Cannabis e Doença de Parkinson: Explorando o potencial terapêutico

Publicado em 09/09/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 11 minutos

Neurológicas

A Doença de Parkinson (DP) é um distúrbio neurodegenerativo progressivo que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Caracterizada pela perda de neurônios dopaminérgicos na substância negra do cérebro, a DP leva a sintomas motores debilitantes, como tremores, rigidez muscular e bradicinesia, além de uma série de sintomas não motores, incluindo distúrbios do sono, oscilações do humor, constipação intestinal e dor crônica. Com as limitações dos tratamentos convencionais, como a levodopa, que frequentemente perde eficácia ao longo do tempo e pode causar efeitos colaterais indesejados, a busca por terapias complementares tem se intensificado. Nesse contexto, a cannabis emerge como uma opção promissora, despertando interesse tanto na comunidade médica quanto entre os pacientes. No post de hoje iremos explorar o potencial terapêutico da cannabis na Doença de Parkinson.

Entendendo a Doença de Parkinson

A Doença de Parkinson  é um distúrbio neurodegenerativo crônico e progressivo que afeta o sistema nervoso central, principalmente nas áreas do cérebro responsáveis pelo controle dos movimentos. Ela foi descrita pela primeira vez pelo médico inglês James Parkinson em 1817, em um trabalho intitulado “An Essay on the Shaking Palsy”.¹

A causa exata da DP ainda não é completamente compreendida, mas sabe-se que envolve a perda gradual de neurônios dopaminérgicos na substância negra, uma região do cérebro que desempenha um papel crucial na coordenação dos movimentos. A dopamina, o neurotransmissor produzido por esses neurônios, é responsável por transmitir sinais que ajudam a iniciar e controlar os movimentos do corpo. A diminuição dos níveis de dopamina resulta em dificuldades para controlar os movimentos, levando aos sintomas característicos da doença. Os fatores de risco para o desenvolvimento da DP incluem a idade avançada (é mais comum em pessoas com mais de 60 anos), predisposição genética, exposição a toxinas ambientais (como pesticidas e herbicidas) e histórico familiar da doença. 

A DP é caracterizada por um conjunto diversificado de sintomas que se desenvolvem de maneira lenta e progressiva, afetando tanto a função motora quanto não motora dos indivíduos. Entre os sintomas motores, destacam-se o tremor em repouso, que frequentemente inicia em uma mão e pode se disseminar para outras partes do corpo à medida que a doença avança, e a bradicinesia, que se manifesta como uma lentidão nos movimentos, dificultando tarefas cotidianas como caminhar ou levantar-se. Além disso, a rigidez muscular pode resultar em dor e limitação dos movimentos, enquanto a instabilidade postural compromete o equilíbrio e aumenta o risco de quedas. 

Por outro lado, os sintomas não motores, que são igualmente debilitantes, incluem distúrbios do sono, como insônia, síndrome das pernas inquietas e sonolência diurna excessiva, além de oscilações de humor, como depressão e ansiedade, e alterações autonômicas como sialorreia, constipação intestinal, disfunção vesical e hipotensão arterial ortostática. Em estágios avançados, a DP pode levar a problemas cognitivos significativos, como demência, afetando a memória e a capacidade de raciocínio. Fadiga constante e dores musculares e articulares também são comuns, exacerbando ainda mais as dificuldades enfrentadas pelos pacientes.

Os tratamentos convencionais para a DP, embora eficazes em controlar os sintomas motores nos estágios iniciais, enfrentam várias limitações ao longo do tempo. O principal medicamento utilizado, a levodopa, ajuda a repor a dopamina no cérebro, aliviando sintomas como tremores e rigidez. No entanto, com o uso prolongado, muitos pacientes desenvolvem complicações motoras, como discinesias (movimentos involuntários) e flutuações motoras, onde os efeitos do medicamento se tornam imprevisíveis e menos duradouros. 

Além disso, a levodopa e outros medicamentos dopaminérgicos podem causar efeitos colaterais importantes, incluindo náuseas, alucinações, confusão mental e distúrbios do sono. À medida que a doença progride, os sintomas não motores, como depressão, ansiedade e problemas cognitivos, muitas vezes não respondem bem aos tratamentos convencionais, o que limita ainda mais a eficácia global da terapia. Nesse cenário, a cannabis surge como uma alternativa promissora. Derivados canabinoides como o CBD e o THC têm mostrado potencial para aliviar tanto sintomas motores quanto não motores, oferecendo uma terapia complementar com potencial de impactar positivamente a qualidade de vida desses pacientes.

