Efeitos da Cannabis na Excitabilidade Cerebral

Publicado em 22/11/24 | Atualizado em 02/12/24 Leitura: 12 minutos

CanabinoidesNeurológicasSistema Endocanabinoide

A cannabis, com seus diversos compostos bioativos, notadamente os canabinoides como o Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) e o canabidiol (CBD), tem recebido crescente atenção devido ao seu impacto sobre as funções cerebrais, especialmente no que diz respeito à excitabilidade neuronal. Esse fenômeno se refere à capacidade das células nervosas de responderem a estímulos, gerando impulsos elétricos que transmitem sinais ao longo do sistema nervoso central. A excitabilidade cerebral é um aspecto fundamental do funcionamento normal do cérebro, mas alterações nesse processo podem contribuir para várias condições patológicas, incluindo epilepsia, ansiedade, esquizofrenia, e transtornos de humor.

Os efeitos da cannabis sobre a excitabilidade cerebral dependem de fatores como a dose, a proporção entre os diferentes canabinoides, a via de administração, e as características individuais dos pacientes, como idade e histórico de uso. Neste post, abordaremos os mecanismos pelos quais os principais canabinoides da planta, o THC e o CBD, modulam a atividade cerebral.

Cannabis e o Sistema Endocanabinoide

O sistema endocanabinoide (SEC) é um dos sistemas de sinalização celular mais importantes no organismo, com influência sobre diversas funções fisiológicas e comportamentais. Esse sistema, que é evolutivamente conservado, desempenha um papel crucial na manutenção da homeostase e é composto por três elementos centrais: os receptores canabinoides (CB1 e CB2), os ligantes endógenos conhecidos como endocanabinoides, como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG), e as enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses ligantes, como a amido hidrolase de ácidos graxos (FAAH) e a monoacilglicerol lipase (MAGL).¹

Os receptores CB1 são amplamente distribuídos no sistema nervoso central (SNC), particularmente em regiões como o hipocampo, córtex pré-frontal, gânglios da base, e cerebelo, áreas envolvidas em funções motoras, processamento da memória e cognição. A ativação desses receptores resulta na modulação da liberação de neurotransmissores, incluindo glutamato, dopamina e GABA, o que gera efeitos moduladores sobre a excitabilidade sináptica e a plasticidade neuronal. Dessa forma, os receptores CB1 são fundamentais para o controle de funções neurofisiológicas, como aprendizado, memória e controle motor.¹

Por outro lado, os receptores CB2 são encontrados em maior quantidade em tecidos periféricos, especialmente em células do sistema imunológico, como macrófagos e linfócitos, além de serem expressos em algumas populações neuronais e células gliais. A ativação dos receptores CB2 está associada a funções imunomoduladoras e anti-inflamatórias, sendo relevante em processos patológicos que envolvem neuroinflamação e respostas imunes aberrantes, como em doenças neurodegenerativas e condições inflamatórias crônicas.¹

Os fitocanabinoides presentes na planta da cannabis interagem diretamente com os componentes do SEC, modulando seus efeitos em diferentes contextos fisiopatológicos. O THC, principal componente psicotrópico da cannabis, atua como um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2. Sua afinidade pelos receptores CB1 no SNC é responsável pelos seus efeitos psicotrópicos, que incluem euforia, alteração do humor e da sensopercepção. Além disso, o THC pode induzir a analgesia e reduzir a espasticidade em condições como esclerose múltipla e dor neuropática.¹ Esse efeito ocorre por meio da inibição da liberação de neurotransmissores excitatórios e da modulação das vias de sinalização nociceptivas.

Para saber mais sobre o papel do THC no tratamento da dor neuropática acesse: Como a Cannabis ajuda no manejo da dor neuropática (wecann.academy)

O canabidiol, por sua vez, possui um perfil de ação distinto, sendo caracterizado pelo potencial de causar mínimos efeitos psicotrópicos, o que o torna uma alternativa terapêutica mais segura em diversas condições clínicas. Embora o CBD tenha baixa afinidade pelos receptores CB1 e CB2, ele atua como um modulador alostérico negativo do receptor CB1, reduzindo os efeitos de agonistas desse receptor como o THC. Além disso, o CBD interage com uma ampla gama de outros receptores e canais iônicos, incluindo os receptores de serotonina 5-HT1A, receptores vaniloides TRPV1, e canais de cálcio do tipo T, contribuindo para seus os múltiplos efeitos ansiolíticos, anticonvulsivantes e anti-inflamatórios.¹

Relação da Cannabis com a excitabilidade cerebral

No SNC, a localização de receptores CB1 é predominantemente em terminais pré-sinápticos de neurônios glutamatérgicos e gabaérgicos, onde exercem sua função moduladora através de mecanismos de sinalização retrógrada, inibindo a liberação de neurotransmissores. Esses receptores são acoplados à proteína G (Gi/o), e a ativação dos receptores CB1 induz o fechamento de canais de cálcio dependentes de voltagem e a abertura de canais de potássio, resultando na hiperpolarização de células pré-sinápticas e na consequente inibição da liberação sináptica de neurotransmissores. Isso afeta uma ampla gama de neurotransmissores, incluindo glutamato, GABA, dopamina, acetilcolina, noradrenalina e serotonina, com efeitos neuromoduladores diversificados conforme o tipo de sinapse e a região cerebral envolvida.

