesse contexto, a cannabis medicinal tem emergido como uma opção promissora, sobretudo devido a sua boa tolerabilidade e menor incidência de efeitos colaterais, quando comparada a medicamentos convencionais, como os benzodiazepínicos.
Sistema Endocanabinoide e Distúrbios do sono
O Sistema Endocanabinoide (SEC) é uma complexa rede de sinalização celular composta por receptores canabinoides, endocanabinoides (substâncias produzidas naturalmente pelo organismo) e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses compostos. Sua função principal é regular uma ampla gama de processos fisiológicos, como humor, apetite, dor, inflamação, memória e, de forma crucial, o ciclo sono-vigília. O SEC atua como um modulador homeostático, ajudando o corpo a manter o equilíbrio e a estabilidade em resposta a estímulos externos e internos.³
O SEC possui dois principais receptores: o CB1, encontrado predominantemente no sistema nervoso central, e o CB2, localizado principalmente no sistema imunológico e tecidos periféricos. Os endocanabinoides mais conhecidos que interagem com esses receptores são a anandamida e o 2-AG (2-araquidonilglicerol). Esses compostos são produzidos conforme a necessidade e se ligam aos receptores CB1 e CB2, modulando uma série de funções corporais.³
Uma das principais funções do SEC é regular o ciclo sono-vigília, um processo controlado por ritmos circadianos, que são oscilações biológicas que seguem um ciclo de aproximadamente 24 horas. Esses ritmos estão intimamente relacionados à liberação de hormônios, temperatura corporal e outros fatores que determinam os períodos de vigília e sono.
Estudos sugerem que o SEC desempenha um papel fundamental na indução do sono e na promoção de fases específicas, como o sono REM (movimento rápido dos olhos) e o sono não-REM, de ondas lentas (SWS). A ativação dos receptores CB1 por endocanabinoides está associada à facilitação do sono profundo, enquanto a inibição desses receptores pode resultar em aumento da vigília e interrupção dos ciclos de sono.8
O controle do sono envolve uma série de circuitos neuronais, sendo os neurônios que produzem orexina (ORX) um dos mais importantes reguladores desse processo. A orexina é um neurotransmissor que promove a vigília e está associada ao controle do sono e da alimentação. Curiosamente, embora os neurônios orexinérgicos não expressem diretamente os receptores CB1, sua atividade é modulada indiretamente pelas substâncias endocanabinoides. Quando os neurônios orexinérgicos são ativados, eles estimulam a produção de 2-AG, que, por sua vez, ativa receptores CB1 localizados em sinapses próximas. Essa interação permite que o SEC influencie o comportamento dos principais circuitos envolvidos na regulação do sono.³
Além disso, neurotransmissores clássicos, como a dopamina, serotonina, noradrenalina e GABA, também têm suas atividades moduladas pelo SEC. Isso demonstra a ampla influência dos canabinoides no sistema nervoso, controlando desde a indução do sono REM, que é crucial para a consolidação da memória, até a regulação do sono de ondas lentas, que está envolvido na restauração física e na regulação hormonal.³
Diversas pesquisas indicam que a ativação dos receptores CB1 tem um efeito positivo na indução do sono. Por exemplo, a administração de agonistas de CB1, como o THC, induz o sono e melhora a qualidade do ciclo sono-vigília. Por outro lado, antagonistas de CB1 podem interromper o sono, aumentando o tempo de vigília e reduzindo o tempo das fases REM e não-REM.9 Além disso, estudos mostram que privação de sono pode causar um aumento na concentração de endocanabinoides, sugerindo que o SEC tem um papel compensatório na recuperação após períodos de vigília prolongada.8
A disfunção do SEC tem sido associada a vários distúrbios do sono, como a insônia, apneia obstrutiva do sono e a síndrome das pernas inquietas. A insônia, em particular, tem uma forte correlação com a desregulação dos endocanabinoides. Aumentos na expressão dos receptores CB1 em resposta à privação do sono sugerem que o SEC tenta restaurar o equilíbrio homeostático do sono após a fragmentação dos ritmos circadianos.³
Evidências Científicas
