A ansiedade é uma condição mental prevalente que pode afetar profundamente a qualidade de vida, manifestando-se como sintomas de preocupação excessiva, inquietação, e dificuldades de concentração. Tradicionalmente, tratamentos como psicoterapia, antidepressivos e ansiolíticos têm sido amplamente utilizados para controlar os sintomas de ansiedade. No entanto, muitas vezes a terapêutica convencional não é eficaz ou tolerável para todos os pacientes, levando à busca por alternativas terapêuticas, como a cannabis medicinal. Neste post, discutiremos o papel do sistema endocanabinoide na regulação do humor e resposta ao estresse, bem como, o papel dos principais canabinoides no tratamento da ansiedade, abordando as evidências científicas, e mecanismos de ação subjacentes.
O Sistema Endocanabinoide e a Ansiedade
O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel crucial na regulação de várias funções fisiológicas, incluindo o humor e a resposta ao estresse. Este sistema é composto por três elementos principais: os receptores canabinoides (CB1 e CB2), os endocanabinoides (como a anandamida e o 2-AG) e as enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses endocanabinoides. Os endocanabinoides estão entre os neurotransmissores mais amplamente distribuídos no sistema nervoso central e têm uma função neuromoduladora essencial, interagindo com outros neurotransmissores e sistemas neuro-hormonais.
Receptores Canabinoides
Os receptores canabinoides são proteínas encontradas na superfície de várias células do corpo. Existem dois tipos principais de receptores: CB1 e CB2. Os receptores CB1 são predominantemente encontrados no sistema nervoso central, especialmente em regiões do cérebro associadas ao controle de emoções, memória e percepção da dor, como o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal.¹ Essa distribuição é essencial para a influência dos canabinoides nos estados emocionais e na resposta ao estresse. Por outro lado, os receptores CB2 estão localizados principalmente nas células do sistema imunológico e em tecidos periféricos, desempenhando um papel relevante na modulação da neuroinflamação, que está frequentemente associada a distúrbios de ansiedade.
Endocanabinoides
Os endocanabinoides são moléculas produzidas naturalmente pelo corpo que se ligam aos receptores canabinoides, ativando-os. Os dois endocanabinoides mais estudados são a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG). A anandamida está associada à regulação do humor e ao alívio do estresse. Níveis elevados de anandamida estão correlacionados com uma redução dos sintomas de ansiedade. O 2-AG, por sua vez, tem um papel mais amplo na modulação das funções cerebrais e na resposta ao estresse, sendo crucial para a manutenção da homeostase emocional.
Enzimas de síntese e degradação
A regulação dos níveis de endocanabinoides no organismo é controlada por enzimas específicas que sintetizam e degradam essas moléculas. A enzima FAAH (amida hidrolase de ácidos graxos) é responsável pela degradação da anandamida, enquanto a MAGL (monoacilglicerol lipase) degrada o 2-AG.²,³ A modulação da atividade dessas enzimas pode influenciar significativamente os níveis de endocanabinoides, impactando diretamente a resposta ao estresse e os sintomas de ansiedade. Por exemplo, inibidores de FAAH têm sido investigados como potenciais tratamentos para transtornos de ansiedade devido à sua capacidade de aumentar os níveis de anandamida no cérebro.²
Interações e Mecanismos de Ação
Os endocanabinoides atuam como neuromoduladores, ajustando a liberação de neurotransmissores como dopamina, serotonina e glutamato, que são críticos para o humor e a resposta ao estresse. A interação entre o sistema endocanabinoide e o sistema serotoninérgico é particularmente importante no contexto da ansiedade. O receptor 5-HT1A da serotonina, conhecido por seu papel na ansiedade e depressão, é modulado pelos endocanabinoides, sugerindo uma ligação direta entre esses sistemas.
Além disso, os canabinoides exógenos, como o canabidiol (CBD) e o delta-9-tetraidrocanabinol (THC), interagem com o SEC de maneiras distintas. O CBD não se liga diretamente aos receptores CB1 e CB2, mas modula indiretamente a atividade do SEC e pode aumentar os níveis de endocanabinoides endógenos. O THC, por outro lado, se liga diretamente aos receptores CB1, podendo induzir efeitos ansiolíticos ou ansiogênicos dependendo da dose e do contexto de uso. A dose de THC é um fator crucial: enquanto baixas doses tendem a ter efeitos ansiolíticos, doses elevadas podem desencadear ansiedade e sintomas psicóticos em alguns indivíduos.
