Efeitos da Cannabis no Blefaroespasmo

Publicado em 16/09/24 | Atualizado em 19/09/24 Leitura: 9 minutos

Oftalmológicas

O blefaroespasmo é uma condição neurológica crônica caracterizada por contrações involuntárias e repetitivas dos músculos ao redor dos olhos. Essas contrações, que podem variar em intensidade e frequência, geralmente resultam em fechamento forçado das pálpebras, podendo causar dificuldades significativas na visão e na qualidade de vida dos pacientes. Embora seja uma condição rara, o impacto do blefaroespasmo na funcionalidade diária dos indivíduos acometidos é considerável, levando a uma busca contínua por tratamentos eficazes. Neste post, iremos abordar o potencial terapêutico da cannabis sobre o blefaroespasmo.

Blefaroespasmo

O blefaroespasmo é um distúrbio neurológico caracterizado por contrações involuntárias e repetitivas dos músculos das pálpebras, particularmente o músculo orbicular do olho. Essas contrações podem variar em intensidade, desde piscadas rápidas e frequentes até espasmos intensos que causam o fechamento forçado das pálpebras, dificultando a abertura dos olhos. Nos casos mais graves, o blefaroespasmo pode evoluir para uma condição conhecida como blefaroespasmo essencial benigno (BEB), onde os espasmos são constantes e severos, interferindo significativamente na visão e na qualidade de vida.¹

Os principais sintomas do blefaroespasmo incluem piscamento excessivo, com piscadas repetidas de forma involuntária e difícil de controlar; espasmos nas pálpebras, caracterizados por contrações musculares ao redor dos olhos que podem resultar no fechamento parcial ou total das pálpebras; sensibilidade à luz, onde a exposição à luz intensa agrava os sintomas; e secura ocular, com uma sensação frequente de olhos secos ou irritados. ¹

A atual abordagem terapêutica para o blefaroespasmo inclui o uso de toxina botulínica (Botox), que tem mostrado eficácia em muitos casos. No entanto, nem todos os pacientes respondem de forma adequada a esse tratamento, e os efeitos são frequentemente temporários, necessitando de aplicações repetidas. Além disso, o uso prolongado de toxina botulínica pode levar à formação de anticorpos, reduzindo a eficácia ao longo do tempo. Diante dessas limitações, há um crescente interesse na exploração de alternativas terapêuticas, e a cannabis medicinal tem emergido como uma opção potencialmente promissora.

Sistema Endocanabinoide 

Os canabinoides exercem seus efeitos ao se ligarem a receptores específicos, sendo os mais notáveis o receptor canabinoide 1 (CB1) e o receptor canabinoide 2 (CB2). Esses receptores, que pertencem à família das proteínas G acopladas (GPCRs), são parte integral do sistema endocanabinoide, desempenhando um papel crucial na modulação de diversas vias de sinalização intracelular.² Como a maior família de proteínas de membrana, os GPCRs são essenciais para detectar várias moléculas sinalizadoras, sendo fundamentais para os mecanismos moleculares pelos quais a cannabis atua no cérebro. 

Recentemente, foi identificado que receptores não canabinoides participam juntamente com os receptores canabinoides, na modulação da dor ocular e da inflamação. Entre esses receptores, destacam-se o receptor transitório potencial vaniloide 1 (TRPV1), o receptor transitório potencial anquirina 1 (TRPA1), o receptor transitório potencial subfamília M membro 8 (TRPM8), o receptor de serotonina 1A (5-HT1A), e os receptores ativados por proliferadores de peroxissomo (PPARs).³ Além disso, alguns derivados canabinoides demonstram propriedades antinociceptivas e anti-inflamatórias no olho, devido à sua afinidade com o receptor CB2. A interação do THC com o CB1 também resulta em efeitos de curto e longo prazo na transmissão sináptica. Os derivados canabinoides influenciam, portanto, múltiplos sistemas de neurotransmissão, incluindo os sistemas gabaérgico, serotoninérgico, colinérgico e dopaminérgico.³

