A esteatose hepática representa um espectro de alterações morfofuncionais caracterizadas pelo acúmulo patológico de lipídios nos hepatócitos, constituindo um desafio crescente na prática clínica contemporânea. Dados epidemiológicos do Global Burden of Disease Study evidenciam a magnitude desse problema, com as hepatopatias respondendo por aproximadamente 2 milhões de óbitos anuais, o que corresponde a 4% da mortalidade global.
A etiologia multifatorial da esteatose hepática, compreendendo desde desregulações metabólicas até insultos tóxicos, impõe a necessidade de abordagens terapêuticas que atuem sobre diferentes vias patogênicas. Nesse contexto, a cannabis medicinal emerge como potencial agente terapêutico, motivando investigações acerca de suas propriedades anti-inflamatórias, antioxidantes e imunomoduladoras potencialmente benéficas no manejo das doenças hepáticas esteatóticas.
A Doença Hepática Gordurosa: Patologia e Evolução
A Doença Hepática Esteatótica Metabólica (DHEM), anteriormente classificada como Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (DHGNA), apresenta prevalência global estimada em 30%, configurando-se como a hepatopatia de maior expressão epidemiológica na atualidade. A recente reclassificação nosológica propõe os termos MASLD (Metabolic Dysfunction-Associated Steatotic Liver Disease) e MASH (Metabolic Dysfunction-Associated Steatohepatitis) para designar, respectivamente, o espectro de manifestações hepáticas associadas à disfunção metabólica e sua forma inflamatória avançada, enfatizando o papel central das alterações metabólicas em sua fisiopatologia.¹
A etiopatogenia da DHEM envolve mecanismos interconectados que promovem o desequilíbrio na homeostase lipídica hepatocelular:
- Hiperativação da lipogênese de novo: Mediada pela elevação da via SREBP-1c (Sterol Regulatory Element-Binding Protein 1c) em resposta à hiperinsulinemia e resistência insulínica periférica.
- Comprometimento da β-oxidação mitocondrial de ácidos graxos: Decorrente da disfunção mitocondrial secundária ao estresse oxidativo e à sobrecarga metabólica.
- Deficiência na exportação hepatocitária de triglicerídeos: Associada a alterações na síntese e secreção de lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL), comprometendo o efluxo lipídico hepatocelular.
A progressão da MASLD para MASH caracteriza-se por uma cascata de eventos inflamatórios desencadeados pelo acúmulo lipídico que culmina em lesão hepatocelular. Este processo envolve a ativação das células de Kupffer com subsequente liberação de mediadores pró-inflamatórios (TNF-α, IL-1β, IL-6), peroxidação lipídica induzida por espécies reativas de oxigênio (EROs) e estimulação das células estreladas hepáticas, que se diferenciam em miofibroblastos produtores de matriz extracelular, estabelecendo o substrato para a fibrogênese progressiva e, potencialmente, para a cirrose e o carcinoma hepatocelular (CHC).¹
Abordagem Terapêutica Atual e Limitações
O arsenal terapêutico convencional para DHEM caracteriza-se por notável escassez de opções farmacológicas específicas com eficácia comprovada. As diretrizes atuais da EASL (European Association for the Study of the Liver) e AASLD (American Association for the Study of Liver Diseases) enfatizam primordialmente intervenções não-farmacológicas centradas na modificação de estilo de vida.
A perda ponderal sustentada permanece como pilar terapêutico fundamental, com evidências indicando que reduções de 7-10% do peso corporal associam-se à melhora histológica significativa, incluindo resolução da esteato-hepatite e regressão parcial da fibrose. Contudo, a adesão a longo prazo a modificações dietéticas e programas de atividade física estruturada permanece insatisfatória, com taxas de sucesso raramente excedendo 10% em estudos longitudinais.
O tratamento da MASLD/MASH deve ser individualizado, levando em conta fatores metabólicos, presença de comorbidades e o grau de comprometimento hepático, sempre priorizando a abordagem multidisciplinar para otimização dos resultados. No âmbito farmacológico, apesar de numerosos ensaios clínicos, nenhum medicamento conquistou aprovação regulatória específica para MASLD/MASH.
Essa lacuna terapêutica, associada ao crescente reconhecimento da importância do sistema endocanabinoide na fisiopatologia hepática, tem fomentado investigações sobre o potencial da cannabis medicinal como parte da intervenção multimodal para DHEM.
