Identificação
Paciente T.A.C., 68 anos, sexo feminino, procurou atendimento devido a Fibromialgia que possui o diagnóstico desde 1996.
Apresentação do Caso Clínico
T.A.C. apresentou-se à consulta especializada em agosto de 2023 com um histórico de quase três décadas de dor crônica. Seu quadro teve início após uma hemorragia cerebral traumática ocorrida em 1988, evento que marcou o começo de uma longa jornada de tratamentos, diagnósticos e dificuldades. Desde então, a paciente recebeu múltiplos diagnósticos, sendo a fibromialgia o principal fator limitante de sua qualidade de vida.
Durante a avaliação inicial, T.A.C.. relatou dores constantes, com intensidade variando entre 7-8/10 na escala visual analógica, predominantemente localizadas nos braços, dedos e pés, com distribuição bilateral. A dor foi descrita como “queimação constante”, “agulhadas” e “peso”, com piora significativa durante os períodos de baixa temperatura e após atividades físicas mesmo de baixa intensidade.
A paciente enfatizou que, após quase 30 anos lidando com dor crônica, sentia-se “prisioneira no próprio corpo” e havia perdido grande parte de sua independência funcional. Descreveu como tarefas cotidianas simples, como segurar uma xícara, escrever ou caminhar curtas distâncias, haviam se tornado desafios diários devido à intensidade da dor.
Histórico Familiar e Hábitos de Vida
T.A.C. apresentava humor deprimido, expressando sentimentos de desesperança em relação à sua condição. Relatou sono fragmentado e não reparador, com despertares noturnos frequentes devido à dor e dificuldade para reiniciar o sono. Apesar desses desafios, mantinha apetite preservado e função intestinal normal.
Sua atividade física encontrava-se severamente comprometida, limitando-se a movimentos essenciais dentro de casa. Relatou que até mesmo a caminhada com seu cachorro, anteriormente uma atividade prazerosa, havia se tornado impossível devido às limitações físicas.
Socialmente, a paciente havia se isolado progressivamente, evitando contato com amigos e familiares devido à imprevisibilidade dos sintomas e constrangimento pelas limitações. Antes da manifestação da doença, desfrutava de uma vida social ativa. Negou terapia prévia com cannabis ou qualquer outra substância para controle da dor além das medicações já prescritas.
Exame Físico
Na avaliação inicial, a paciente apresentava-se com expressão facial tensa, postura protetora e movimentos cautelosos. Pressão arterial de 130/80 mmHg, frequência cardíaca de 78 bpm, frequência respiratória de 16 irpm.
Exame musculoesquelético revelou múltiplos pontos dolorosos à palpação, consistentes com os critérios diagnósticos para fibromialgia. Mobilidade articular preservada, porém com limitação funcional devido à dor. Força muscular globalmente reduzida (grau 4/5), mais evidente em extremidades superiores.
Exame neurológico sem alterações focais, com sensibilidade tátil e dolorosa preservadas.
Exames Complementares
Ao longo dos anos, a paciente realizou extensa investigação complementar, incluindo exames laboratoriais e de imagem, que contribuíram para o diagnóstico das comorbidades e exclusão de outras condições. Destacava-se o histórico de pancitopenia secundária ao uso de metotrexato, evidenciada em hemogramas seriados, o que limitava significativamente as opções terapêuticas disponíveis.
Diagnóstico
Diagnóstico principal: Fibromialgia (1996)
Comorbidades:
- Hipotireoidismo
- Osteoporose
- Polimialgia reumática
- Doença do refluxo gastroesofágico (DRGE)
- Pancitopenia secundária ao uso de metotrexato
- Histórico de hemorragia cerebral traumática (1988)
Histórico de Tratamentos
Ao longo de quase três décadas de dor crônica, a paciente foi submetida a múltiplos regimes terapêuticos, sem obtenção de controle adequado dos sintomas. Entre os tratamentos prévios, destacam-se:
- Anti-inflamatórios não esteroidais: Ibuprofeno (desenvolveu intolerância gastrointestinal)
- Antidepressivos: Duloxetina, Citalopram (controle parcial do humor, sem impacto significativo na dor)
- Opioides: Oxicodona, Tapentadol (efeitos adversos limitantes, como constipação e sonolência, sem controle adequado da dor)
- Anticonvulsivantes: Pregabalina (resposta subótima)
- Imunossupressor: Metotrexato (interrompido devido à pancitopenia)
Tratamento atual convencional: Gabapentina, Paracetamol, Prednisolona, complementados por Omeprazol, Levotiroxina, Atorvastatina e Escitalopram para manejo das comorbidades.
Considerando o longo histórico de dor refratária, o perfil de efeitos adversos aos tratamentos convencionais e o significativo impacto na qualidade de vida, o caso foi criteriosamente avaliado para introdução de cannabis medicinal como abordagem complementar.
Proposta Terapêutica Inicial
Em agosto de 2023, após discussão detalhada dos potenciais benefícios e riscos, a paciente iniciou tratamento com cannabis medicinal, seguindo protocolo progressivo:
- A abordagem farmacológica adotada consiste no uso de uma formulação de cannabis full spectrum do Tipo III, caracterizada por alto teor de CBD. O extrato apresenta uma concentração de 20 mg/ml de CBD e 1 mg/ml de THC, sendo administrado por via oral. A posologia inicial recomendada foi de 0,5 ml ao dia, equivalente a 10 mg de CBD e 0,5 mg de THC. A titulação será realizada de forma gradual, com aumento para 0,75 ml após cinco dias (15 mg de CBD e 0,75 mg de THC) e, posteriormente, para 1,0 ml após mais cinco dias (20 mg de CBD e 1 mg de THC), conforme a resposta clínica do paciente.