Expressão dos receptores CB1, CB2 e TRPV1 na malha trabecular, corpo ciliar e retina, conforme evidenciado em estudos pré-clínicos. A imagem demonstra os principais resultados funcionais da ativação de cada receptor, que contribui para a ação neuroprotetora dos canabinoides.
Expressão dos receptores CB1, CB2 e TRPV1 na malha trabecular, corpo ciliar e retina, conforme evidenciado em estudos pré-clínicos. A imagem demonstra os principais resultados funcionais da ativação de cada receptor, que contribui para a ação neuroprotetora dos canabinoides. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

Os canabinoides interagem com receptores específicos, que são principalmente encontrados nas células epiteliais da córnea e nos gânglios da base, desempenhando um papel crucial na modulação das vias de sinalização associadas à dor ocular e inflamação. Esses receptores incluem tanto os receptores canabinoides quanto os não canabinoides, todos envolvidos na regulação dessas respostas no cérebro.

Evidências Científicas 

O uso de cannabis para tratar blefaroespasmo tem sido objeto de interesse científico. Investigações recentes revelam que os derivados canabinoides, especialmente o THC e o CBD, podem oferecer um alívio significativo para pacientes com essa condição. Um estudo de Radke et al., por exemplo, explorou a eficácia de terapias combinadas com tinturas e cápsulas de THC e CBD em cinco pacientes com blefaroespasmo. Dos quatro pacientes que toleraram o tratamento, três relataram uma redução notável nos sintomas.4 

Entretanto, os mecanismos exatos pelos quais os canabinoides atuam no blefaroespasmo ainda não estão completamente claros. Sugere-se que o CBD possa modular o sistema GABA ou interferir na captação de serotonina, enquanto o THC pode afetar a atividade dos neurônios dopaminérgicos, um mecanismo importante visto que o blefaroespasmo essencial benigno pode ter uma origem psicogênica relacionada ao sistema dopaminérgico.4

No relato de caso de Gauter et al. (2005), o tratamento com delta-9-THC (Dronabinol) resultou em uma melhora significativa dos sintomas em um paciente com blefaroespasmo essencial benigno. Após a adaptação ao tratamento, o paciente experimentou redução na frequência e gravidade dos espasmos, cessação do choro compulsivo, diminuição dos sintomas de olho seco e uma melhoria geral na qualidade de vida.5 

Em outro estudo, Consroe et al (1999). investigaram o efeito do CBD em pacientes com diferentes formas de distonia, incluindo a síndrome de Meige, que combina blefaroespasmo com distonia oromandibular. A melhora sintomática observada foi de aproximadamente 40%, e os efeitos colaterais foram geralmente leves, como hipotensão e boca seca.6 

Um estudo observacional envolvendo cinco pacientes com blefaroespasmo essencial benigno (BEB) revelou que a cannabis medicinal foi bem tolerada, com a maioria dos participantes relatando melhora clínica perceptível em seus sintomas. Os pacientes descreveram alívio significativo da intensidade e frequência dos espasmos, sugerindo um efeito positivo da terapia à base de cannabis.7 No entanto, as escalas objetivas padronizadas de avaliação indicaram redução substancial dos sintomas apenas em alguns casos, apontando para uma discrepância entre a percepção dos pacientes e os dados clínicos. As limitações do estudo, como o pequeno número de participantes, o curto período de acompanhamento e a variabilidade nos esquemas terapêuticos, destacam a necessidade de ensaios clínicos mais amplos e bem controlados para confirmar esses achados e otimizar o uso da cannabis no manejo do BEB.

Outro estudo avaliou a administração de 200 mg diários de CBD sublingual em pacientes com BEB e relatou melhorias clínicas marcantes, principalmente nos parâmetros relacionados à função palpebral. Houve redução significativa na velocidade máxima de fechamento das pálpebras e na duração média dos espasmos, indicando um efeito benéfico do CBD sobre o controle motor desses pacientes.8 Apesar de a escala clínica JRS, amplamente utilizada para mensurar a gravidade do espasmo, não ter mostrado mudanças estatisticamente significativas, o uso de análise cinemática revelou uma melhora funcional que pode não ter sido capturada adequadamente pela escala convencional. 