A cannabis medicinal representa uma abordagem inovadora e promissora no manejo da DHEM, fundamentada em evidências crescentes sobre a interação entre fitocanabinoides e mecanismos patogênicos centrais da doença. O racional terapêutico assenta-se na capacidade dos compostos canabinoides de intervir simultaneamente em múltiplas vias fisiopatológicas.
Sistema Endocanabinoide e Fígado Gorduroso
O sistema endocanabinoide (SEC) é um complexo sistema de sinalização celular com papel fundamental na regulação de diversos processos fisiológicos, incluindo o metabolismo hepático. Sua relação com a Doença Hepática Esteatótica Metabólica tem sido objeto de crescente interesse científico, especialmente devido ao seu potencial como alvo terapêutico.
A crescente prevalência da DHEM, tem estimulado a busca por novos alvos terapêuticos, com o sistema endocanabinoide (SEC) emergindo como um elemento central na fisiopatologia desta condição. Estudos recentes elucidaram mecanismos moleculares pelos quais este sistema de sinalização celular influencia o metabolismo hepático, contribuindo significativamente para o desenvolvimento e progressão da esteatose.
O SEC, composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides (principalmente anandamida/AEA e 2-araquidonoilglicerol/2-AG) e enzimas responsáveis por sua síntese e degradação, demonstra regulação alterada em condições de dieta hiperlipídica. Evidências consistentes apontam para uma hiperativação deste sistema em modelos de obesidade, com aumento na expressão hepática de CB1 e elevação dos níveis teciduais de anandamida. Este desequilíbrio desencadeia uma cascata de eventos metabólicos deletérios para a homeostase lipídica hepática.²
A ativação dos receptores CB1 promove múltiplos mecanismos que convergem para o acúmulo lipídico no parênquima hepático. Observa-se intensificação da lipogênese, com incremento na expressão de genes lipogênicos, fenômeno documentado tanto em modelos murinos quanto em pacientes com DHEM.³ Simultaneamente, ocorre supressão da atividade da carnitina palmitoiltransferase-1 (CPT-1), enzima limitante da β-oxidação mitocondrial de ácidos graxos, comprometendo a capacidade hepática de oxidar gorduras. Este duplo efeito – aumento da síntese e redução da oxidação lipídica – estabelece um ambiente propício para a esteatose.4
O SEC exerce ainda influência significativa sobre o fluxo de ácidos graxos entre compartimentos metabólicos. A ativação de receptores CB1 no tecido adiposo estimula a lipogênese e aumenta a atividade da lipoproteína lipase, promovendo liberação de ácidos graxos e sua subsequente transferência para o fígado. Adicionalmente, alterações na síntese e secreção de lipoproteínas hepáticas contribuem para o desbalanço metabólico, com impacto na clearance de triglicerídeos plasmáticos e secreção de VLDL.5
O papel dos receptores CB2 no metabolismo hepático revela-se mais complexo e possivelmente espécie-específico. Sua expressão apresenta notável elevação em condições de esteatose e esteato-hepatite, porém seus efeitos metabólicos parecem divergir entre espécimes. Em ratos, a ativação de CB2 melhora a tolerância à glicose, contrapondo-se aos efeitos do receptor CB1. Paradoxalmente, em camundongos, dados sugerem contribuição do CB2 para esteatose hepática e resistência insulínica. Esta discrepância demanda investigação adicional para elucidação dos mecanismos moleculares subjacentes.²
À luz dos avanços na compreensão do sistema endocanabinoide e seu papel na Doença Hepática Esteatótica Metabólica, emerge uma perspectiva terapêutica inovadora que transcende o paradoxo farmacológico atual. Enquanto o antagonismo seletivo de receptores CB1 periféricos representa uma estratégia promissora para o tratamento da esteatose hepática, compostos específicos derivados da cannabis medicinal, particularmente aqueles com ação agonista sobre receptores CB2, apresentam potencial anti-inflamatório e hepatoprotetor significativo.
Esta abordagem moduladora bidirecional do sistema endocanabinoide, com inibição seletiva de CB1 periférico e estimulação de CB2, configura um horizonte terapêutico personalizado que pode revolucionar o manejo da DHEM, oferecendo aos médicos ferramentas farmacológicas precisas para intervenção em diferentes estágios da doença, desde a esteatose simples até formas mais avançadas com componente inflamatório proeminente.
