As lesões na medula espinhal são condições traumáticas graves que podem levar a déficits motores, sensoriais e autonômicos significativos, resultando em uma redução substancial na qualidade de vida dos pacientes. Embora o tratamento convencional envolve manejo de dor, reabilitação e, em alguns casos, intervenções cirúrgicas, ainda não existe uma cura definitiva para as lesões medulares.
Nos últimos anos, o canabidiol (CBD), um dos principais compostos não psicotrópicos da Cannabis sativa, tem ganhado destaque como uma alternativa promissora no tratamento das lesões sequelares na medula espinhal, devido às suas propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e neuroprotetoras. Neste post, exploramos o potencial terapêutico do CBD nesse contexto, com base em evidências científicas.
Lesões na Medula Espinhal
A lesão na medula espinhal (LME) representa um evento devastador, caracterizado pela interrupção dos axônios medulares, resultando em déficits motores e sensoriais abaixo do nível da lesão. Em grande parte dos casos, a lesão primária é irreversível, sendo a principal causa traumas de alta energia, como acidentes automobilísticos e quedas. Embora os avanços na reabilitação e no suporte clínico tenham melhorado o prognóstico funcional, as complicações secundárias, especialmente a dor crônica e os distúrbios neurovegetativos, continuam a impactar significativamente a qualidade de vida dos pacientes.
Os quadros álgicos associados à LME podem ser classificados em dor nociceptiva e neuropática. A dor nociceptiva decorre da ativação dos nociceptores em músculos, articulações e tecidos moles adjacentes à área lesionada, frequentemente exacerbada por espasticidade e alterações posturais. Já a dor neuropática, presente em uma parcela significativa dos pacientes, resulta de alterações na transmissão neural e sensibilização central, manifestando-se como dor em queimação, disestesia e alodinia. Os indivíduos com LME apresentam algum grau de dor crônica, sendo esta frequentemente refratária aos tratamentos convencionais.
O manejo farmacológico da dor neuropática na LME inclui antidepressivos tricíclicos, inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina, anticonvulsivantes (como gabapentina e pregabalina) e, em casos refratários, opioides. No entanto, os efeitos adversos, como sedação, tontura e risco de dependência, limitam sua utilização prolongada.
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Além da dor, indivíduos com LME frequentemente desenvolvem transtornos psiquiátricos, sendo a depressão um achado comum. Em estudos populacionais, cerca de 11,4% dos pacientes preenchem critérios para transtorno depressivo maior, o que reforça a necessidade de uma abordagem multidisciplinar no tratamento. O impacto emocional da limitação funcional, associado à dor crônica e à falta de opções terapêuticas eficazes e com poucos efeitos colaterais, compromete a adesão ao tratamento e a reintegração social.¹
Diante desse cenário, a busca por novas estratégias terapêuticas é fundamental. O crescente interesse na modulação do sistema endocanabinoide, particularmente com o uso do canabidiol e o tetrahidrocanabinol, tem levantado hipóteses promissoras para o controle da dor neuropática e da espasticidade na LME. Vamos explorar a viabilidade clínica dessa abordagem terapêutica com base nas evidências científicas mais recentes.
