Cannabis no tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)

Publicado em 27/09/24 | Atualizado em 21/11/24 Leitura: 12 minutos

Sem categoria

O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é uma condição neuropsiquiátrica que se desenvolve após a exposição a eventos traumáticos significativos, como abuso, guerra, desastres naturais ou acidentes graves. Este transtorno é caracterizado por uma variedade de sintomas, incluindo a reexperiência intrusiva do evento, o evitamento de estímulos relacionados ao trauma, alterações negativas na cognição e no humor, e uma hiperexcitação persistente. O impacto do TEPT na qualidade de vida dos pacientes é profundo, muitas vezes comprometendo sua capacidade de funcionar tanto social quanto profissionalmente. Nesse cenário, a cannabis, particularmente os fitocanabinoides como o THC e o CBD, tem ganhado destaque como uma opção promissora para o manejo do TEPT. No post de hoje vamos explorar como a cannabis tem demonstrado ser uma terapia segura e potencialmente eficaz no tratamento do Transtorno do estresse pós-traumático.

Transtorno do Estresse Pós-Traumático.

De acordo com o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o TEPT é caracterizado por quatro principais clusters de sintomas: reexperiência, evitação, alterações negativas no humor e cognição, e hiperexcitação. Esses sintomas representam uma resposta disfuncional a experiências aversivas, impactando profundamente a psique e o comportamento do indivíduo.¹

O quadro clínico do TEPT inclui sintomas variados. A reexperiência é uma característica marcante, onde o indivíduo revive o trauma através de flashbacks, pesadelos e pensamentos intrusivos, frequentemente experimentando essas lembranças como se estivesse passando novamente pelo evento traumático. A evitação refere-se ao esforço consciente para evitar qualquer estímulo associado ao trauma, como lembranças, lugares, pessoas ou situações. Esse comportamento pode levar a uma significativa limitação da vida social e profissional. ¹

Além disso, as alterações negativas na cognição e no humor envolvem sentimentos persistentes de culpa, vergonha e raiva, além de distorções cognitivas como pensamentos negativos sobre si mesmo e o mundo, e uma sensação de desesperança. A hiperexcitação inclui sintomas como irritabilidade, dificuldades de sono, dificuldade de concentração e reações exageradas a sustos, prejudicando a capacidade de funcionamento diário. Os sintomas podem aparecer semanas ou até anos após o evento traumático e podem variar de leves a severos.¹

O tratamento do TEPT é multidisciplinar, combinando abordagens psicoterápicas e farmacológicas. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) focada no trauma e a dessensibilização e reprocessamento por meio do movimento ocular (EMDR) são as principais abordagens psicoterápicas utilizadas. Essas terapias visam reestruturar padrões de pensamento disfuncionais e processar memórias traumáticas. Os antidepressivos, como paroxetina e sertralina, são frequentemente prescritos para manejar os sintomas, mas apresentam efeitos adversos potenciais como distúrbios do sono e disfunção sexual. Além disso, terapias complementares, como mindfulness e exercícios físicos, e abordagens emergentes como a cannabis medicinal estão sendo exploradas para ajudar no manejo dos sintomas. ²

Apesar das opções de tratamento disponíveis, o manejo do TEPT apresenta limitações significativas. A baixa taxa de resposta e os efeitos adversos dos medicamentos são preocupações comuns, e muitos pacientes não alcançam alívio satisfatório dos sintomas. O impacto do TEPT na qualidade de vida é profundo, comprometendo o bem-estar emocional e físico e afetando as relações interpessoais e a capacidade funcional em atividades diárias e profissionais. A evitação de situações associadas ao trauma pode levar ao isolamento social, enquanto a reexperiência constante do trauma interfere no funcionamento diário. Em suma, o TEPT é uma altamente condição debilitante que requer uma abordagem integrada e personalizada para melhorar os resultados e a qualidade de vida dos pacientes.

O Sistema Endocanabinoide e o TEPT

O sistema endocanabinoide (SEC) é um complexo sistema de sinalização neuroquímica que desempenha um papel crucial na regulação de diversas funções fisiológicas e comportamentais, incluindo a resposta ao estresse, a modulação da ansiedade e a memória emocional. Composto por endocanabinoides como a anandamida e o 2-arachidonoilglicerol (2-AG), e receptores canabinoides como o CB1 e CB2, o SEC está amplamente distribuído no sistema nervoso central e periférico. Essas moléculas e seus receptores colaboram para manter a homeostase, influenciando processos como a percepção da dor, a resposta ao estresse e as funções cognitivas.²

No contexto do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, o SEC emerge como um sistema vital para a compreensão dos mecanismos neurobiológicos envolvidos e para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas. O TEPT é uma condição complexa desencadeada por experiências traumáticas severas, levando a uma série de disfunções neurobiológicas e comportamentais. A relação entre o SEC e o TEPT é de particular interesse devido ao papel deste sistema na regulação da resposta emocional e na modulação das memórias traumáticas.

