A cannabis, com seus diversos compostos bioativos, notadamente os canabinoides como o Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) e o canabidiol (CBD), tem recebido crescente atenção devido ao seu impacto sobre as funções cerebrais, especialmente no que diz respeito à excitabilidade neuronal. Esse fenômeno se refere à capacidade das células nervosas de responderem a estímulos, gerando impulsos elétricos que transmitem sinais ao longo do sistema nervoso central. A excitabilidade cerebral é um aspecto fundamental do funcionamento normal do cérebro, mas alterações nesse processo podem contribuir para várias condições patológicas, incluindo epilepsia, ansiedade, esquizofrenia, e transtornos de humor.
Os efeitos da cannabis sobre a excitabilidade cerebral dependem de fatores como a dose, a proporção entre os diferentes canabinoides, a via de administração, e as características individuais dos pacientes, como idade e histórico de uso. Neste post, abordaremos os mecanismos pelos quais os principais canabinoides da planta, o THC e o CBD, modulam a atividade cerebral.
Cannabis e o Sistema Endocanabinoide
O sistema endocanabinoide (SEC) é um dos sistemas de sinalização celular mais importantes no organismo, com influência sobre diversas funções fisiológicas e comportamentais. Esse sistema, que é evolutivamente conservado, desempenha um papel crucial na manutenção da homeostase e é composto por três elementos centrais: os receptores canabinoides (CB1 e CB2), os ligantes endógenos conhecidos como endocanabinoides, como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG), e as enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses ligantes, como a amido hidrolase de ácidos graxos (FAAH) e a monoacilglicerol lipase (MAGL).¹
Os receptores CB1 são amplamente distribuídos no sistema nervoso central (SNC), particularmente em regiões como o hipocampo, córtex pré-frontal, gânglios da base, e cerebelo, áreas envolvidas em funções motoras, processamento da memória e cognição. A ativação desses receptores resulta na modulação da liberação de neurotransmissores, incluindo glutamato, dopamina e GABA, o que gera efeitos moduladores sobre a excitabilidade sináptica e a plasticidade neuronal. Dessa forma, os receptores CB1 são fundamentais para o controle de funções neurofisiológicas, como aprendizado, memória e controle motor.¹
Por outro lado, os receptores CB2 são encontrados em maior quantidade em tecidos periféricos, especialmente em células do sistema imunológico, como macrófagos e linfócitos, além de serem expressos em algumas populações neuronais e células gliais. A ativação dos receptores CB2 está associada a funções imunomoduladoras e anti-inflamatórias, sendo relevante em processos patológicos que envolvem neuroinflamação e respostas imunes aberrantes, como em doenças neurodegenerativas e condições inflamatórias crônicas.¹
Os fitocanabinoides presentes na planta da cannabis interagem diretamente com os componentes do SEC, modulando seus efeitos em diferentes contextos fisiopatológicos. O THC, principal componente psicotrópico da cannabis, atua como um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2. Sua afinidade pelos receptores CB1 no SNC é responsável pelos seus efeitos psicotrópicos, que incluem euforia, alteração do humor e da sensopercepção. Além disso, o THC pode induzir a analgesia e reduzir a espasticidade em condições como esclerose múltipla e dor neuropática.¹ Esse efeito ocorre por meio da inibição da liberação de neurotransmissores excitatórios e da modulação das vias de sinalização nociceptivas.