Sistema Endocanabinoide e Lesão Medular
A lesão medular desencadeia uma cascata complexa de eventos fisiopatológicos, caracterizada por neuroinflamação, apoptose celular e disfunção da barreira hematoencefálica. O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel central na regulação desses processos, influenciando a neuroproteção, a imunomodulação e a resposta inflamatória. Estudos indicam que, após uma LME, ocorre uma modulação local do SEC, com aumento dos níveis de anandamida, regulação positiva das enzimas sintéticas e regulação negativa das enzimas degradativas. Essas alterações sugerem um mecanismo adaptativo que pode ter implicações terapêuticas.²
Os receptores CB1 e CB2 exercem funções distintas nesse contexto. O CB1, predominante no sistema nervoso central, regula a excitabilidade neuronal e a liberação de neurotransmissores, enquanto o CB2, expresso principalmente em células imunológicas, modula a resposta inflamatória. A ativação do CB2 tem sido associada à redução da infiltração de neutrófilos, menor liberação de citocinas pró-inflamatórias e atenuação do dano neuronal secundário, tornando-se um alvo promissor para intervenção terapêutica.²
Após a LME, observa-se um aumento nos níveis de anandamida, acompanhado pela regulação positiva das enzimas responsáveis por sua síntese e a regulação negativa das enzimas degradativas. Essas alterações sugerem uma resposta adaptativa do organismo à lesão, possivelmente para atenuar o dano neuronal secundário. Além de seu impacto na modulação da inflamação e da dor, evidências experimentais sugerem que o SEC pode estar envolvido na regeneração axonal.³
Em um estudo conduzido em camundongos, observou-se que a lesão do nervo periférico induz um aumento no tônus endocanabinoide, favorecendo a capacidade regenerativa dos neurônios do gânglio da raiz dorsal (DRG). Esse efeito foi potencializado tanto pela inibição da enzima degradativa MAGL, quanto pela ativação dos receptores CB1, resultando na ativação da via PI3K-pAkt, um mecanismo molecular associado à promoção da regeneração axonal. Embora a regeneração no sistema nervoso central permaneça um desafio, esses achados reforçam o potencial terapêutico dos canabinoides na modulação da plasticidade neuronal e na recuperação funcional pós-lesão.³
Entre os fitocanabinoides, o canabidiol (CBD) tem despertado interesse devido às suas propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras. Estudos demonstram que o CBD reduz o estresse oxidativo, modula a ativação de microglia e astrócitos e inibe a proliferação de células T, favorecendo um microambiente menos inflamatório e potencialmente mais propício à recuperação neuronal.4 Além disso, compostos sintéticos, como o agonista não seletivo WIN 55,212-2, mostraram impacto positivo na redução da apoptose e na remielinização neural, reforçando o potencial dos canabinoides no manejo das sequelas da LM.²
O avanço no entendimento dos mecanismos subjacentes ao SEC e seu papel na resposta à LME abre perspectivas para novas abordagens terapêuticas. A investigação do potencial de antagonistas dos receptores canabinoides e moduladores do SEC pode oferecer insights valiosos para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas mais eficazes e embasadas para o manejo da LME.
Evidências Científicas
A pesquisa sobre o uso de canabinoides, incluindo o canabidiol e o tetrahidrocanabinol, no tratamento de lesões da medula espinhal tem avançado significativamente, destacando seu potencial terapêutico em múltiplos aspectos, como espasticidade, dor neuropática, neuroproteção e recuperação funcional.
A dor neuropática é uma das principais queixas de pacientes com LME, sendo frequentemente de difícil controle com terapias convencionais. Estudos clínicos têm demonstrado que a modulação do sistema endocanabinoide pode representar uma abordagem promissora para esse quadro. Em particular, o uso de nabiximols, um extrato padronizado contendo proporções equilibradas de THC e CBD, tem mostrado benefícios significativos no controle da dor neuropática e da espasticidade associada à LME.