Pesquisas recentes indicam que indivíduos com TEPT apresentam alterações significativas na funcionalidade do SEC. Estudos observacionais e experimentais mostram que os níveis de endocanabinoides, especialmente o 2-AG, podem estar reduzidos em pacientes com TEPT. Essa redução na concentração de 2-AG está associada à persistência de sintomas, como reexperiência intrusiva e hiperexcitação. Adicionalmente, a anandamida, outro endocanabinoide relevante, tem mostrado correlação com os níveis de cortisol, um hormônio crucial na resposta ao estresse. Alterações na regulação da anandamida podem contribuir para a dificuldade em modular o estresse e a intensidade das lembranças traumáticas.³

Destaca-se que os receptores canabinoides CB1 desempenham um papel fundamental na modulação da memória emocional e na extinção das memórias aversivas, processos essenciais para a adaptação e recuperação após eventos traumáticos. Portanto, a ativação dos receptores CB1 pode influenciar a forma como as memórias traumáticas são processadas e armazenadas, afetando a capacidade do indivíduo de integrar e superar experiências negativas.² Estudos experimentais demonstram que o tetraidrocanabinol (THC), um fitocanabinoide que se liga aos receptores CB1, pode alterar a reexperiência de memórias traumáticas e proporcionar alívio dos sintomas relacionados ao TEPT. O THC, ao modular a atividade dos receptores CB1, pode reduzir a intensidade das lembranças intrusivas e a resposta ao estresse, oferecendo um alívio sintomático significativo.4

Principais achados sobre as alterações dos componentes do SEC em modelos animais e pacientes com ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Principais achados sobre as alterações dos componentes do SEC em modelos animais e pacientes com ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

 

O canabidiol (CBD), outro fitocanabinoide com perfil não psicotrópico, também tem sido investigado por seu potencial terapêutico no tratamento do TEPT. O CBD atua em diversos sistemas neuroquímicos, incluindo o SEC, com efeitos ansiolíticos e antipsicóticos. Sua capacidade de modular a atividade do SEC sem induzir efeitos psicotrópicos pode representar uma alternativa terapêutica viável para pacientes com TEPT. Além disso, o CBD tem mostrado potencial para melhorar a qualidade do sono e reduzir a ansiedade, dois fatores frequentemente comprometidos no TEPT.²

Evidências Científicas

O crescente interesse científico no uso da cannabis para o tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático reflete a busca por alternativas terapêuticas mais eficazes para lidar com os sintomas debilitantes dessa condição. Nos últimos anos, uma série de estudos pré-clínicos e clínicos têm investigado o potencial dos fitocanabinoides, compostos ativos da cannabis, como agentes terapêuticos para o TEPT.

Uma das primeiras evidências significativas nesse campo surgiu em 2009, com um estudo clínico aberto que explorou a eficácia da nabilona, um canabinoide sintético similar ao THC, no tratamento de pesadelos persistentes em pacientes com TEPT. Conduzido no Canadá, esse estudo envolveu a administração de doses de nabilona variando entre 0,5 mg e 6 mg. Os resultados foram promissores, com 72% dos pacientes relatando uma redução significativa tanto na frequência quanto na intensidade dos pesadelos. Além disso, observou-se uma melhora substancial na duração e qualidade do sono, bem como uma diminuição nos flashbacks relacionados ao trauma. Essas descobertas sugerem que a nabilona pode ser uma opção eficaz para o manejo de sintomas específicos do TEPT.5

Avançando para estudos subsequentes, um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e cruzado, também conduzido no Canadá, reforçou a eficácia da nabilona, desta vez em uma amostra composta por militares com TEPT. Nesse estudo, doses de nabilona entre 0,5 mg e 3 mg foram administradas, resultando em uma redução significativa nos pesadelos e em uma melhora na Impressão Clínica Global de Mudança (CGI-C) em 50% dos pacientes que receberam o medicamento, comparado a apenas 11% no grupo placebo. Esses achados destacam o potencial da nabilona como uma ferramenta terapêutica valiosa no tratamento de sintomas específicos do TEPT, especialmente em populações militares.6

Outro estudo importante, realizado em 2014, focou no uso do THC oral como uma terapia adjuvante para pacientes com TEPT resistente ao tratamento convencional. Neste estudo, a administração de 5 mg de THC duas vezes ao dia levou a melhorias significativas na gravidade geral dos sintomas, na qualidade do sono, na frequência de pesadelos e nos sintomas de hiperexcitação.7 Esses resultados fornecem suporte adicional para o uso do THC como uma opção terapêutica viável para o manejo do TEPT, especialmente em casos resistentes às abordagens tradicionais.

