A compreensão do metabolismo dos canabinoides é crucial para a prática médica, dada a crescente utilização de produtos derivados da Cannabis sativa L. e seus constituintes. Esta planta complexa, com uma história milenar de uso, contém mais de 500 compostos, incluindo aproximadamente 100 canabinoides, sendo o Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) os mais abundantes.
O processamento dos canabinoides no organismo, sejam eles endocanabinoides, fitocanabinoides ou canabinoides sintéticos, é mediado por um sistema enzimático complexo que determina sua ativação, desativação e eliminação. No post de hoje vamos explorar o papel das enzimas no metabolismo dos canabinoides
O Sistema Endocanabinoide
Para entender como as enzimas processam os canabinoides, é fundamental primeiro compreender o Sistema Endocanabinoide (SEC). O SEC é um sistema de sinalização complexo e difundido no corpo humano, essencial para a manutenção da homeostase fisiológica.¹
O SEC é composto por três elementos principais:
- Receptores Canabinoides: Embora os receptores CB1 e CB2 sejam os mais conhecidos, a sinalização canabinoide abrange uma gama mais ampla de alvos moleculares. A compreensão dessa diversidade é fundamental para explorar a farmacologia dos canabinoides e suas implicações clínicas.
- Receptor CB1: Este receptor está abundantemente distribuído por todo o organismo, com maior concentração no sistema nervoso central (SNC). Encontra-se em regiões cerebrais vitais como o córtex frontal, hipocampo, gânglios da base, hipotálamo, cerebelo e medula espinhal. No entanto, sua presença não se restringe ao SNC.¹
- Receptor CB2: Predominantemente localizado em células do sistema imunológico e em diversos tecidos periféricos, como baço, timo e medula óssea. Sua distribuição, contudo, não se limita a esses locais; o CB2 também está presente em outros tecidos, como pele, ossos e sistemas gastrointestinal.¹
- Além dos CB1 e CB2, a sinalização canabinoide se estende a outros importantes receptores e alvos moleculares. A interação dos canabinoides com uma diversificada rede de receptores e alvos sublinha a amplitude e complexidade de suas ações biológicas.
- Endocanabinoides: São canabinoides produzidos naturalmente pelo nosso próprio corpo (“endógenos”). Os dois principais são a anandamida (AEA) e o 2-araquidonilglicerol (2-AG).¹ Esses compostos são sintetizados “sob demanda” a partir de precursores fosfolipídicos da membrana celular e atuam como ligantes para os receptores CB1 e CB2, modulando uma vasta gama de funções fisiológicas.¹
- Enzimas Metabólicas: São as enzimas responsáveis pela síntese e degradação dos endocanabinoides. O controle preciso dos níveis de AEA e 2-AG garante que o SEC funcione de forma equilibrada, respondendo às necessidades do corpo.
Os canabinoides da planta (fitocanabinoides), como o THC e o CBD, exercem seus efeitos interagindo com esses mesmos receptores do SEC. Além dos receptores CB1 e CB2, tanto os endocanabinoides quanto os fitocanabinoides podem modular outros receptores acoplados à proteína G e canais iônicos, expandindo ainda mais suas ações biológicas.¹
Para saber mais sobre o sistema endocanabinoide acesse:Sistema Endocanabinoide: O que é? Por que estudar? – WeCann Academy
Principais enzimas envolvidas no metabolismo de canabinoides
O processamento dos canabinoides no organismo, sejam eles endocanabinoides, fitocanabinoides ou canabinoides sintéticos, é mediado por um sistema enzimático complexo que determina sua ativação, desativação e eliminação. O metabolismo dos canabinoides ocorre predominantemente no fígado, com contribuições menores do cérebro, intestino delgado e pulmões.² Os principais canabinoides, THC e CBD, são submetidos à hidroxilação ou oxidação pelas enzimas do Citocromo P450 (CYP450), seguidas de glucuronidação via enzimas UDP-glucuronosiltransferase (UGT), para posterior excreção.
