A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crônica da pele, caracterizada por prurido intenso, xerose (ressecamento cutâneo), disfunção da barreira epidérmica e resposta imunológica exacerbada. Afetando milhões de pessoas no mundo, a DA tem impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes devido ao desconforto persistente e ao risco aumentado de infecções secundárias.
Embora existam diversas opções terapêuticas para o controle da doença, muitos pacientes não alcançam alívio completo dos sintomas ou enfrentam efeitos adversos associados aos tratamentos convencionais. Nos últimos anos, os canabinoides têm ganhado destaque como potenciais agentes terapêuticos na dermatite atópica, devido às suas propriedades anti-inflamatórias, imunomoduladoras e restauradoras da barreira cutânea. Neste post vamos explorar os mecanismos pelos quais os canabinoides atuam na DA, suas evidências científicas e seu potencial terapêutico.
Compreendendo a Dermatite Atópica
A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crônica da pele, caracterizada por intenso prurido, xerose cutânea e lesões eczematosas recorrentes. Afeta milhões de pessoas em todo o mundo, sendo particularmente prevalente na infância, embora possa persistir ou manifestar-se na vida adulta. Sua etiopatogenia é complexa e multifatorial, envolvendo predisposição genética, alterações na barreira cutânea, desregulação imunológica e fatores ambientais.¹
Na DA, a integridade da barreira epidérmica encontra-se comprometida, resultando em maior permeabilidade a alérgenos, irritantes e patógenos. Esse fenômeno é amplamente associado a mutações no gene FLG, responsável pela codificação da filagrina, proteína essencial para a formação e manutenção da camada córnea.¹
Além disso, há uma redução na síntese de ceramidas e ácidos graxos essenciais, lipídios estruturais fundamentais para a retenção da umidade da pele. A consequência direta desse déficit é um aumento na perda de água transepidérmica, culminando no ressecamento cutâneo característico da doença e na ativação de vias inflamatórias.¹
Nos estágios iniciais da dermatite atópica, a disfunção da barreira cutânea facilita a penetração de alérgenos, desencadeando uma resposta imunológica exacerbada. Os queratinócitos danificados liberam citocinas como TSLP, IL-25 e IL-33, que ativam células Th2 e ILC2, promovendo a produção de mediadores inflamatórios típicos da via Th2. Além disso, o TSLP contribui para a maturação das células de Langerhans na epiderme, intensificando a ativação imunológica.²
Durante a fase aguda, a deterioração da barreira cutânea se agrava, com os queratinócitos danificados liberando quimiocinas como CCL17 (TARC) e CCL22 (MDC), além de citocinas pró-inflamatórias, que amplificam a ativação de células ILC2 e Th2 na lesão. Nesse estágio, as células ILC2 secretam IL-5 e IL-13, enquanto as células Th2 produzem IL-4, IL-5, IL-13 e IL-31, perpetuando a inflamação e o prurido.²
Na fase crônica da DA, observa-se um aumento não apenas das células Th2, mas também de células Th17 e Th22, resultando em um quadro inflamatório ainda mais complexo. As citocinas IL-4, IL-13 e IL-22 suprimem a expressão de filagrina, agravando a disfunção da barreira epidérmica. Além disso, IL-4 e IL-13 reduzem a produção de peptídeos antimicrobianos (AMPs), tornando a pele mais suscetível a infecções. A IL-22, secretada por células Th17 e Th22, contribui para o espessamento epidérmico característico da fase crônica da doença.²
Essa cascata de eventos inflamatórios evidencia múltiplos alvos terapêuticos potenciais para a DA, desde a modulação da resposta Th2 até a restauração da função de barreira cutânea.
O prurido na DA é um dos sintomas mais debilitantes e está associado à ativação de fibras nervosas sensoriais pela IL-31. Esse sintoma leva à coçadura persistente, causando escoriações e facilitando a entrada de patógenos, o que pode resultar em infecções bacterianas secundárias, frequentemente associadas a Staphylococcus aureus.
