A inclusão da cannabis medicinal no arsenal terapêutico de diversas especialidades tem demandado uma compreensão aprofundada de seu perfil de segurança. Diferentemente do uso recreativo, a prescrição médica da cannabis implica um manejo rigoroso e baseado em evidências, com foco na otimização dos benefícios e na minimização de riscos.
Neste post, aprofundaremos os principais efeitos adversos agudos e de longo prazo da cannabis medicinal. O nosso objetivo é fornecer um guia prático para a titulação e monitoramento de pacientes, ajudando a evitar e a gerenciar esses efeitos colaterais de forma eficaz.
Cannabis medicinal e suas aplicações em diversas patologias
A cannabis medicinal tem se consolidado como uma alternativa terapêutica em diversas áreas da medicina, explorando a modulação do sistema endocanabinoide (SEC) por seus compostos ativos, os canabinoides. O SEC, um sistema complexo de sinalização, desempenha um papel crucial na homeostase do organismo, regulando funções como dor, inflamação, humor e sono.¹
Os principais canabinoides de interesse clínico são o THC (tetraidrocanabinol) e o CBD (canabidiol), que interagem principalmente com os receptores canabinoides (CB1 e CB2) para produzir seus efeitos terapêuticos.¹
A eficácia da cannabis medicinal tem sido demonstrada em uma gama de patologias, destacando-se as seguintes áreas:
- Dor Crônica: O uso de canabinoides tem demonstrado eficácia na redução da intensidade da dor neuropática e de condições como a fibromialgia, com evidências que sugerem um efeito sinérgico entre THC e CBD. Esse tratamento pode, em muitos casos, levar à redução do uso de opioides, diminuindo os riscos associados à dependência e aos efeitos adversos desses medicamentos.¹
- Neurologia:
- Epilepsia Refratária: O CBD, em particular, tem sido aprovado para o tratamento de síndromes epilépticas graves e resistentes a outros fármacos, como a síndrome de Dravet e a síndrome de Lennox-Gastaut, com base em estudos clínicos robustos.¹
- Esclerose Múltipla (EM): A cannabis medicinal é utilizada para o manejo de espasticidade e dor em pacientes com EM, melhorando a qualidade de vida e a funcionalidade.¹
- Psiquiatria: O CBD apresenta propriedades ansiolíticas e antidepressivas, sendo investigado para o tratamento de transtornos de ansiedade e estresse pós-traumático (TEPT). Os canabinoides também podem ser utilizados para o manejo de distúrbios do sono.¹
- Oncologia e Cuidados Paliativos: A cannabis é amplamente utilizada para mitigar efeitos colaterais da quimioterapia, como náuseas e vômitos, além de estimular o apetite em pacientes com caquexia.¹
A cannabis medicinal tem uma ampla gama de aplicações clínicas, também é promissora no tratamento de doenças de pele como psoríase, redução da pressão intraocular no glaucoma, e manejo de sintomas de endometriose e distúrbios metabólicos.¹
A seleção do produto e a titulação da dose são cruciais para o sucesso terapêutico, exigindo uma compreensão aprofundada da farmacologia dos canabinoides e do perfil clínico de cada paciente. A individualização do tratamento é a chave para otimizar os benefícios e minimizar os riscos.
Perfil de segurança e efeitos agudos (curto prazo)
A segurança da cannabis medicinal é notável, com um perfil de risco geralmente favorável em comparação a outras classes de medicamentos. A avaliação clínica deve distinguir entre os efeitos do THC e do CBD, cujos perfis de segurança são distintos. O CBD é considerado muito seguro, mesmo em doses elevadas (até 6000 mg), sendo a sonolência e diarreia os efeitos adversos mais comuns.²
O principal desafio clínico no uso do THC é o risco de intoxicação, já que a dose-resposta varia consideravelmente entre os pacientes.³ No entanto, é importante salientar que o THC tem uma margem de segurança extremamente ampla, com uma dose letal extrapolada de mais de 15.000 mg, o que é 750 vezes maior que uma dose potencialmente intoxicante de 20 mg. Diferente dos opioides, a cannabis não causa depressão respiratória.4
Os efeitos agudos do THC podem incluir:
- Euforia e ansiólise, que podem ser acompanhadas por percepções sensoriais aprimoradas.
- Déficits cognitivos sutis, como atenção prejudicada e comprometimento da memória de curto prazo.5
- Em doses mais altas, pode causar ansiedade, pânico e desorientação, especialmente em indivíduos sensíveis.³
- Outros efeitos comuns são boca seca, tontura, aumento do apetite e, em alguns casos, náuseas e vômitos.6
Os efeitos colaterais associados ao CBD:
- Tontura, Sonolência e Sedação: Em doses mais altas ou no início do tratamento, alguns pacientes podem sentir tontura e sedação. Para mitigar esses efeitos, é recomendado iniciar o tratamento com doses baixas, preferencialmente à noite, e aumentar gradualmente.
- Fadiga: A fadiga é um efeito comum devido à ação relaxante do CBD no sistema nervoso central. Iniciar a administração à noite ou ajustar a dose são estratégias eficazes para minimizar o impacto na rotina diária do paciente.
- Boca Seca (Xerostomia): Este efeito ocorre pela interação do CBD com os receptores das glândulas salivares. A hidratação adequada, o uso de chicletes sem açúcar e a administração do óleo de CBD com alimentos gordurosos podem ajudar a aliviar o sintoma.
- Distúrbios Gastrointestinais: Náuseas, diarreia e dor abdominal são efeitos menos frequentes. Para minimizá-los, a dose deve ser titulada gradualmente. Além disso, a administração do CBD após as refeições e a verificação do veículo utilizado no óleo podem ser estratégias úteis.
