Uso da Cannabis no tratamento do TDAH: Uma alternativa promissora

Publicado em 18/09/24 | Atualizado em 19/09/24 Leitura: 9 minutos

Cannabis como MedicamentoPsiquiátricas

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um dos distúrbios neuropsiquiátricos mais prevalentes, afetando cerca de 5% das crianças e 3% dos adultos em todo o mundo. Caracterizado por sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade, o TDAH é uma condição crônica e multifatorial, que pode persistir ao longo da vida e impactar significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Além dos sintomas clássicos, muitos indivíduos com TDAH apresentam comorbidades psiquiátricas, como transtorno bipolar, autismo, ansiedade, depressão, além de alterações cognitivas, uso indevido de substâncias e desregulação emocional. No post de hoje iremos abordar as evidências científicas sobre o uso de cannabis no tratamento do TDAH, discutindo os mecanismos de ação, segurança, potencial eficácia e implicações clínicas dessa terapêutica. 

TDAH

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade é uma condição neuropsiquiátrica que afeta o desenvolvimento e o funcionamento do cérebro, sendo caracterizada por padrões persistentes de desatenção, hiperatividade e impulsividade. O TDAH é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento, ou seja, uma condição que surge na infância, mas que pode perdurar ao longo da vida adulta. O TDAH é um transtorno complexo, cuja etiologia envolve uma interação entre fatores genéticos e ambientais. Estudos indicam que a disfunção dos sistemas dopaminérgico e noradrenérgico no cérebro está associada ao desenvolvimento dos sintomas do TDAH.¹ 

As bases neurobiológicas do TDAH ainda não são completamente compreendidas. Estudos apontam para uma hipoatividade dos circuitos dopaminérgicos fronto-estriatais e disfunções na sinalização noradrenérgica como fatores centrais na fisiopatologia do transtorno.² Essas alterações, no entanto, não explicam completamente os sintomas do TDAH, sugerindo que outros sistemas neurobiológicos, como o sistema endocanabinoide (SEC), também possam estar envolvidos.

Sintomas

  • Desatenção: Pacientes com TDAH têm dificuldade em manter o foco em tarefas ou atividades, são facilmente distraídos por estímulos externos e podem ter problemas para organizar suas tarefas e responsabilidades.
  • Hiperatividade: Manifesta-se como uma atividade motora excessiva, inquietação constante e a sensação de estar “sempre em movimento”, o que pode ser especialmente problemático em situações que exigem calma e concentração.
  • Impulsividade: Refere-se a ações precipitadas que ocorrem sem a devida consideração das consequências, como interromper os outros, tomar decisões rapidamente sem pensar nas repercussões ou ter dificuldade em esperar sua vez.

 

O TDAH pode se apresentar de três formas: predominantemente desatento, com dificuldade em manter o foco e organizar tarefas; predominantemente hiperativo/impulsivo, caracterizado por inquietação e comportamento impulsivo; e o tipo combinado, que inclui sintomas de ambos os subtipos. Esses sintomas resultam em desafios significativos nas atividades cotidianas, no desempenho acadêmico ou profissional, e nas interações sociais, tornando o TDAH uma condição que exige manejo e tratamento contínuos.

Os tratamentos convencionais geralmente envolvem medicamentos estimulantes, como metilfenidato e anfetaminas, que aumentam os níveis de dopamina e noradrenalina no cérebro, melhorando a atenção e o controle dos impulsos. Alternativas incluem a atomoxetina, um inibidor da recaptação da noradrenalina, e fármacos que atuam na sinalização adrenérgica, como clonidina e guanfacina. No entanto, esses medicamentos não são isentos de efeitos adversos, que incluem insônia, ansiedade, perda de apetite, alterações na pressão arterial, náusea, entre outros.³ Essas limitações terapêuticas têm levado à investigação de alternativas, incluindo o uso de cannabis medicinal.

O Papel do Sistema Endocanabinoide no TDAH

O sistema endocanabinoide é uma rede complexa de receptores, ligantes endógenos e enzimas que desempenha um papel crucial na regulação de diversos processos fisiológicos, incluindo a modulação da neurotransmissão dopaminérgica e noradrenérgica, sistemas intimamente ligados à fisiopatologia do TDAH. A interação entre o SEC e o sistema dopaminérgico tem sido amplamente documentada, com implicações para uma variedade de distúrbios neuropsiquiátricos e neurodegenerativos, como esquizofrenia, transtorno por uso de substâncias, doença de Parkinson e, potencialmente, TDAH.¹

Estudos sugerem que polimorfismos no gene CNR1, que codifica o receptor CB1, estão associados ao TDAH em pacientes com histórico de alcoolismo, apontando para uma modulação da sinalização dopaminérgica como um possível mecanismo subjacente.4 Além disso, modelos animais têm mostrado que a ablação condicional de receptores CB2 em neurônios dopaminérgicos do mesencéfalo pode reproduzir comportamentos característicos do TDAH, sugerindo que a perda da função neuroimunomoduladora do receptor CB2 nos circuitos dopaminérgicos também pode estar envolvida no desenvolvimento do transtorno.5

A enzima FAAH (amida hidrolase de ácido graxo), responsável pela degradação da anandamida, um endocanabinoide que modula a neurotransmissão dopaminérgica, também tem sido investigada no contexto do TDAH. Reduções na atividade da FAAH em linfócitos de pacientes com TDAH foram observadas em comparação com controles saudáveis, sugerindo que a disfunção na degradação da anandamida poderia contribuir para os sintomas do transtorno.6

Evidências clínicas do uso da cannabis no tratamento do TDAH

Alguns estudos observacionais sugerem que derivados de cannabis podem aliviar sintomas como hiperatividade e impulsividade, enquanto outros não encontram efeitos significativos ou até relatam piora dos sintomas. Essa inconsistência pode ser atribuída a fatores como a dose e a composição dos produtos de cannabis utilizados, a presença de comorbidades e as diferenças nos métodos de avaliação dos sintomas.