Os receptores CB1 no córtex pré-frontal são fundamentais para a modulação da cognição executiva e da memória de trabalho. O THC, ao se ligar aos receptores CB1 nessa região, pode causar prejuízos cognitivos transitórios, afetando a tomada de decisão e a capacidade de resolver problemas. Evidências sugerem que a regulação dos circuitos excitatórios e inibitórios pelo sistema endocanabinoide pode desempenhar um papel central em distúrbios neuropsiquiátricos como esquizofrenia e transtorno bipolar afetivo.²

O hipocampo, uma área crítica para o processamento da memória e aprendizagem, apresenta uma alta densidade de receptores CB1. A ativação desses receptores por canabinoides endógenos, como a anandamida, tem sido correlacionada com a modulação da plasticidade sináptica, essencial para a consolidação de memórias.² Os receptores CB1 localizados na amígdala são cruciais para a regulação de respostas emocionais, especialmente aquelas associadas ao medo e à ansiedade.²

Nos gânglios da base, uma rede de estruturas envolvidas no controle motor e na modulação da motivação, os receptores CB1 são expressos nos neurônios gabaérgicos e glutamatérgicos. A ativação desses receptores por derivados canabinoides pode alterar significativamente o tônus motor, sendo associada à redução da rigidez em distúrbios como a doença de Parkinson e esclerose múltipla.² 

A estimulação dos receptores CB1 no hipotálamo regula uma série de comportamentos homeostáticos, incluindo a ingestão alimentar, o sono e o controle do estresse. Um efeito bem documentado do THC é o aumento do apetite, mediado pela ativação de receptores CB1 em núcleos hipotalâmicos, que regulam a fome e a saciedade.³ Além disso, os endocanabinoides exercem efeitos sobre a termorregulação e o equilíbrio hormonal, modulando o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA).

Funções Neuroprotetoras e Homeostase Sináptica

Os endocanabinoides atuam como importantes reguladores da plasticidade sináptica. A liberação de anandamida e 2-AG em resposta à atividade neuronal excessiva pode proteger o cérebro de estados de hiperexcitabilidade, como ocorre em distúrbios epilépticos.4 A ativação de CB1 em neurônios pré-sinápticos inibe a liberação adicional de glutamato, o principal neurotransmissor excitatório, prevenindo a excitotoxicidade — um mecanismo chave em eventos neurodegenerativos.4

Ilustração  da dinâmica operacional do SEC na fenda sináptica, através dos receptores CB1, na vigência de uma hiperexcitabilidade glutamatérgica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Ilustração  da dinâmica operacional do SEC na fenda sináptica, através dos receptores CB1, na vigência de uma hiperexcitabilidade glutamatérgica. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

Além disso, os receptores CB1 também têm importantes funções em células gliais. Os astrócitos, que desempenham um papel vital no suporte neuronal e na manutenção da homeostase sináptica, são ativados pelos endocanabinoides, facilitando a modulação da “sinapse tripartite”. Este conceito emergente sugere que os derivados canabinoides não apenas regulam a transmissão sináptica entre neurônios, mas também influenciam a comunicação bidirecional entre neurônios e glia, potencializando suas funções neuroprotetoras.5

Diferentes mecanismos de atuação dos endocanabinoides (eCBs) na fenda sináptica. Sinalização retrógrada: os eCBs são mobilizados a partir de neurónios pós-sinápticos em direção aos receptores canabinoides tipo 1 pré-sinápticos (CB1 para suprimir a liberação de neurotransmissores (NT). Sinalização não retrógrada: os eCBs produzidos em neurônios pós-sinápticos ativam os receptores CB1 pós-sinápticos ou outros receptores, tais como o receptor de potencial transitório vanilóide tipo 1 (TRPV1). Sinalização através de astrócitos: os eCBs liberados de neurônios pós-sinápticos estimulam os receptores CB1 de astrócitos, desencadeando a gliotransmissão. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Diferentes mecanismos de atuação dos endocanabinoides (eCBs) na fenda sináptica. Sinalização retrógrada: os eCBs são mobilizados a partir de neurónios pós-sinápticos em direção aos receptores canabinoides tipo 1 pré-sinápticos (CB1 para suprimir a liberação de neurotransmissores (NT). Sinalização não retrógrada: os eCBs produzidos em neurônios pós-sinápticos ativam os receptores CB1 pós-sinápticos ou outros receptores, tais como o receptor de potencial transitório vanilóide tipo 1 (TRPV1). Sinalização através de astrócitos: os eCBs liberados de neurônios pós-sinápticos estimulam os receptores CB1 de astrócitos, desencadeando a gliotransmissão. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