Apesar dessas descobertas promissoras, os estudos disponíveis até o momento apresentam limitações significativas. A maioria são com amostras pequenas, períodos de acompanhamento curtos e uso variado de escalas para medir a eficácia da terapêutica.  Essas evidências sugerem que, embora a cannabis possa ter potencial terapêutico no tratamento do blefaroespasmo, mais pesquisas são necessárias para esclarecer sua eficácia e definir melhor os mecanismos envolvidos.

Explore o potencial terapêutico da cannabis medicinal na espasticidade associada à esclerose múltipla aqui: Cannabis no tratamento da Esclerose Múltipla – WeCann Academy

Conclusão

A utilização da cannabis no tratamento do blefaroespasmo mostra um potencial promissor, mas ainda requer uma investigação mais aprofundada para consolidar sua eficácia e segurança. Estudos recentes indicam que tanto o THC quanto o CBD podem proporcionar alívio importante dos sintomas associados a essa condição neurológica debilitante. No entanto, os mecanismos exatos pelos quais os canabinoides exercem seus efeitos ainda são pouco compreendidos e necessitam de mais esclarecimentos. A contínua exploração e validação científica são essenciais para determinar o real potencial da cannabis como uma terapia eficaz para o blefaroespasmo e para superar as lacunas existentes na compreensão dos mecanismos envolvidos.

Nesse contexto, é fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem novas terapêuticas para seus pacientes, sempre respaldados por evidências científicas qualificadas. Iniciativas como a WeCann desempenham um papel fundamental ao fornecer informações científicas atualizadas e recursos técnicos qualificados para profissionais da área médica, ajudando a proporcionar melhores resultados para pacientes portadores de transtornos crônicos, refratários e incapacitantes.

Referências

  1. Nicoletti AGB, Aoki L, Nahas TR, Matayoshi S. Blefaroespasmo essencial: revisão da literatura. Arq Bras Oftalmol [Internet]. 2010Sep;73(5):469–73. Available from: https://doi.org/10.1590/S0004-27492010000500018
  2. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  3. Nguyen AX, Wu AY. Association between cannabis and the eyelids: A comprehensive review. Clin Exp Ophthalmol. 2020 Mar;48(2):230-239. doi: 10.1111/ceo.13687. Epub 2019 Dec 6. PMID: 31747112; PMCID: PMC8328051.
  4. Consroe P, Sandyk R, Snider SR. Open label evaluation of cannabidiol in dystonic movement disorders. Int J Neurosci. 1986 Nov;30(4):277-82. doi: 10.3109/00207458608985678. PMID: 3793381.
  5. Gauter B, Rukwied R, Konrad C. Cannabinoid agonists in the treatment of blepharospasm–a case report study. Neuro Endocrinol Lett. 2004 Feb-Apr;25(1-2):45-8. PMID: 15159681.
  6. Boshes, Roger A. M.D., Ph.D.; Afonso, Jose A. M.D.; Tanev, Kaloyan M.D.. Treatment of Meige’s Syndrome with ECT. The Journal of ECT 15(2):p 154-157, June 1999. 
  7. Radke PM, Mokhtarzadeh A, Lee MS, Harrison AR. Medical Cannabis, a Beneficial High in Treatment of Blepharospasm? An Early Observation. Neuroophthalmology. 2017 Jul 18;41(5):253-258. doi: 10.1080/01658107.2017.1318150. PMID: 29339959; PMCID: PMC5764009.
  8. Rona Z. Silkiss, Jayson Koppinger, Timothy Truong, David Gibson, Christopher Tyler; Cannabidiol as an Adjunct to Botulinum Toxin in Blepharospasm – A Randomized Pilot Study. Trans. Vis. Sci. Tech. 2023;12(8):17. https://doi.org/10.1167/tvst.12.8.17.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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