1. Citocromo P450 (CYP)
As enzimas do Citocromo P450 (CYP) representam a principal família enzimática envolvida no metabolismo dos canabinoides. Esta família compreende aproximadamente 10 isoenzimas maiores que catalisam 70-80% do metabolismo de fármacos.³
- Metabolismo do THC: O THC é primariamente metabolizado pelas isoenzimas hepáticas CYP2C9 e CYP3A4 . Esta biotransformação resulta na formação do 11-hidroxi-THC (11-OH-THC), um metabólito ativo com propriedades psicoativas, que interage com os receptores canabinoides CB1 e CB2 . O 11-OH-THC é subsequentemente convertido em 11-nor-9-carboxi-THC (THC-COOH), um metabólito inativo que é o principal produto de excreção e um biomarcador relevante de exposição à cannabis. O THC-COOH é excretado predominantemente na urina, enquanto o 11-OH-THC é mais prevalente nas fezes.²
- Metabolismo do CBD: O CBD é extensivamente metabolizado pelo sistema CYP450. As principais isoenzimas CYP envolvidas são a CYP2C19 e a CYP3A4, que o convertem em 7-hidroxi-CBD (7-OH-CBD), um metabólito ativo, que por sua vez é metabolizado para o metabólito inativo 7-carboxi-CBD (CBD-COOH).²
A variabilidade individual na atividade das enzimas CYP, influenciada por fatores genéticos, dieta e uso concomitante de outros medicamentos, pode resultar em respostas farmacológicas distintas à mesma dose de canabinoides entre pacientes.³
2. Hidrolases (Esterases e Amida Hidrolases)
Além das enzimas CYP, outras hidrolases desempenham funções críticas, particularmente no metabolismo dos endocanabinoides.
- Amida Hidrolase de Ácidos Graxos (FAAH): Esta enzima é a principal responsável pela degradação da anandamida (AEA), um endocanabinoide bem caracterizado. A FAAH regula a duração e intensidade dos efeitos da anandamida no sistema endocanabinoide.²
- Monoacilglicerol Lipase (MAGL): A MAGL é a enzima chave na degradação do 2-araquidonilglicerol (2-AG), outro endocanabinoide relevante. Assim como a FAAH, a MAGL assegura a regulação precisa dos níveis de 2-AG no organismo.²

3. UDP-Glucuronosiltransferase (UGT)
As enzimas UGT são importantes no metabolismo de Fase II, catalisando a conjugação de ácido UDP-glucurônico a diversas substâncias, incluindo canabinoides, para formar metabólitos mais hidrossolúveis, que são mais facilmente excretados na urina ou bile. O THC-COOH, por exemplo, é metabolizado via UGTs 1A1 e 1A3 para formar o THC-COOH-Gluc, o principal metabólito urinário do THC [2]. O 11-OH-THC também é glucuronidado pelas UGTs 1A9 e 1A10. O CBD, por sua vez, pode sofrer glucuronidação direta via UGTs 1A9, 2B7 e 2B17.¹
Implicações clínicas e interações medicamentosas
O conhecimento aprofundado do metabolismo dos canabinoides é fundamental na prática clínica.
- Interações Medicamentosas (DDIs): Os canabinoides podem interagir com outros fármacos metabolizados pelas enzimas CYP e UGT, impactando sua eficácia e segurança. O CBD é um inibidor potente da enzima CYP3A4, o que pode levar ao aumento das concentrações plasmáticas de medicamentos metabolizados por esta via. Estudos in vitro e in vivo demonstraram a inibição das enzimas CYP2C9, CYP2C19, CYP2D6 e CYP3A pelo CBD. O THC, por sua vez, tem demonstrado inibir reversivelmente a atividade de várias enzimas CYP, incluindo CYP1A2, CYP2C9, CYP2C19 e CYP3A4. Essas interações são particularmente relevantes para medicamentos com estreita janela terapêutica, como varfarina e determinados antiepiléticos.³
- Farmacocinética e Posologia: A compreensão das vias metabólicas auxilia na otimização da posologia e na previsão da eficácia e duração dos efeitos dos canabinoides. A biodisponibilidade do THC e do CBD varia consideravelmente com a via de administração: a inalação geralmente resulta em maior biodisponibilidade (10-35% para THC, 11-45% para CBD) e início de ação mais rápido, enquanto a administração oral apresenta menor biodisponibilidade (4-12% para THC, 6% para CBD) devido ao extenso metabolismo de primeira passagem hepática.3,4
- Meia-vida: A meia-vida plasmática do THC varia de 1 a 3 dias em indivíduos com exposição ocasional e de 5 a 13 dias em indivíduos com exposição crônica, devido à sua alta lipossolubilidade e subsequente acúmulo no tecido adiposo. A meia-vida plasmática do CBD é de 18 a 32 horas.³
Conclusão
A jornada de compreensão do Sistema Endocanabinoide e do metabolismo dos canabinoides não é apenas um exercício científico, mas uma necessidade na prática médica contemporânea. Como vimos, a interação dos canabinoides, sejam eles de origem vegetal ou endógena, com uma rede complexa de receptores e enzimas define seus efeitos e destino no organismo.