Recomendações clínicas para o manejo agudo:
A otimização da terapia com cannabis medicinal requer uma abordagem metódica para mitigar efeitos adversos, especialmente os relacionados ao THC. As seguintes recomendações são essenciais para uma prática clínica segura:
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- Titulação da Dose: A abordagem “comece baixo e vá devagar” é a pedra angular da prescrição. Sugere-se iniciar com doses de THC <5 mg/dia, aumentando-as gradualmente a cada 3 a 7 dias, até que a resposta terapêutica seja alcançada com o mínimo de efeitos colaterais.
- Via de Administração: A via oral (óleos, cápsulas) proporciona um início de ação mais lento e um efeito mais prolongado, o que facilita a titulação e reduz o risco de intoxicação aguda. A vaporização oferece um controle mais preciso do início e da duração do efeito, sendo útil para crises agudas, mas requer cautela devido à rápida absorção do THC.
- Orientação ao Paciente: Educar o paciente sobre os possíveis efeitos é fundamental. Instrua-o a monitorar a resposta em um diário, anotando dose, horário e efeitos percebidos, para otimizar o acompanhamento clínico.
- Seleção do produto: É essencial que a escolha do produto de cannabis medicinal seja baseada na necessidade clínica do paciente. Estudos e evidências de casos têm demonstrado como certas substâncias, além dos canabinoides, podem atenuar efeitos colaterais específicos.
Um exemplo notável é o terpeno d-limoneno. Um estudo recente, publicado no Drug and Alcohol Dependence, revelou que o d-limoneno, quando administrado juntamente com o THC, reduziu significativamente a ansiedade e a paranoia em adultos saudáveis, sem alterar a absorção e a metabolização do THC no organismo.7 Esses dados sugerem que a inclusão de terpenos específicos nas formulações pode aumentar o índice terapêutico do THC e melhorar a tolerabilidade do tratamento.
Efeitos a longo prazo e considerações especiais
A avaliação dos efeitos a longo prazo da cannabis medicinal ainda é um campo em desenvolvimento, exigindo mais estudos de farmacovigilância e ensaios clínicos robustos. É importante distinguir entre o uso medicinal, que é regulamentado e supervisionado, e o uso recreativo, que geralmente envolve altas doses de THC, fumo e outros fatores de confusão.
Psicose e transtornos relacionados
Apesar da raridade da psicose aguda induzida por cannabis, a principal preocupação clínica reside na associação entre o uso recreativo de THC na adolescência e um aumento do risco de esquizofrenia em indivíduos geneticamente vulneráveis. Embora a cannabis não seja considerada a causa direta, ela pode ser um fator permissivo.8
É importante destacar a diferença entre o uso recreativo e o medicinal: o uso medicinal é controlado, com doses precisas e sob supervisão médica, minimizando o risco de efeitos adversos. Por isso, a cannabis medicinal com THC é contraindicada para pacientes com histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos. Em contraste, o CBD, que não tem efeito psicotrópico e demonstrou ter propriedades antipsicóticas, pode ser uma alternativa segura nessas situações clínicas.9
Função Cognitiva
Os déficits cognitivos agudos relacionados ao THC, quando ocorrem, são de curta duração e reversíveis. A evidência de disfunção cognitiva a longo prazo é controversa, com estudos indicando que os efeitos são pequenos e clinicamente insignificantes.10 Não há dados da literatura, até o momento, que indiquem que o uso de cannabis medicinal em adultos cause efeitos importantes e/ou irreversíveis na função cognitiva.11
Para saber mais sobre os efeitos da cannabis medicinal na excitabilidade cerebral acesse: Efeitos da Cannabis na Excitabilidade Cerebral – WeCann Academy
Potencial de dependência
A questão da dependência da cannabis é uma preocupação legítima, mas é fundamental distinguir entre o uso recreativo e o medicinal. O potencial de dependência é considerado de leve a moderado em usuários recreativos.12
No contexto medicinal, a dependência não é uma preocupação primária. A prescrição de cannabis medicinal tem como objetivo o benefício terapêutico, e não a intoxicação. O uso é estritamente controlado e supervisionado, o que reduz significativamente os riscos associados à dependência. Além disso, o CBD não é viciante e não há evidências de que o seu uso regular cause dependência física ou psíquica.13
A ampla gama de aplicações reflete a complexa e sistêmica ação dos canabinoides, reforçando a importância de um olhar clínico detalhado para determinar a melhor abordagem para cada caso. A seleção do produto e a titulação da dose são fundamentais para o sucesso terapêutico, exigindo uma compreensão aprofundada da farmacologia dos canabinoides e do perfil clínico de cada paciente. A individualização do tratamento é a chave para otimizar os benefícios e minimizar os riscos.
Conclusão
A cannabis medicinal representa uma ferramenta terapêutica promissora, mas sua utilização segura e eficaz exige uma abordagem clínica precisa. O sucesso do tratamento depende diretamente da compreensão de seu perfil de segurança, da seleção adequada dos canabinoides e da personalização da dose para cada paciente.
Ao adotar a estratégia de terapêuticas, educar os pacientes sobre os possíveis efeitos e monitorar de perto a resposta ao tratamento, os profissionais de saúde podem maximizar os benefícios terapêuticos e minimizar os riscos. A distinção clara entre o uso medicinal, regulamentado e supervisionado, e o uso recreativo, com seus riscos intrínsecos de alta dose e ausência de controle, é fundamental.
A cannabis medicinal, quando prescrita com responsabilidade e conhecimento, representa uma nova fronteira na medicina, oferecendo perspectivas inovadoras para o manejo de diversas patologias. A chave para uma prática clínica de ponta e de alta qualidade reside na constante atualização sobre as evidências científicas mais recentes.
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Referências
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