Para saber mais sobre o papel do THC no tratamento da dor neuropática acesse: Como a Cannabis ajuda no manejo da dor neuropática (wecann.academy)
O canabidiol, por sua vez, possui um perfil de ação distinto, sendo caracterizado pelo potencial de causar mínimos efeitos psicotrópicos, o que o torna uma alternativa terapêutica mais segura em diversas condições clínicas. Embora o CBD tenha baixa afinidade pelos receptores CB1 e CB2, ele atua como um modulador alostérico negativo do receptor CB1, reduzindo os efeitos de agonistas desse receptor como o THC. Além disso, o CBD interage com uma ampla gama de outros receptores e canais iônicos, incluindo os receptores de serotonina 5-HT1A, receptores vaniloides TRPV1, e canais de cálcio do tipo T, contribuindo para seus os múltiplos efeitos ansiolíticos, anticonvulsivantes e anti-inflamatórios.¹
Relação da Cannabis com a excitabilidade cerebral
No SNC, a localização de receptores CB1 é predominantemente em terminais pré-sinápticos de neurônios glutamatérgicos e gabaérgicos, onde exercem sua função moduladora através de mecanismos de sinalização retrógrada, inibindo a liberação de neurotransmissores. Esses receptores são acoplados à proteína G (Gi/o), e a ativação dos receptores CB1 induz o fechamento de canais de cálcio dependentes de voltagem e a abertura de canais de potássio, resultando na hiperpolarização de células pré-sinápticas e na consequente inibição da liberação sináptica de neurotransmissores. Isso afeta uma ampla gama de neurotransmissores, incluindo glutamato, GABA, dopamina, acetilcolina, noradrenalina e serotonina, com efeitos neuromoduladores diversificados conforme o tipo de sinapse e a região cerebral envolvida.
Os receptores CB1 no córtex pré-frontal são fundamentais para a modulação da cognição executiva e da memória de trabalho. O THC, ao se ligar aos receptores CB1 nessa região, pode causar prejuízos cognitivos transitórios, afetando a tomada de decisão e a capacidade de resolver problemas. Evidências sugerem que a regulação dos circuitos excitatórios e inibitórios pelo sistema endocanabinoide pode desempenhar um papel central em distúrbios neuropsiquiátricos como esquizofrenia e transtorno bipolar afetivo.²
O hipocampo, uma área crítica para o processamento da memória e aprendizagem, apresenta uma alta densidade de receptores CB1. A ativação desses receptores por canabinoides endógenos, como a anandamida, tem sido correlacionada com a modulação da plasticidade sináptica, essencial para a consolidação de memórias.² Os receptores CB1 localizados na amígdala são cruciais para a regulação de respostas emocionais, especialmente aquelas associadas ao medo e à ansiedade.²
Nos gânglios da base, uma rede de estruturas envolvidas no controle motor e na modulação da motivação, os receptores CB1 são expressos nos neurônios gabaérgicos e glutamatérgicos. A ativação desses receptores por derivados canabinoides pode alterar significativamente o tônus motor, sendo associada à redução da rigidez em distúrbios como a doença de Parkinson e esclerose múltipla.²
A estimulação dos receptores CB1 no hipotálamo regula uma série de comportamentos homeostáticos, incluindo a ingestão alimentar, o sono e o controle do estresse. Um efeito bem documentado do THC é o aumento do apetite, mediado pela ativação de receptores CB1 em núcleos hipotalâmicos, que regulam a fome e a saciedade.³ Além disso, os endocanabinoides exercem efeitos sobre a termorregulação e o equilíbrio hormonal, modulando o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA).
Funções Neuroprotetoras e Homeostase Sináptica
Os endocanabinoides atuam como importantes reguladores da plasticidade sináptica. A liberação de anandamida e 2-AG em resposta à atividade neuronal excessiva pode proteger o cérebro de estados de hiperexcitabilidade, como ocorre em distúrbios epilépticos.4 A ativação de CB1 em neurônios pré-sinápticos inibe a liberação adicional de glutamato, o principal neurotransmissor excitatório, prevenindo a excitotoxicidade — um mecanismo chave em eventos neurodegenerativos.4
Além disso, os receptores CB1 também têm importantes funções em células gliais. Os astrócitos, que desempenham um papel vital no suporte neuronal e na manutenção da homeostase sináptica, são ativados pelos endocanabinoides, facilitando a modulação da “sinapse tripartite”. Este conceito emergente sugere que os derivados canabinoides não apenas regulam a transmissão sináptica entre neurônios, mas também influenciam a comunicação bidirecional entre neurônios e glia, potencializando suas funções neuroprotetoras.5
Receptores CB2 e Inflamação Neurogênica
Diferentemente dos receptores CB1, os receptores CB2 são predominantemente expressos em células imunológicas, incluindo micróglia, astrócitos reativos e células do sistema imunológico periférico, como macrófagos e linfócitos. Embora a expressão de CB2 no SNC seja limitada em condições basais, sua expressão aumenta drasticamente em resposta a lesões cerebrais, doenças neurodegenerativas e processos inflamatórios, como ocorre na esclerose múltipla, Alzheimer e Parkinson.