O Sistema Endocanabinoide e a Doença de Parkinson

O sistema endocanabinoide (SEC) é um modulador essencial de várias funções fisiológicas, incluindo a neuroproteção, a regulação da dor, e o controle do humor. O SEC consiste essencialmente em receptores canabinoides (CB1 e CB2), substâncias endocanabinoides (como a anandamida e o 2-AG) e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses compostos. No contexto da DP, o SEC desempenha um papel crucial na modulação da neurotransmissão dopaminérgica, o que sugere seu potencial como alvo terapêutico para mitigar os sintomas da doença.

Pesquisas pré-clínicas têm elucidado a influência do SEC nos circuitos neuronais dos gânglios da base, áreas cerebrais fundamentais para a coordenação motora. Estudos mostram que a expressão alterada dos receptores CB1 e GPR55, juntamente com níveis elevados de anandamida e 2-AG, está associada a efeitos neuroprotetores.² Estes componentes do SEC demonstram um potencial preventivo contra a apoptose dos neurônios dopaminérgicos, um dos principais eventos patológicos na DP. Além disso, a inibição da FAAH, uma enzima que degrada a anandamida, tem se mostrado eficaz em reduzir a morte neuronal e a neuroinflamação, melhorando os sintomas motores associados à doença.³

A ativação dos receptores CB2, que estão suprarregulados em diversos modelos de DP, representa uma abordagem terapêutica promissora. A estimulação desses receptores na microglia e nas células astrocitárias promove efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores, reduzindo a liberação de citocinas pró-inflamatórias e aumentando a produção de moléculas anti-inflamatórias. Além disso, essa ativação oferece proteção contra o estresse oxidativo, um fator chave na progressão da DP.4

Os agonistas dos receptores CB2 têm se mostrado promissores no combate à inflamação e na proteção neuronal em doenças como Parkinson e Alzheimer. Ambas as condições envolvem o acúmulo de proteínas patológicas — α-sinucleína no Parkinson e placas amiloides no Alzheimer — que ativam microglia e astrócitos, resultando em uma inflamação neurodegenerativa. A ativação dos receptores CB2 pode mitigar essa resposta inflamatória, reduzindo a liberação de substâncias prejudiciais e promovendo um ambiente mais protetor para os neurônios. Essa abordagem oferece uma nova esperança para o tratamento dessas doenças neurodegenerativas, ao focar na modulação da resposta inflamatória e na preservação da saúde neuronal.4

Representação esquemática das ações anti-inflamatórias e neuroprotetoras dos agonistas do receptor CB2 na Doença de Parkinson e na Doença de Alzheimer. Fonte: Montagner & De Salas-Quiroga, Tratado de Medicina Endocanabinoide, 2023.
Representação esquemática das ações anti-inflamatórias e neuroprotetoras dos agonistas do receptor CB2 na Doença de Parkinson e na Doença de Alzheimer. Fonte: Montagner & De Salas-Quiroga, Tratado de Medicina Endocanabinoide, 2023.

 

Evidências Científicas

Os fitocanabinoides, como o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), têm mostrado potencial terapêutico substancial em estudos pré-clínicos e clínicos. O THC e o CBD, são conhecidos por seus efeitos neuroprotetores e anti-inflamatórios. Estudos sugerem que tanto o THC quanto o CBD ajudam a mitigar a neuroinflamação e o estresse oxidativo, que são fatores críticos na patologia da DP. A nabilona, um canabinoide sintético similar ao THC, também demonstrou eficácia na redução da discinesia induzida por L-DOPA em pacientes com DP, de acordo com o ensaio clínico randomizado duplo-cego conduzido por Sicradzan et al. (2001).5

Uma metanálise conduzida por Junior et al. (2020) revelou que o CBD e outros derivados canabinoides apresentam efeitos terapêuticos na discinesia induzida por L-DOPA, corroborando as descobertas prévias sobre a eficácia dos canabinoides nesse contexto.6 Em um estudo brasileiro realizado por Zuardi et al. (2009), o uso de CBD isolado em pacientes com DP e sintomas psicóticos resultou em uma redução significativa dos sintomas psicóticos e na melhoria das pontuações na Escala Unificada de Avaliação da Doença de Parkinson (UPDRS), sem efeitos adversos relevantes.7

Outra pesquisa conduzida pela Universidade de São Paulo em 2009, também demonstrou os benefícios do CBD na redução de sintomas psicóticos em pacientes com DP. Os pacientes com DP que receberam 150 mg de CBD por dia, além de sua terapia padrão, apresentaram redução significativa nos sintomas psicóticos, sem piora na função motora.8 Ensaios clínicos recentes têm corroborado resultados promissores nesse cenário. 