A capacidade das enzimas Citocromo P450 e UGTs de processar o THC e o CBD é o cerne de como essas moléculas exercem suas ações e, crucialmente, como podem interagir com outros fármacos. A variabilidade individual nas vias metabólicas pode resultar em respostas terapêuticas diversas, exigindo uma abordagem personalizada na prescrição.
O conhecimento sobre o metabolismo dos canabinoides têm profundas implicações clínicas. É de suma importância entender as interações medicamentosas, pois ignorá-las pode levar a alterações nas concentrações plasmáticas de outros fármacos. Isso, por sua vez, pode comprometer a eficácia desses medicamentos ou aumentar sua toxicidade, um cenário particularmente crítico para aqueles com estreita janela terapêutica.
Além disso, a farmacocinética variável dos canabinoides, influenciada pela via de administração e pela lipossolubilidade, impacta diretamente a posologia e a duração dos efeitos. Consequentemente, o médico precisa realizar um ajuste preciso para otimizar o tratamento e garantir a segurança do paciente.
Por fim, o domínio sobre o metabolismo dos canabinoides e suas interações enzimáticas transcende o mero conhecimento farmacológico, ele impacta diretamente a segurança e a qualidade de vida dos pacientes. À medida que a utilização medicinal da Cannabis sativa L. se expande e novos produtos surgem, a responsabilidade de monitorar, ajustar e educar o paciente sobre os riscos e benefícios recai sobre o profissional de saúde. A constante atualização sobre este tema é, portanto, não apenas uma recomendação, mas um pilar fundamental para uma medicina segura e eficaz no contexto dessa terapêutica.
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À medida que a ciência avança na compreensão da farmacologia dos canabinoides, torna-se cada vez mais evidente que as enzimas ocupam um lugar central na regulação de seu metabolismo e, consequentemente, em seus efeitos terapêuticos e potenciais adversos. A complexa interação entre os canabinoides e as diversas enzimas, ilustra um novo paradigma: a resposta do paciente à terapia canabinoide não é meramente uma questão de dose, mas sim de um complexo balanço enzimático que afeta profundamente a farmacocinética e a farmacodinâmica dessas substâncias.
Neste cenário, a WeCann surge como uma aliada estratégica da comunidade médica, oferecendo formação baseada em evidências e ferramentas práticas para integrar o conhecimento sobre o SEC à prática clínica. Entre esses recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, uma obra técnico-científica de referência internacional, que capacita médicos a compreender e aplicar com segurança os canabinoides em condições clínicas complexas, incluindo distúrbios metabólicos e inflamação crônica.
Se você é um profissional da saúde que busca atuar de forma ética, atualizada e centrada no paciente, o acesso ao Tratado de Medicina Endocanabinoide é um passo decisivo para transformar sua abordagem terapêutica.
Referências
- MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Chayasirisobhon, Sirichai. “Mechanisms of Action and Pharmacokinetics of Cannabis.” The Permanente journal vol. 25 (2020): 1-3. doi:10.7812/TPP/19.200
- Bardhi, K., Coates, S., Watson, C. J. W., & Lazarus, P. (2022). Cannabinoids and drug metabolizing enzymes: potential for drug-drug interactions and implications for drug safety and efficacy. Expert Review of Clinical Pharmacology, 15(12), 1443–1460. https://doi.org/10.1080/17512433.2022.2148655
- Smith RT, Gruber SA. Contemplating cannabis? The complex relationship between cannabinoids and hepatic metabolism resulting in the potential for drug-drug interactions. Front Psychiatry. 2023 Jan 10;13:1055481. doi: 10.3389/fpsyt.2022.1055481. PMID: 36704740; PMCID: PMC9871609.