 

Receptores CB2 e Inflamação Neurogênica

Diferentemente dos receptores CB1, os receptores CB2 são predominantemente expressos em células imunológicas, incluindo micróglia, astrócitos reativos e células do sistema imunológico periférico, como macrófagos e linfócitos. Embora a expressão de CB2 no SNC seja limitada em condições basais, sua expressão aumenta drasticamente em resposta a lesões cerebrais, doenças neurodegenerativas e processos inflamatórios, como ocorre na esclerose múltipla, Alzheimer e Parkinson.

A ativação dos receptores CB2 durante estados de neuroinflamação modula a resposta imune, atenuando a liberação de citocinas pró-inflamatórias e facilitando a reparação tecidual. A presença de receptores CB2 na micróglia, por exemplo, permite que a sinalização canabinoide reduza a ativação crônica dessas células, prevenindo danos neuronais secundários ao processo inflamatório. Este efeito anti-inflamatório e neuroprotetor torna os agonistas seletivos de CB2 uma promessa terapêutica em condições neuroinflamatórias crônicas.6

Neuroinflamação crônica e prolongada pode culminar em neurodegeneração e morte neuronal. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Neuroinflamação crônica e prolongada pode culminar em neurodegeneração e morte neuronal. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

 

Potencial Terapêutico dos Fitocanabinoides

O THC e o CBD têm sido amplamente estudados por seus efeitos neuroprotetores. O THC, ao ativar receptores CB1, pode aliviar sintomas de dor neuropática e espasticidade, enquanto o CBD, que modula indiretamente a sinalização dos receptores CB1 e CB2 e interage com outros grupos de receptores, como os receptores TRPV1, oferece efeitos anti-inflamatórios e ansiolíticos sem ocasionar os efeitos psicotrópicos potencialmente mais intensos do THC. Em modelos pré-clínicos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, o CBD tem demonstrado capacidade de reduzir a neuroinflamação e o estresse oxidativo.¹

Para saber mais sobre o papel do Canabidiol no tratamento da Doença de Alzheimer acesse: Canabidiol para a Doença de Alzheimer: Potencial terapêutico (wecann.academy)

Esses achados sugerem que a manipulação terapêutica do sistema endocanabinoide pode ser uma estratégia eficaz para o manejo de doenças neurológicas diversas, oferecendo uma abordagem multimodal para o controle de sintomas e também, de neuroproteção. Essa perspectiva amplia as fronteiras da neurociência e evidencia o potencial dos derivados canabinoides como agentes terapêuticos, modulando desde a atividade sináptica até a resposta imune e a reparação tecidual.

Descubra o potencial terapêutico dos Fitocanabinoides: Principais Fitocanabinoides e seus efeitos no organismo (wecann.academy)

Conclusão

A cannabis exerce efeitos moduladores significativos sobre a excitabilidade cerebral, com implicações terapêuticas relevantes. A interação dos derivados canabinoides com o sistema endocanabinoide regula a liberação de neurotransmissores, especialmente em sinapses glutamatérgicas e gabaérgicas, influenciando diretamente o equilíbrio excitatório-inibitório no sistema nervoso central. 

O THC, ao se ligar predominantemente aos receptores CB1, modula a excitabilidade neuronal e pode tanto promover a neuroproteção quanto induzir efeitos psicotrópicos mais intensos. Já o CBD, com sua ação alostérica e multifacetada em outros receptores, desempenha um papel crucial na atenuação da hiperexcitabilidade, especialmente em condições como epilepsia e transtornos neurodegenerativos. Assim, os fitocanabinoides oferecem um potencial terapêutico combinado relevante.

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Referências

  1. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Liigresti, A. Petrocellis, L. D, & Marzo, V.D.From Phytocannabinoids to Cannabinoid Receptors and Endocannabinoids: Pleiotropic Physiological and Pathological Roles Through Complex Pharmacology. Physiol Rev 96, 67 (2016).
  3. Di Marzo, V. et al. Leptin-regulated endocannabinoids are involved in maintaining food intake. Nattre 410, 822-825 (2001).
  4. Wadich, E. Neuropsychiatric Effects of Marijuana MOJ Addict. Med. Ther: 3, (2017).
  5. Castillo, P E., Younts, T.J, Chávez, A.E.& Hashimotodani, Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Newron 76,22 (2013).
  6. Pacher, P.& Mechoulam, R. Islipid signaling through cannabinoid 2 receptors part of a protective system? Prog; Lipid Res. 50, 193-211 (2011).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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