Diversos estudos sugerem que o uso de cannabis pode melhorar a qualidade de vida de pacientes com DP, aliviando sintomas como tremores, rigidez muscular e distúrbios do sono. Em um estudo publicado no Journal of Clinical Pharmacy and Therapeutics, observou-se que o CBD diminuiu os sintomas do distúrbio comportamental do sono REM (RBD), condição comumente associada à DP.9

Faria et al. (2020) conduziram estudo de fase II e relataram que a administração aguda de CBD isolado em doses de 300 mg/dia conseguiu reduzir a amplitude dos tremores e a ansiedade em pacientes com DP.10 Da mesma forma, o ensaio clínico de Peball et al. (2020) demonstrou que a nabilona, titulação em doses de 0,25 mg/dia a 1 mg/dia, foi eficaz na redução dos sintomas não motores e melhorou a qualidade do sono em pacientes com problemas de sono relacionados à DP.11

Adicionalmente, um estudo publicado na Frontiers in Pharmacology em 2028, demonstrou que o CBD pode ter um papel preventivo no aparecimento dos sintomas motores anormais em modelos animais de Parkinson.12 

Em suma, as evidências atuais sugerem que os canabinoides, incluindo o THC, o CBD e a nabilona, podem oferecer benefícios significativos na gestão de sintomas da DP. Porém, são necessários mais estudos com amostras maiores e períodos de acompanhamento mais prolongados para estabelecer conclusões definitivas e protocolos terapêuticos mais claros. 

Explore também o potencial terapêutico do canabidiol no tratamento da Doença de Alzheimer aqui: Canabidiol para a Doença de Alzheimer: Potencial terapêutico (wecann.academy)

Conclusão

O potencial terapêutico da cannabis na Doença de Parkinson tem se revelado promissor, com evidências científicas apoiando a eficácia de compostos como THC, CBD e nabilona na gestão dos sintomas da doença. No entanto, apesar dos resultados, é fundamental que mais pesquisas com amostras maiores e períodos de acompanhamento mais prolongados sejam realizadas para confirmar essas descobertas e refinar os protocolos terapêuticos. A integração de terapias baseadas em cannabis no manejo da DP pode representar um avanço significativo na busca por alternativas complementares à levodopa e outros tratamentos convencionais, oferecendo novos caminhos para melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Nesse sentido, é fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem sempre referências de fontes confiáveis, sobre o uso da cannabis medicinal. Nesse contexto, a WeCann é uma valiosa aliada, oferecendo informações sobre cannabis medicinal sempre respaldadas por evidências científicas qualificadas. 

Referências

  1. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023. 
  2. Hurley, M.J., Mash, D. C. & Jenner, P. Expression of cannabinoid CB 1 receptor mRNA in basal ganglia of normal and parkinsonian human brain.J.Neural Transm. 110, 1279-1288 (2003).
  3. Viveros-Paredes, J. M. et al. Effect of inhibition of fatty acid amide hydrolase on MPTP-induced dopaminergic neuronal damage. Neurol. Engl. Ed. 34, 143-152 (2019). 
  4. Cassano,T. et al. Cannabinoid Receptor 2 Signaling in Neurodegenerative Disorders: From Pathogenesis to a Promising Therapeutic Target. Front. Neurosci. 11,(2017).
  5. Sieradzan, K. A. et al Cannabinoids reduce levodopa-induced dyskinesia in Parkinson’s disease: A pilot study. Neurology 57, 2108-21 1 1 (2001).
  6. Junior, N. C.F., dos-Santos-Pereira, M., Guimarães, F.S. & Del Bel, E. Cannabidiol and Cannabinoid Compounds as Potential Strategies for Treating Parkinson’s Disease and l-DOPA-Induced Dyskinesia. Neurotox. Res. 37, 12-29 (2020). 
  7. Zuardi, A. et al, Cannabidiol for the treatment of psychosis in Parkinson’s disease. J Psychopharmacol 6 (2008). 
  8. Zuardi AW, Crippa JA, Hallak JE, Pinto JP, Chagas MH, et al. Cannabidiol for the treatment of psychosis in Parkinson’s disease. J Psychopharmacol. 2009;23(8):979-83. https://doi. org/10.1177/0269881108096519.
  9. Chagas MH, Eckeli AL, Zuardi AW, et al. Cannabidiol can improve complex sleep-related behaviours associated with rapid eye movement sleep behaviour disorder in Parkinson’s disease patients: a case series. J Clin Pharm Ther. 2014;39(5):564-6. doi:10.1111/jcpt.12179
  10. de Faria, S. M. et al. Effects of acute cannabidiol administration on anxiety and tremors induced by a Simulated Public Speaking Test in patients with Parkinson’s disease. J. Psychopharmacol. (Oxf:) 34, 189-196 (2020).
  11. Peball, M. et al. Non-Motor Symptoms in Parkinson’s Disease are Reduced by Nabilone. Ann. Neurol. 88 712-722 (2020).
  12. Peres FF, Lima AC, Hallak JEC, Crippa JA, Silva RH, Abílio VC. Cannabidiol as a Promising Strategy to Treat and Prevent Movement Disorders?. Front Pharmacol. 2018;9:482. doi:10.3389/fphar.2018.00482
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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