Cannabis no tratamento da Doença de Huntington: Potencial terapêutico e evidências científicas

Publicado em 10/09/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 11 minutos

Neurológicas

A Doença de Huntington (DH) é uma desordem neurodegenerativa hereditária, caracterizada por uma progressiva deterioração motora, cognitiva e comportamental, resultante da degeneração dos neurônios no estriado. Embora sua origem genética seja bem estabelecida, com a expansão do trinucleotídeo CAG no gene HTT sendo a principal causa, as abordagens terapêuticas atuais ainda são limitadas e focadas principalmente no manejo sintomático. Nos últimos anos, o interesse científico tem se voltado para o sistema endocanabinoide como uma via promissora para novas intervenções terapêuticas, com estudos sugerindo que a modulação deste sistema possa oferecer benefícios neuroprotetores e sintomáticos, potencialmente modificando o curso da doença. No post de hoje iremos explorar o potencial terapêutico da cannabis na Doença de Huntington.

Doença de Huntington

A Doença de Huntington (DH) é uma desordem neurodegenerativa hereditária, autossômica dominante, que afeta de forma devastadora o sistema nervoso central. Caracterizada pela tríade de distúrbios motores, como movimentos involuntários coreicos e distonia; comprometimento cognitivo, que pode evoluir para demência; e alterações psiquiátricas, incluindo depressão, irritabilidade e mudanças no comportamento.¹ A DH é causada por uma mutação no gene HTT, localizado no braço curto do cromossomo 4. Essa mutação envolve uma expansão anômala de repetições trinucleotídicas de citosina-adenina-guanina (CAG), que codificam a proteína huntingtina.¹

Em indivíduos saudáveis, o número de repetições do trinucleotídeo CAG varia entre 9 e 35. Na Doença de Huntington, entretanto, esse número excede 36, resultando na produção de uma forma mutante da proteína huntingtina, caracterizada por um prolongamento anômalo da cadeia de poliglutamina. Essa mutação favorece o acúmulo da proteína huntingtina alterada em inclusões neuronais, o que desencadeia uma série de eventos patológicos que culminam em disfunção celular e morte neuronal.¹

No nível neuroanatômico, as primeiras regiões afetadas são os núcleos da base, particularmente o estriado, que inclui os núcleos caudado e putâmen. A degeneração dos neurônios espinhosos GABAérgicos, que desempenham um papel fundamental na regulação dos circuitos motores córtico-estriato-talâmicos, resulta em disfunção motora progressiva. Inicialmente, essa disfunção se manifesta como movimentos involuntários, conhecidos como coreia, que são característicos da DH. À medida que a doença progride, ocorre uma transição para rigidez, bradicinesia e distonia, refletindo a perda extensiva de controle motor.¹

Além dos sintomas motores, o comprometimento cognitivo é uma característica central da DH, frequentemente levando à demência subcortical. Pacientes podem apresentar dificuldades com planejamento, organização e flexibilidade mental, bem como comprometimento na memória de trabalho. Em paralelo, alterações psiquiátricas são comuns e variam desde depressão, ansiedade e irritabilidade até psicose. Esses sintomas não apenas afetam a qualidade de vida dos pacientes, mas também representam um desafio significativo para o manejo clínico.¹

Atualmente, a Doença de Huntington permanece sem cura, e as opções terapêuticas disponíveis são majoritariamente paliativas, concentrando-se no alívio dos sintomas motores e psiquiátricos. Para os movimentos coreicos, apenas a tetrabenazina e a deutetrabenazina estão aprovadas, embora o manejo da distonia na DH continue sendo um desafio sem diretrizes estabelecidas.² Estudos de caso indicam que os derivados canabinoides podem oferecer benefícios no tratamento da distonia, destacando essa abordagem como uma área promissora de pesquisa. ³

O tratamento dos transtornos psiquiátricos, comuns em pacientes com DH, segue protocolos convencionais, com o uso de antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos para mitigar sintomas de depressão, ansiedade e alterações de comportamento. No entanto, à medida que a doença avança e a incapacidade dos pacientes aumenta, o arsenal terapêutico convencional se mostra limitado, tornando-se necessário o uso de intervenções complementares, como fisioterapia, terapia ocupacional e suporte psicoterapêutico, para preservar a qualidade de vida. Nesse contexto, as pesquisas sobre terapias à base de cannabis têm despertado grande interesse, devido ao potencial dos canabinoides em modular vias neuroprotetoras e anti-inflamatórias. Esta abordagem emergente oferece uma alternativa promissora, especialmente considerando as limitações das terapias tradicionais em manejar a complexidade dos sintomas da DH.