Abordagem Farmacológica e Evolução do Tratamento
Neste período inicial, a paciente apresentava dor intensa (até 8/10), humor instável e sono significativamente comprometido. Apesar disso, não foram observados efeitos adversos relevantes e seus sinais vitais permaneceram estáveis, com pressão arterial de 130/80 mmHg.
No retorno de outubro de 2023, após dois meses de tratamento, a equipe médica optou por complementar a abordagem terapêutica incluindo uma formulação balanceada (Tipo II – THC/CBD) de amplo espectro, administrada por via inalatória através de cartucho para vaporização, contendo 7% de THC e 7% de CBD. A orientação foi para utilização de 3-5 inalações à noite. Nesta consulta, observou-se melhora parcial da dor e do humor, embora os distúrbios do sono ainda persistissem. A paciente demonstrou boa tolerabilidade à via inalatória, sem relato de efeitos psicotrópicos indesejados.
Na avaliação de dezembro de 2023, correspondente ao quarto mês de tratamento, foi realizado ajuste da formulação oral com aumento da dose para 1,5 ml à noite, mantendo-se a mesma concentração de 20 mg/ml de CBD e 1 mg/ml de THC (Tipo III – alto CBD). A paciente apresentava, neste momento, dor flutuante com intensidade variando entre 3 e 6/10, humor ainda variável e sono não completamente restaurado. Como ponto positivo, a paciente relatou períodos de alívio mais prolongados, especialmente durante as primeiras horas da manhã.
No sexto mês de tratamento, em fevereiro de 2024, foi introduzida uma nova formulação oral balanceada (Tipo II), de espectro completo, contendo 10 mg/ml de CBD e 10 mg/ml de THC. Iniciou-se com 0,5 ml, com progressão gradual para 0,75 ml e posteriormente para 1 ml ao longo de 10 dias (10mg de CBD e 10mg de THC). Nesta fase, a paciente ainda referia dor significativa (até 7/10), com humor razoável e sono não completamente restaurador. Não foram observados efeitos adversos significativos e a aceitação da nova formulação foi considerada satisfatória.
Após nove meses de tratamento, na consulta de maio de 2024, foi possível estabelecer estabilização da formulação balanceada (Tipo II – 10 mg/ml de CBD e 10 mg/ml de THC), com dosagem diária de 10-15 mg de CBD e THC (equivalente a 1-1,5 ml). Neste momento, observou-se resposta terapêutica significativa, com redução da dor para 3/10, melhora sustentada do humor e qualidade do sono adequada. A paciente não apresentou efeitos adversos relevantes e demonstrou importante recuperação funcional, tendo retomado atividades anteriormente impossibilitadas pela dor, como passear com seu cachorro.
Durante todo o período de tratamento, a paciente manteve o uso concomitante das medicações convencionais (Gabapentina, Paracetamol, Prednisolona, Omeprazol, Levotiroxina, Atorvastatina e Escitalopram), com ajustes pontuais conforme necessidade clínica.
Abordagem Não-Farmacológica
Paralelamente ao tratamento farmacológico, foram implementadas intervenções não-farmacológicas, com destaque para sessões regulares de massagem terapêutica, que contribuíram para a redução da tensão muscular e melhora da sensação de bem-estar.
Recomendações de higiene do sono e técnicas de respiração para controle da ansiedade também foram incorporadas ao plano terapêutico, com adesão progressiva pela paciente à medida que o controle da dor permitia maior receptividade a estas abordagens.
Acompanhamento e Ajustes
O acompanhamento foi realizado em intervalos iniciais de 2 meses, posteriormente estendidos para 3 meses, com monitoramento constante dos parâmetros de dor, sono, humor, funcionalidade e potenciais efeitos adversos.
A cada consulta, realizava-se avaliação detalhada da resposta terapêutica, com ajustes nas formulações, concentrações e vias de administração conforme necessidade individual.
Evolução do Tratamento
Após 9 meses de tratamento com cannabis medicinal, observou-se:
- Redução significativa da intensidade da dor: De 8/10 para 3/10 na escala visual analógica
- Melhora da qualidade do sono: Redução dos despertares noturnos e aumento da sensação de sono reparador
- Estabilização do humor: Redução dos episódios de humor deprimido e aumento da sensação de bem-estar
- Recuperação funcional: Retorno a atividades cotidianas significativas, como passear com o cachorro, atividade anteriormente impossibilitada pela dor
- Perfil de segurança: Ausência de efeitos adversos significativos durante todo o período de tratamento
Considerações Finais
O caso de T.A.C. ilustra o potencial da cannabis medicinal como alternativa terapêutica em pacientes com fibromialgia refratária aos tratamentos convencionais, especialmente em contextos de múltiplas comorbidades e histórico de intolerância medicamentosa.
A abordagem progressiva, com monitoramento constante e ajustes individualizados, demonstrou ser fundamental para a obtenção de resultados satisfatórios, destacando a importância de protocolos personalizados no tratamento com cannabis medicinal.
O impacto positivo na qualidade de vida, com recuperação parcial da funcionalidade após quase três décadas de dor incapacitante, ressalta a importância de considerar esta modalidade terapêutica na abordagem multimodal da dor crônica.
As informações pessoais contidas neste caso clínico foram modificadas para preservar a identidade e a imagem do paciente, mantendo, no entanto, a veracidade e a integridade dos dados clínicos. Este é um relato baseado em um caso real, fundamentadona documentação médica e nas observações clínicas realizadas durante o acompanhamento do paciente. A finalidade é compartilhar o tratamento e as estratégias adotadas em um cenário clínico de relevância, respeitando sempre a confidencialidade e a ética médica.
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