A ativação dos receptores CB2 durante estados de neuroinflamação modula a resposta imune, atenuando a liberação de citocinas pró-inflamatórias e facilitando a reparação tecidual. A presença de receptores CB2 na micróglia, por exemplo, permite que a sinalização canabinoide reduza a ativação crônica dessas células, prevenindo danos neuronais secundários ao processo inflamatório. Este efeito anti-inflamatório e neuroprotetor torna os agonistas seletivos de CB2 uma promessa terapêutica em condições neuroinflamatórias crônicas.6
Potencial Terapêutico dos Fitocanabinoides
O THC e o CBD têm sido amplamente estudados por seus efeitos neuroprotetores. O THC, ao ativar receptores CB1, pode aliviar sintomas de dor neuropática e espasticidade, enquanto o CBD, que modula indiretamente a sinalização dos receptores CB1 e CB2 e interage com outros grupos de receptores, como os receptores TRPV1, oferece efeitos anti-inflamatórios e ansiolíticos sem ocasionar os efeitos psicotrópicos potencialmente mais intensos do THC. Em modelos pré-clínicos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, o CBD tem demonstrado capacidade de reduzir a neuroinflamação e o estresse oxidativo.¹
Para saber mais sobre o papel do Canabidiol no tratamento da Doença de Alzheimer acesse: Canabidiol para a Doença de Alzheimer: Potencial terapêutico (wecann.academy)
Esses achados sugerem que a manipulação terapêutica do sistema endocanabinoide pode ser uma estratégia eficaz para o manejo de doenças neurológicas diversas, oferecendo uma abordagem multimodal para o controle de sintomas e também, de neuroproteção. Essa perspectiva amplia as fronteiras da neurociência e evidencia o potencial dos derivados canabinoides como agentes terapêuticos, modulando desde a atividade sináptica até a resposta imune e a reparação tecidual.
Descubra o potencial terapêutico dos Fitocanabinoides: Principais Fitocanabinoides e seus efeitos no organismo (wecann.academy)
Conclusão
A cannabis exerce efeitos moduladores significativos sobre a excitabilidade cerebral, com implicações terapêuticas relevantes. A interação dos derivados canabinoides com o sistema endocanabinoide regula a liberação de neurotransmissores, especialmente em sinapses glutamatérgicas e gabaérgicas, influenciando diretamente o equilíbrio excitatório-inibitório no sistema nervoso central.
O THC, ao se ligar predominantemente aos receptores CB1, modula a excitabilidade neuronal e pode tanto promover a neuroproteção quanto induzir efeitos psicotrópicos mais intensos. Já o CBD, com sua ação alostérica e multifacetada em outros receptores, desempenha um papel crucial na atenuação da hiperexcitabilidade, especialmente em condições como epilepsia e transtornos neurodegenerativos. Assim, os fitocanabinoides oferecem um potencial terapêutico combinado relevante.
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Referências
- MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Liigresti, A. Petrocellis, L. D, & Marzo, V.D.From Phytocannabinoids to Cannabinoid Receptors and Endocannabinoids: Pleiotropic Physiological and Pathological Roles Through Complex Pharmacology. Physiol Rev 96, 67 (2016).
- Di Marzo, V. et al. Leptin-regulated endocannabinoids are involved in maintaining food intake. Nattre 410, 822-825 (2001).
- Wadich, E. Neuropsychiatric Effects of Marijuana MOJ Addict. Med. Ther: 3, (2017).
- Castillo, P E., Younts, T.J, Chávez, A.E.& Hashimotodani, Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Newron 76,22 (2013).
- Pacher, P.& Mechoulam, R. Islipid signaling through cannabinoid 2 receptors part of a protective system? Prog; Lipid Res. 50, 193-211 (2011).