Sistema Endocanabinoide e Doença de Huntington

O sistema endocanabinoide (SEC) é crucial na regulação de múltiplas funções neuromodulatórias e seu desajuste tem implicações significativas na patogênese de doenças neurodegenerativas, como a Doença de Huntington (DH). Estudos pré-clínicos e clínicos evidenciam uma infrarregulação notável dos receptores CB1 nos gânglios da base, característica presente mesmo antes do início dos sintomas clínicos da DH.4 Essa perda funcional de receptores CB1 emerge como um dos principais mecanismos patogênicos da DH, influenciando diretamente a gravidade e a progressão da doença.5

A função neuroprotetora dos receptores CB1 está particularmente associada aos neurônios corticostriatais glutamatérgicos, cujos receptores CB1 desempenham um papel essencial na modulação da neurotransmissão glutamatérgica. Esses receptores, localizados nas fibras corticostriatais, exercem uma neuroproteção preferencial sobre os neurônios espinhais estriatais da via direta, que expressam receptores dopaminérgicos D1, responsáveis pelo controle dos movimentos voluntários.6 A disfunção e a excitotoxicidade dos neurônios da via indireta, que expressam receptores D2, são exacerbadas pela perda de função dos receptores CB1, contribuindo para a manifestação dos movimentos coreicos característicos da DH.6

A presença do trato de poliglutamina expandido na huntingtina mutante altera a interação com fatores de transcrição nuclear, resultando em uma desregulação significativa da transcrição gênica, incluindo a redução da expressão do receptor CB1. Essa redução na expressão do receptor CB1 é observada em tecidos cerebrais post-mortem de pacientes com DH, destacando ainda mais a importância desse receptor canabinoide na patologia da doença.7

Além dos receptores CB1, o receptor CB2 também é relevante na DH. Em consonância com outras doenças neurodegenerativas, observa-se um aumento substancial na expressão de CB2 em células imunológicas no sistema nervoso central e periférico. A ativação farmacológica dos receptores CB2 tem demonstrado efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores, enquanto a exclusão genética dos mesmos agrava a progressão da doença, evidenciando seu potencial terapêutico.8

Outro alvo terapêutico emergente é o receptor nuclear PPARγ, conhecido por seu papel na modulação de processos inflamatórios e neurodegenerativos. A ativação de PPARγ por fitocanabinoides, como CBG (Canabigerol) e THCA (Ácido Tetrahidrocanabonólico), ou por derivados sintéticos como o VCE-003.2, pode representar uma estratégia valiosa para a intervenção na DH. O potencial sinérgico desses compostos na redução da resposta inflamatória e na proteção neuronal oferece uma perspectiva promissora para novos tratamentos na DH, destacando a importância das terapias baseadas em cannabis como uma abordagem inovadora e relevante no manejo dessa condição desafiadora.9

Saiba mais sobre o Canabigerol, um canabinoide emergente, que tem demonstrado potencial terapêutico em diversas condições clínicas aqui: Canabigerol (CBG): o Canabinoide emergente (wecann.academy)

Evidências Científicas 

A investigação científica sobre o impacto dos canabinoides no tratamento da Doença de Huntington tem avançado consideravelmente nas últimas décadas, oferecendo insights promissores, embora ainda preliminares, sobre o potencial terapêutico desses compostos. As primeiras evidências clínicas surgiram em 1986, quando um pequeno estudo nos Estados Unidos avaliou o uso de canabidiol (CBD) em pacientes com DH refratária a neurolépticos. Os participantes receberam doses iniciais de 300 mg/dia, aumentadas para 600 mg/dia após uma semana, resultando em uma melhora modesta, mas significativa, nos sintomas de coreia, conforme mensurado por uma escala motora específica. Curiosamente, a interrupção do tratamento levou ao retorno rápido dos sintomas motores, sugerindo uma relação direta entre o uso de CBD e a modulação dos movimentos involuntários na DH.10

Em 2009, um estudo piloto conduzido no Reino Unido investigou a eficácia da nabilona, um análogo sintético do tetraidrocanabinol (THC), em pacientes com DH. Embora o estudo não tenha identificado melhorias na pontuação motora total da Escala Unificada de Avaliação da Doença de Huntington (UHDRS) após cinco semanas de tratamento, observou-se uma melhora significativa em variáveis secundárias, incluindo sintomas neuropsiquiátricos e aspectos motores específicos. Esses achados destacaram o potencial da nabilona como uma intervenção segura e bem tolerada para o manejo de determinados sintomas da DH.11