No estudo conduzido por Grao-Castellote et al. (2017) na Espanha, pacientes com LME crônica espástica que utilizaram nabiximols sob demanda, por um período de seis meses e sob supervisão médica, apresentaram redução significativa na gravidade e frequência da espasticidade, além de melhora no controle da dor, sugerindo um impacto positivo na qualidade de vida desses indivíduos.5
No que se refere à função neuroprotetora do CBD, estudos pré-clínicos indicam que ele pode modular a resposta inflamatória pós-lesão, reduzir o estresse oxidativo e estimular mecanismos de regeneração neuronal. Em um estudo realizado na Espanha, foi demonstrado que a ativação dos receptores CB1 e CB2 pelo CBD promove uma resposta neuroprotetora, auxiliando na recuperação espontânea após a LME.6
Além disso, pesquisas da Universidade de São Paulo avaliaram os efeitos do CBD na função motora de roedores submetidos à LME, revelando que a administração precoce do composto pode melhorar a recuperação locomotora. Em um modelo experimental de criolesão medular, a administração de CBD (20 mg/kg) antes e após a lesão promoveu uma recuperação locomotora significativa, evidenciada por escores mais elevados na escala de Basso, Beattie e Bresnahan ao longo da primeira semana.7
Além disso, observou-se uma redução da extensão do dano tecidual e uma menor expressão de FosB no corno ventral da medula espinhal, sugerindo um efeito modulador na resposta celular ao trauma. O FosB é um fator de transcrição da família da proteína AP-1, envolvido na regulação da plasticidade neural e da resposta ao estresse celular, sendo sua superexpressão frequentemente associada a processos neuroinflamatórios e degenerativos. Esses achados reforçam o potencial terapêutico do CBD na preservação da integridade neuronal e na melhora funcional após uma lesão medular, apontando para seu possível papel como adjuvante no tratamento dessas condições debilitantes.7
Conclusão
O uso de CBD e do THC no tratamento de lesões na medula espinhal oferece um horizonte promissor, não só para aliviar a dor e a espasticidade, mas também para promover a neuroproteção e ajudar na regeneração das células nervosas danificadas. Embora os estudos clínicos em humanos ainda sejam limitados, os estudos pré-clínicos e os resultados clínicos obtidos até agora indicam que o CBD pode ser uma ferramenta terapêutica valiosa, especialmente como parte de um regime combinado com outras abordagens de tratamento.
À medida que a pesquisa continua a avançar, o CBD pode se tornar uma opção terapêutica importante para pacientes com lesões na medula espinhal, proporcionando uma alternativa menos invasiva e com menos efeitos colaterais do que os tratamentos convencionais. Apesar dos resultados promissores em modelos experimentais e estudos clínicos iniciais, são necessárias investigações mais abrangentes para validar sua eficácia e segurança a longo prazo, permitindo a incorporação do CBD como uma opção terapêutica fundamentada na medicina baseada em evidências.
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Referências
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- Bhatti, F.I., Mowforth, O.D., Butler, M.B. et al. Systematic review of the impact of cannabinoids on neurobehavioral outcomes in preclinical models of traumatic and nontraumatic spinal cord injury. Spinal Cord 59, 1221–1239 (2021). https://doi.org/10.1038/s41393-021-00680-y
- Martinez-Torres, Sara et al. “Injury-induced activation of the endocannabinoid system promotes axon regeneration.” iScience vol. 26,6 106814. 5 May. 2023, doi:10.1016/j.isci.2023.106814
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- Grao-Castellote, C., Torralba-Collados, F.,Gonzalez, L. M. & Giner-Pascual, M. [Delta-9-tetrahydrocannabinol-cannabidiol in the treatment of spasticity in chronic spinal cord injury: a clinical experience]. Rev. Neurol. 65, 295-302 (2017).
- Arevalo-Martin A, Garcia-Ovejero D, Sierra-Palomares Y, Paniagua-Torija B, Gonzalez-Gil I, Ortega-Gutierrez S, Molina-Holgado E. Early endogenous activation of CB1 and CB2 receptors after spinal cord injury is a protective response involved in spontaneous recovery. PLoS One. 2012;7(11):e49057. doi: 10.1371/journal.pone.0049057. Epub 2012 Nov 13. PMID: 23152849; PMCID: PMC3496738.
- Kwiatkoski M, Guimarães FS, Del-Bel E. Cannabidiol-treated rats exhibited higher motor score after cryogenic spinal cord injury. Neurotox Res. 2012 Apr;21(3):271-80. doi: 10.1007/s12640-011-9273-8. Epub 2011 Sep 14. PMID: 21915768.