Evidências Científicas
O complexo entrelaçamento entre o sistema endocanabinoide e a fisiopatologia da Doença Hepática Esteatótica Metabólica tem despertado interesse crescente na comunidade médica. Estudos experimentais e evidências clínicas emergentes sugerem que fitocanabinoides específicos podem influenciar positivamente parâmetros metabólicos e inflamatórios relevantes nesta condição, embora com resultados nem sempre consistentes quanto à redução direta da esteatose.
Em modelos murinos submetidos a dietas hipercalóricas, o canabidiol (CBD) demonstrou propriedades moduladoras sobre o metabolismo energético, com fenômenos aparentemente paradoxais como aumento da ingestão calórica sem elevação ponderal correspondente, sugerindo modificações adaptativas no metabolismo basal. Particularmente notável foi seu impacto sobre a homeostase glicêmica, reduzindo significativamente a glicemia de jejum e melhorando a resposta ao teste de tolerância à glicose oral, aspecto relevante considerando a complexa relação entre resistência insulínica e patogênese da DHEM.6
O perfil anti-inflamatório do CBD manifesta-se através da supressão de marcadores pró-inflamatórios hepatocelulares, notadamente TNF-α e óxido nítrico sintase induzível (iNOS). Esta propriedade assume relevância clínica especialmente nos estágios evolutivos da doença, onde a ativação de cascatas inflamatórias constitui elemento determinante na transição da esteatose simples para esteato-hepatite e subsequente fibrogênese.7
A translação destes achados para a prática clínica foi parcialmente corroborada por Lopez et al. (2020) em ensaio randomizado duplo-cego utilizando extrato de cânhamo padronizado (15mg CBD) em indivíduos com sobrepeso. O estudo documentou elevação significativa do HDL-colesterol, marcador inversamente correlacionado com risco cardiometabólico, além de desfechos secundários favoráveis em qualidade do sono e bem-estar geral. Notavelmente, o perfil de segurança mostrou-se favorável, aspecto crítico para implementação clínica.8
Contrapondo-se parcialmente a estes resultados, estudo clínico posterior utilizando doses escalonadas de CBD isolado (200-800mg/dia) não demonstrou redução significativa dos triglicerídeos hepáticos após oito semanas de tratamento. Esta aparente discrepância possivelmente reflete a complexidade farmacodinâmica dos canabinoides e uma possível associação com o fenômeno denominado “efeito entourage”, pelo qual múltiplos compostos derivados da Cannabis sativa atuam sinergicamente, potencializando efeitos terapêuticos não alcançáveis com moléculas isoladas.9
Para saber mais sobre o Efeito Entourage acesse: Efeito entourage: por que é melhor utilizar extratos completos da Cannabis
Conclusão
A Doença Hepática Esteatótica Metabólica representa um desafio crescente na prática clínica, exigindo abordagens terapêuticas inovadoras. Diante das limitações das estratégias convencionais, a modulação do sistema endocanabinoide desponta como um alvo promissor, com evidências sugerindo que os fitocanabinoides podem exercer efeitos benéficos na homeostase lipídica hepática e na resposta inflamatória associada à doença.
Embora os estudos em modelos experimentais sejam encorajadores, a aplicação clínica da cannabis medicinal na DHEM ainda carece de validação robusta por meio de ensaios clínicos controlados. O avanço na compreensão dos mecanismos moleculares envolvidos permitirá uma melhor definição do papel terapêutico dos canabinoides. Nesse sentido, para que a incorporação da cannabis na prática clínica ocorra de forma segura e eficaz, é essencial que os médicos tenham acesso a informações atualizadas e baseadas em evidências científicas.
Nesse contexto, a Comunidade da WeCann Academy se destaca como um espaço fundamental para essa atualização, oferecendo uma rede global de profissionais altamente capacitados. Nesse ambiente colaborativo, os médicos e acadêmicos trocam conhecimentos, discutem casos clínicos desafiadores e exploram novas estratégias terapêuticas, garantindo que estejam sempre preparados para implementar as abordagens mais eficazes no tratamento com cannabis medicinal.
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Referências
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