Adicionalmente, a distonia, um dos sintomas mais debilitantes e prevalentes na DH, tem sido um foco de estudos recentes envolvendo diferentes tratamentos à base de cannabis, como nabiximols, nabilona e dronabinol. Resultados preliminares indicam que os canabinoides podem não apenas aliviar a distonia, mas também melhorar a qualidade de vida dos pacientes, com benefícios em aspectos motores, como marcha e coordenação, bem como em sintomas comportamentais como irritabilidade e apatia. Esses achados são particularmente relevantes, dado o papel potencial dos canabinoides na modulação dos sistemas neurotransmissores envolvidos na DH, incluindo o sistema endocanabinoide e a neurotransmissão glutamatérgica.3

Essas evidências sugerem que os canabinoides podem ter um papel neuroprotetor na Doença de Huntington, modulando processos inflamatórios e promovendo a sobrevivência dos neurônios. Embora os estudos clínicos até agora tenham confirmado a segurança do uso desses compostos, a comprovação de sua eficácia terapêutica ainda requer estudos adicionais de maior escala e rigor metodológico. Futuros avanços nas pesquisas deverão focar na otimização das doses, na identificação de subgrupos específicos de pacientes que possam se beneficiar mais e na exploração de combinações de canabinoides com outras terapias emergentes. Isso pode abrir caminho para tratamentos mais eficazes e personalizados para a Doença de Huntington, potencialmente melhorando a qualidade de vida dos pacientes.

Conclusão

As evidências atuais destacam os canabinoides como uma abordagem terapêutica promissora para a Doença de Huntington, oferecendo um potencial significativo além do tratamento sintomático convencional. Ao modular o sistema endocanabinoide e exercer efeitos neuroprotetores e anti-inflamatórios, esses compostos abrem novas perspectivas para o manejo dessa condição neurodegenerativa. 

Nesse cenário, é essencial que os médicos permaneçam atualizados sobre os avanços no uso terapêutico da cannabis medicinal, garantindo a melhor abordagem para seus pacientes. A WeCann desempenha um papel vital ao fornecer conteúdos técnicos de alta qualidade sobre cannabis medicinal, baseados em rigor científico. Dessa forma, a WeCann facilita a incorporação segura da cannabis na prática clínica, promovendo uma abordagem mais assertiva e personalizada para pacientes portadores de transtornos crônicos, refratários e incapacitantes.

Referências

  1. Walker,F. O. Huntington’s discase. The L ancet 369, 218-228 (2007). 
  2. Claassen, D. O. et al. Real-World Adherence to Tetrabenazine or Deutetrabenazine Among Patients With Huntington’s Discase: A Retrospective Databasc Analysis. Neucrol. Ther: 11, 435-448 (2022).
  3. Saft, C. et al. Cannabinoids for Treatment of Dystonia in Huntington’s Discasc.J. Huntingt. Dis. 7, 167-173 (2018).
  4. Van Lacre, K. et al. Widespread Decrease of Type 1 Cannabinoid Receptor Availability in Huntington Disease In Vivo. J. Nudl. Med. 51, 1413-1417 (2010).
  5. Blázquez, C.ct al. Loss of striatal type 1 cannabinoid receptors is a key pathogenic factor in Huntington’s diseasc. Brain 134, 1 19-136 (2011). 
  6. Chiarlone, A.et al. A restricted population of CB 1 cannabinoid receptors with neuroproecieacity, Proc. Natl. Acad, Sci. 111, 8257-8262 2014). 
  7. Kuhn, A. et al. Mutant huntingtin’s effects on striatal gene expression in mice recapitulate changes observed in human Huntington’s disease brain and do not differ with mutant huntingtin length or wild-type huntingtin dosage. Hum. Mol. Genet. 16, 1845-1861 (2007). 
  8. Bouchard,J.et al, Cannabinoid Receptor 2 Signaling in Peripheral Immune Cells Modulates Disease Onset and Severity in Mouse Models of Huntington’s Disease. J. Neurosci. 32, 18259-18268 (2012).
  9. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  10. Sandyk, R., Consroe, P., Stern, L. Z. & Snider, S Effects of cannabidiol in Huntington’s disease, Neurology 36, 342 (1986).
  11. Curtis, A., Mitchell, I., Patel, S., Ives,N.& Rickards H. A pilot study using nabilone for symptomatic treatment in Huntington’s disease. Mov. Disord. 24. 2254-2259 (2009).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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