O potencial terapêutico da cannabis para o manejo de distúrbios do sono tem sido objeto de estudo há décadas, com evidências históricas de suas propriedades hipnogênicas. Embora o foco de muitos ensaios clínicos tenha sido em outras condições patológicas, como dor crônica e doenças neurodegenerativas, o impacto dos canabinoides no sono tem sido consistentemente avaliado como desfecho secundário. Um exemplo notável é o uso do nabiximols (Sativex®), uma formulação padronizada de THC e CBD, em pacientes com dor neuropática associada a câncer, artrite reumatoide e esclerose múltipla. Conforme relatado por Russo, Guy e Robson (2007), uma análise post-hoc de ensaios clínicos de fase I a III com mais de 2.000 pacientes demonstrou melhorias significativas nos parâmetros subjetivos de sono, com um perfil de eventos adversos considerado favorável.10
Recentemente, uma revisão sistemática com meta-análise realizada por AminiLari et al. (2022) incluiu 39 ensaios clínicos randomizados, abrangendo 5.100 pacientes com dor crônica tratados com diferentes formulações de cannabis medicinal. Os resultados sugeriram que o uso de canabinoides melhora de forma significativa a qualidade subjetiva do sono quando comparado ao placebo, particularmente em pacientes com dor crônica não oncológica. Essa melhora foi menos expressiva em pacientes com dor associada ao câncer, sugerindo que a etiologia da dor pode influenciar a resposta aos canabinoides no contexto do sono.11
Outros estudos relevantes, como os conduzidos por Walsh et al. (2021) e Ried et al. (2022), em populações australianas com insônia, corroboram esses achados. Ambos os estudos empregaram um desenho duplo-cego cruzado e demonstraram que o uso de extratos de cannabis melhorou significativamente o tempo total de sono e a sensação de descanso ao acordar, quando comparado ao placebo.12,13
No contexto de distúrbios do sono associados a doenças neurodegenerativas, Peball et al. (2022) investigaram o efeito da nabilona, um análogo sintético do THC, em pacientes com doença de Parkinson. Os resultados indicaram que a nabilona melhorou significativamente os sintomas não motores, incluindo a qualidade do sono, em 77,4% dos pacientes.14 Esse estudo sugere que o uso de canabinoides pode ser benéfico em distúrbios do sono relacionados a patologias neurodegenerativas.
Além disso, um estudo observacional conduzido por Bar-Lev Schleider et al. (2022) em aproximadamente 10.000 pacientes em Israel tratados com cannabis medicinal revelou que 89,1% dos participantes relataram melhorias significativas nos sintomas de insônia após seis meses de tratamento.15 Essas evidências são corroboradas por um estudo realizado no Reino Unido, com 2.833 participantes, que também relatou uma melhora sustentada na qualidade do sono ao longo de 12 meses de acompanhamento.15
Em um estudo no campo clínico, Prasad et al. conduziram um estudo aberto com 15 pacientes com Apneia Obstrutiva do Sono (AOS) moderada a grave, demonstrando uma redução significativa no índice de apneia-hipopneia (IAH) após o uso de dronabinol oral (2,5 mg, 5 mg, e 10 mg).16 Além disso, um estudo posterior, randomizado e controlado por placebo, avaliou o uso de dronabinol em 56 pacientes com AOS, mostrando uma redução do IAH de até 12,9 eventos/hora nos pacientes que tomaram doses de 2,5 mg e 10 mg . No entanto, é importante notar que, apesar das melhorias nos índices de apneia, a oxigenação e outros parâmetros do sono não foram alterados, e alguns efeitos adversos foram observados, particularmente em doses mais altas de dronabinol, como sonolência, cefaleia e náuseas.17
Para saber mais sobre os benefícios do canabidiol em outros cenários clínicos acesse: Os benefícios do Canabidiol para sua saúde – WeCann Academy
Conclusão
A cannabis medicinal tem mostrado potencial terapêutico promissor no tratamento de distúrbios do sono, em grande parte devido a sua interação com o sistema endocanabinoide, que regula funções essenciais como o ciclo sono-vigília. Estudos científicos indicam que a ativação dos receptores CB1 pode promover o sono profundo e diminuir o tempo de vigília, especialmente em casos de insônia. Diante disso, é crucial que os médicos busquem atualização e capacitação adequadas para oferecer tratamentos mais seguros e eficazes aos seus pacientes.
Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel crucial ao fornecer informações sempre atualizadas e respaldadas por evidências científicas sobre o uso medicinal da cannabis. São conteúdos técnicos essenciais para capacitar médicos na adoção de práticas baseadas em evidências e na integração segura e assertiva da cannabis medicinal no manejo de diversas condições crônicas e, frequentemente refratárias e incapacitantes, como os distúrbios do sono.
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