Além do impacto físico, o prurido crônico compromete significativamente a qualidade de vida dos pacientes, sendo um fator predisponente para distúrbios do sono, ansiedade e depressão. Estudos apontam que a DA não afeta apenas a saúde cutânea, mas também influencia o bem-estar psicológico, reforçando a necessidade de abordagens terapêuticas que considerem o paciente de maneira integral.¹
Diante das limitações dos tratamentos convencionais, novas abordagens terapêuticas vêm sendo investigadas, incluindo o uso de canabinoides. O sistema endocanabinoide desempenha um papel fundamental na regulação da homeostase cutânea, modulando processos inflamatórios, a função da barreira epidérmica e a transmissão do prurido.
Evidências científicas sugerem que os fitocanabinoides como o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC) apresentam propriedades anti-inflamatórias e imunomoduladoras, podendo reduzir a atividade das células Th2 e a produção de citocinas pró-inflamatórias. Além disso, a ativação dos receptores CB1 e CB2 na pele pode contribuir para a restauração da barreira cutânea e para o alívio do prurido, tornando os canabinoides uma alternativa promissora para o manejo da DA.
Canabinoides e Dermatite Atópica: Novas perspectivas terapêuticas
O tratamento dessa condição é desafiador devido à complexidade da resposta inflamatória, que, na maioria dos casos, é mediada por uma inflamação do tipo Th2. Nesse contexto, o sistema endocanabinoide (SEC) e os canabinoides (CBs), têm mostrado grande potencial terapêutico, uma vez que atuam na modulação da inflamação e no controle de diversas funções celulares na pele.
O sistema endocanabinoide é uma rede complexa composta por endocanabinoides, enzimas responsáveis pela sua síntese e degradação e receptores específicos, como os CB1R e CB2R. Este sistema desempenha um papel fundamental na regulação de várias funções fisiológicas, incluindo a modulação da inflamação, dor e respostas imunes, que são essenciais no contexto de doenças inflamatórias da pele como a dermatite atópica.³
Os receptores CB1R estão localizados principalmente no sistema nervoso central, mas também em várias células periféricas da pele, como queratinócitos e fibroblastos, enquanto os CB2R são mais abundantes nas células do sistema imunológico e também presentes na pele, especialmente em mastócitos e linfócitos.³
A ativação dos receptores CB1R e CB2R pelos canabinoides tem mostrado uma série de efeitos terapêuticos na dermatite atópica. O CBD, por exemplo, tem demonstrado inibir a produção de citocinas pró-inflamatórias, como IL-6, IL-8 e TNF-α, que desempenham um papel importante no desenvolvimento e manutenção da inflamação cutânea. Esse efeito anti-inflamatório do CBD é crucial para reduzir os sintomas da dermatite atópica, como eritema, prurido e edema.4
Além disso, o THC também tem mostrado uma capacidade significativa de inibir mediadores inflamatórios derivados dos queratinócitos, como CCL2, CCL8 e CXCL10, que são induzidos pelo IFN-γ e limitam a infiltração de células imunes mieloides na pele, ajudando a reduzir a inflamação e a resposta imune exacerbada.4
Os mastócitos, células imunes presentes na pele, desempenham um papel central na patogênese da dermatite atópica, pois sua ativação leva à liberação de mediadores inflamatórios, como histamina, que aumentam a inflamação local. Estudos têm demonstrado que os canabinoides, através da interação com os receptores CB1R e CB2R expressos nos mastócitos, podem inibir sua ativação e subsequente liberação de mediadores pró-inflamatórios. Isso contribui para a redução da inflamação cutânea e do prurido, sintomas comuns na dermatite atópica.4
Outro mecanismo importante é a modulação da resposta imune do tipo Th2, que é predominante na dermatite atópica e está associada à produção de citocinas inflamatórias. A deficiência do CB1R em modelos experimentais demonstrou um aumento nos níveis de IL-4, TSLP, IFN-γ e CCL8, moléculas que promovem a inflamação do tipo Th2. A interação entre os canabinoides e os receptores CB1R e CB2R ajuda a reduzir essas citocinas inflamatórias, atenuando a resposta Th2 e, consequentemente, aliviando a inflamação e o prurido na pele.4
Dessa forma, os canabinoides atuam de múltiplas formas na dermatite atópica, modulando as respostas inflamatórias, regulando a função da barreira cutânea e diminuindo a ativação das células imunes. A combinação desses efeitos torna os canabinoides, especialmente o CBD e o THC, opções terapêuticas promissoras para o tratamento da dermatite atópica.