O uso prescrito de cannabis em pacientes com TDAH tem sido associado a melhorias na concentração e regulação emocional, além de redução nos níveis de ansiedade, depressão e inquietação.7 Também foi observado que indivíduos com TDAH tendem a usar cannabis para melhorar o sono, sendo que aqueles com sintomas mais leves muitas vezes substituem medicamentos alopáticos por compostos da planta.8

Um estudo, conduzido por Cooper et al. (2017), examinou o impacto do tratamento com nabiximols, um extrato de cannabis contendo proporções equivalentes de THC e CBD, em 30 adultos com TDAH. Após seis semanas de tratamento, foram observadas melhorias na hiperatividade e impulsividade, e uma tendência à melhora da desatenção, embora não houvesse diferenças significativas nos desfechos primários, como desempenho cognitivo e nível de atividade.9

No entanto, esse estudo apresenta limitações importantes, como o pequeno tamanho da amostra, a curta duração do tratamento e as doses relativamente baixas de nabiximols utilizadas. Além disso, a falta de poder estatístico devido à desistência de participantes no grupo placebo comprometeu as conclusões finais. Apesar dessas limitações, os resultados fornecem evidências preliminares de que os canabinoides podem ter um papel terapêutico no tratamento do TDAH, especialmente para pacientes que não respondem bem aos tratamentos convencionais.

Descubra também como o Canabidiol pode auxiliar no tratamento da ansiedade aqui: Gerenciando a Ansiedade com Canabidiol: O Que a Ciência Diz (wecann.academy)

Perspectivas Futuras 

O potencial terapêutico dos canabinoides no tratamento do TDAH ainda está longe de ser totalmente elucidado. O sistema endocanabinoide, com seu papel neuromodulador em circuitos cerebrais associados ao TDAH, oferece uma base racional para o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas. No entanto, mais estudos clínicos de melhor qualidade metodológica são necessários para determinar a real eficácia e a segurança dos canabinoides para essa condição.

O desenvolvimento de novos ensaios clínicos, incluindo estudos que investiguem diferentes proporções de canabinoides como CBD, CBDV (canabidivarina), CBG (cannabigerol) e THC, bem como a análise dos níveis plasmáticos de endocanabinoides e metabólitos dos derivados canabinoides, poderá esclarecer melhor o papel da cannabis no manejo do TDAH. Além disso, a avaliação dos potenciais riscos e benefícios a longo prazo, particularmente em pacientes pediátricos, é essencial para que a cannabis possa ser considerada uma alternativa viável e segura aos tratamentos atualmente disponíveis.

Conclusão

O sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial na modulação de neurotransmissores que estão intimamente ligados à fisiopatologia do TDAH, o que sugere uma base racional para o uso de canabinoides como alternativa terapêutica. No entanto, as evidências científicas disponíveis ainda são preliminares e limitadas.  Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel fundamental auxiliando a comunidade médica a tomar decisões responsáveis e baseadas em evidências científicas qualificadas. Através de conteúdos técnicos com alto rigor científico como O Tratado de Medicina Endocanabinoide, guia os profissionais médicos a aprofundar seus conhecimentos na área e a aplicar as terapêuticas à base de cannabis de maneira segura e eficaz.

Referências 

  1. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Faraone, S. V. et al. Attention-deficit/hyperactivity disorder. Nat. Rev, Dis. Primer 1, 15020 (2015). 
  3. Tripp, G. & Wickens,J. R. Neurobiology of ADHD. Neuropharmacology 57, 579-589 (2009).
  4. Ponce, G. et al. Association between cannabinoid receptor gene (CNR1) and childhood attention deficit/hyperactivity disorder in Spanish male alcoholic patients. Mol. Psychiatry 8, 466-467 (2003).
  5. Canseco-Alba, A. et al. Cell-Type Specific Deletion of CB2 Cannabinoid Receptors in Dopamine Neurons Induced Hyperactivity Phenotype: Possible Relevance to Attention-Deficit Hyperactivity Disorder. Front. Psycbiatry 12, 803394 (2022). 
  6. Centonze, D. et al, Altered anandamide degradation in attention-deficit/hyperactivity disorder. Neurology 72, 1526-1527 (2009).
  7. ANSELL, H. et al. Cannabis for the Treatment of Attention Deficit Hyperactivity Disorder: A Report of 3 Cases. Medical Cannabis and Cannabinoids, v. 5, n. 1, p. 1–6, 13 jan. 2022.
  8. STEVENS, A. K. et al. Examining motivational pathways from adult attentiondeficit/hyperactivity disorder symptoms to cannabis use: Results from a prospective study of veterans. Psychology of Addictive Behaviors, 3 set. 2020. 
  9. Cooper, R. E. et al. Cannabinoids in attention. deficit/hyperactivity disorder: A randomised. controlled trial. Eur:. Neuropsychopharmacol. 27, 795-808 (2017).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

Mantenha-se atualizado. Cadastre-se e receba conteúdos exclusivos e tecnicamente qualificados.


    Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

    Assine nossa
    
newsletter.

      Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

      Artigos relacionados