Em uma investigação mais recente, conduzida por Rabinak et al. em 2021, foi explorado o efeito de uma dose aguda de THC na reatividade cortico-límbica em adultos com TEPT. O estudo administrou 7,5 mg de THC e observou uma redução na reatividade da amígdala em resposta a ameaças, além de uma ativação aumentada do córtex pré-frontal medial. Esses achados sugerem que o THC pode desempenhar um papel na modulação das respostas emocionais, potencialmente oferecendo alívio para os sintomas associados ao TEPT.8

Por fim, um estudo realizado por Pacitto et al. em 2022 avaliou o impacto de uma dose baixa de THC na regulação emocional em pacientes com TEPT. Os resultados mostraram melhorias na ativação do córtex pré-frontal dorsomedial e do cerebelo, além de uma redução do afeto negativo. O THC demonstrou restaurar a ativação em áreas cerebrais específicas, sugerindo que esse canabinoide pode ser uma ferramenta complementar útil na terapia de reavaliação cognitiva para pacientes com TEPT.9 Esses estudos, embora ainda preliminares, apontam para o potencial promissor dos derivados canabinoides, no tratamento do TEPT. As evidências acumuladas indicam, portanto, que esses compostos podem proporcionar alívio significativo para alguns dos sintomas mais desafiadores dessa condição, oferecendo um potencial promissor para pacientes que lutam com os efeitos debilitantes do TEPT.

Saiba mais sobre o Delta-9-Tetraidrocanabinol (Δ9-THC), o principal canabinoide da cannabis, seus efeitos psicotrópicos e potencialmente terapêuticos aqui: Delta-9-Tetraidrocanabinol (Δ9-THC): tudo que você precisa saber! – WeCann Academy

Conclusão

A cannabis surge como uma alternativa promissora no tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, oferecendo uma abordagem terapêutica inovadora para uma condição que frequentemente desafia as opções convencionais. Os fitocanabinoides têm demonstrado um potencial significativo na redução dos sintomas do TEPT, evidenciando a eficácia da cannabis no alívio de sintomas como reexperiência traumática e hiperexcitação. A crescente evidência científica reforça o uso da cannabis como uma ferramenta valiosa no manejo do TEPT, sublinhando a importância de integrar tratamentos tradicionais com abordagens emergentes para otimizar o cuidado ao paciente.

Nesse cenário, é crucial que os médicos acompanhem de perto os avanços no uso terapêutico da cannabis medicinal. A WeCann se destaca nesse processo, oferecendo conteúdo técnico de alta qualidade, continuamente atualizado e fundamentado em evidências científicas. Através dessas iniciativas, a WeCann facilita a integração segura da cannabis na prática clínica, apoiando uma abordagem terapêutica mais assertiva e direcionada.

 

Referências

  1. Sbardelloto G, Schaefer LS, Justo AR, Haag Kristensen C. Transtorno de estresse pós-traumático: evolução dos critérios diagnósticos e prevalência. Psico-USF [Internet]. 2011Jan;16(1):67–73. Available from: https://doi.org/10.1590/S1413-82712011000100008
  2. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  3. Hill, M. N. et al. Reductions in circulating endocannabinoid levels in individuals with post- traumatic stress disorder following exposure to the world trade center attacks. Psychoneuroendocrinology 38, 2952-2961 (2013).
  4. Raymundi, A. M., Da Silva, T. R., Sohn, J. M. B., Bertoglio, L. J. & Stern, C. A. Effects of 19-tetrahydrocannabinol on aversive memories and anxiety: a review from human studies. BMC Psychiatry 20, 420 (2020). 
  5. Fraser, G. A. The Usc of a Synthetic Cannabinoid in the Management of Treatment-Resistant Nightmares in Posttraumatic Stress Disorder (PTSD). CNS Neurosci. Ther. 15, 84-88 (2009).
  6. 66. Jetly, R., Heber, A., Fraser, G. & Boisvert, D. The efficacy of nabilone, a synthetic cannabinoid, in the treatment of PTSD-associated nightmares: A preliminary randomized, double-blind placebo-controlled design study. cross-over Psychoneuroendocrinology 51, 585-588 (2015). 
  7. Roitman, P., Mechoulam, R. Cooper-Kazaz, R. & Shaley, A. Preliminary, Open-Label, Pilot Study of Add-On Oral 49-Tetrahydrocannabinol in Chronic Post-Traumatic Stress Disorder. Clin. Drug Investig. 34, 587-591 (2014).
  8. Rabinak, C. A. et al. Cannabinoid modulation of corticolimbic activation to threat in trauma-exposed adults: a preliminary study. Psychopharmacology (Berl.) 237, 18 13-1826 (2020).
  9. Pacitto, R., Peters, C.., ladipaolo, A. & Rabinak, C. A. Cannabinoid modulation of brain activation during volitional regulation of negative afflect in trauma-exposed adults. Neuropharmacology 218, 109222 (2022).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

Mantenha-se atualizado. Cadastre-se e receba conteúdos exclusivos e tecnicamente qualificados.


    Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

    Assine nossa
    
newsletter.

      Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

      Artigos relacionados