Evidências Científicas
Em relação à dermatite atópica , um campo emergente de pesquisa tem demonstrado resultados promissores no uso de canabinoides , gerando um potencial terapêutico significativo. Embora os estudos ainda sejam limitados, já surgem evidências inovadoras sobre os efeitos benéficos dos CBs, especialmente no tratamento da DA.
Um estudo investigou o impacto do óleo de semente de cânhamo oral em pacientes com DA. Apesar do óleo conter apenas quantidades residuais de CBs, os resultados foram surpreendentes: observou-se uma diminuição significativa no ressecamento da pele, no prurido (p = 0,027) e no uso de medicamentos tópicos (p = 0,024), quando comparado ao grupo que consumiu azeite. Os autores atribuíram esses efeitos ao elevado teor de ácidos graxos poliinsaturados, como o ácido linoléico (ômega-6) e o ácido alfa-linolênico (ômega-3), presentes no óleo de semente de cânhamo, apontando uma nova perspectiva terapêutica para os pacientes com DA.5
No que se refere ao uso tópico de CBs, em especial o palmitoiletanolamida (PEA), um ácido graxo semelhante ao CB, os estudos são majoritariamente observacionais e carecem de grupos placebo, mas os resultados ainda revelam um grande potencial. Vários estudos sugerem que o PEA pode trazer benefícios, especialmente no alívio do prurido e na melhoria das lesões cutâneas associadas à DA. Em um estudo randomizado, duplo-cego e controlado por placebo, a aplicação de um creme de PEA em associação com corticosteróides tópicos demonstrou prolongar o tempo até o próximo surto em pacientes com DA, sinalizando um efeito promissor que pode revolucionar as abordagens terapêuticas existentes.6
Em 2022, Gao et al. realizaram um estudo clínico randomizado e duplo-cego para investigar os efeitos de uma combinação tópica de canabidiol e aspartame (JW-100) em 57 pacientes diagnosticados com dermatite atópica. Após duas semanas de tratamento, os resultados foram notáveis: a maioria dos participantes apresentou melhorias estatisticamente significativas, tanto na redução do prurido quanto da inflamação cutânea. Além disso, houve uma melhora geral na qualidade de vida dos pacientes, especialmente no que diz respeito à saúde da pele, evidenciando o potencial terapêutico dessa abordagem combinada.7
De forma ainda mais significativa, o FDA recentemente aprovou um medicamento à base de palmitoiletanolamida (PEA) para o tratamento da dermatite atópica, refletindo o crescente reconhecimento e a incorporação dos compostos do sistema endocanabinoide no manejo de condições inflamatórias cutâneas. Em um estudo piloto envolvendo 20 pacientes pediátricos com dermatite atópica, foi testada a eficácia e segurança de uma emulsão tópica contendo 2% de adelmidrol, um análogo da PEA. O tratamento, realizado duas vezes ao dia, resultou em uma redução impressionante de 80% na resolução dos sintomas da doença, sublinhando o enorme potencial terapêutico dessas formulações inovadoras.8
Conclusão
Em resumo, os canabinoides, emergem como opções terapêuticas promissoras no tratamento da dermatite atópica. Suas propriedades anti-inflamatórias, imunomoduladoras e restauradoras da barreira cutânea oferecem uma alternativa atraente para pacientes que não respondem adequadamente aos tratamentos convencionais. A modulação das respostas imunológicas e a inibição da ativação de células inflamatórias, são mecanismos-chave que podem proporcionar alívio significativo dos sintomas.
O desenvolvimento de novas formulações tópicas e orais, aliadas à pesquisa contínua sobre os mecanismos de ação dos canabinoides, pode transformar o manejo da doença e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A aplicação de terapias baseadas em canabinoides no contexto da dermatite atópica representa um avanço significativo na medicina dermatológica.
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Referências
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