Evidências Clínicas e Pré-Clínicas
Pesquisas tanto em modelos animais quanto em estudos clínicos com humanos têm demonstrado a importância dos receptores canabinoides CB1 na regulação do estresse e na etiologia de vários transtornos de humor. Esses receptores estão envolvidos no desenvolvimento de condições como ansiedade, depressão, transtorno bipolar, e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Além disso, seu papel é significativo na etiopatogênese de doenças como esquizofrenia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e distúrbios alimentares, incluindo anorexia e bulimia nervosa.¹
A interrupção da sinalização do sistema endocanabinoide na amígdala, uma região do cérebro fundamental para a resposta ao estresse, pode desencadear ansiedade induzida pelo estresse.4 Quando os níveis séricos de endocanabinoides diminuem, os modelos animais apresentam um aumento na ansiedade, estresse e respostas ao medo. Estudos indicam que a elevação seletiva dos níveis de anandamida, um dos principais endocanabinoides, pode provocar mudanças plásticas nas respostas ao medo, mediadas pelos receptores CB1 em neurônios glutamatérgicos.5
Uma mutação comum no gene FAAH (C385A; rs324420), que codifica a enzima responsável pela degradação da anandamida e do 2-AG, resulta em uma hipofunção desta enzima. Isso leva a um aumento dos níveis séricos desses endocanabinoides. Evidências de estudos em modelos animais e humanos sugerem que essa mutação aumenta a conectividade entre o córtex pré-frontal e a amígdala, facilitando o aprendizado da extinção do medo e reduzindo comportamentos relacionados à ansiedade.²
Canabidiol e Ansiedade
O canabidiol é um dos principais canabinoides encontrados na planta da cannabis e tem sido amplamente estudado por suas propriedades ansiolíticas. Estudos pré-clínicos e clínicos sugerem que o CBD pode reduzir a ansiedade através de diversos mecanismos:
- Interação com Receptores de Serotonina: O CBD atua como um agonista parcial dos receptores 5-HT1A, um tipo de receptor de serotonina, mediando seus efeitos ansiolíticos.
- Modulação de Receptores CB1: Embora o CBD tenha baixa afinidade pelos receptores CB1, ele pode modular indiretamente esses receptores, potencializando a ação ansiolítica dos endocanabinoides naturais.
- Inibição da Reabsorção de Anandamida: O CBD pode aumentar os níveis de anandamida ao inibir sua degradação, promovendo um efeito calmante.
Em um ensaio clínico randomizado duplo-cego realizado no Brasil com 57 indivíduos saudáveis, foi relatado que o CBD apresentou uma curva de dose-resposta em forma de U durante um teste simulado de falar em público. O pré-tratamento com 300 mg de CBD reduziu significativamente a ansiedade durante o teste, enquanto doses menores (150 mg) e maiores (600 mg) não diferiram estatisticamente do placebo.6 Isso indica que a determinação precisa das doses terapêuticas é crucial para uma aplicação clínica eficaz.
Uma série de casos avaliou os efeitos do CBD nos sintomas de ansiedade e nos distúrbios do sono em 103 pacientes adultos. Os escores de ansiedade diminuíram em 79,2% no primeiro mês e permaneceram baixos durante os três meses de estudo. Os escores de sono melhoraram no primeiro mês em 48 pacientes (66,7%), mas variaram ao longo do acompanhamento.7 A maioria dos pacientes recebeu 25 mg de CBD/dia em cápsulas. Quando as queixas de ansiedade eram predominantes, a dose era administrada pela manhã; já para as queixas de sono, a dose era administrada à noite. Alguns pacientes receberam 50 ou 75 mg de CBD/dia.
A proporção de CBD e THC nas formulações de cannabis é um fator que pode ser determinante para os seus potenciais efeitos ansiolíticos. Estudos indicam que formulações ricas em CBD e com baixo teor de THC são mais eficazes no tratamento da ansiedade.8 O CBD pode atenuar os efeitos ansiolíticos e potencialmente ansiogênicos do THC, resultando em um perfil terapêutico mais equilibrado.
Tetrahidrocanabinol e Ansiedade
O tetrahidrocanabinol é o principal composto psicotrópico da cannabis, conhecido por seus efeitos profundos sobre o humor e a percepção. Seus impactos na ansiedade são complexos e caracteristicamente dose-dependentes. O Δ9-THC apresenta efeitos bifásicos, ou seja, sua capacidade de aumentar ou reduzir a ansiedade em adultos saudáveis depende da dose administrada.9 Estudos de neuroimagem mostram que, em determinadas doses, o Δ9-THC pode intensificar ou atenuar a resposta emocional a estímulos negativos.9 Em contraste, o CBD tem demonstrado consistentemente propriedades ansiolíticas, sendo capaz de neutralizar os efeitos ansiogênicos do Δ9-THC.
Um ensaio clínico randomizado duplo-cego, investigou a segurança e eficácia da nabilona, um análogo sintético do THC, no tratamento da ansiedade. Nesse estudo, 25 pacientes com ansiedade grave receberam nabilona em doses mínimas de 1 mg duas vezes ao dia, com incrementos ajustados pelos pesquisadores, sem exceder 10 mg por dia, ao longo de 28 dias. Os resultados mostraram uma melhora significativa na ansiedade no grupo tratado com nabilona em comparação com o grupo placebo, com efeitos colaterais leves, como boca seca, olhos secos e sonolência.10
Além dos estudos clínicos, evidências do mundo real (real world evidence RWE) provenientes de programas de cannabis medicinal no Reino Unido e no Canadá têm demonstrado a segurança e a eficácia de vários produtos de cannabis no tratamento de transtornos de ansiedade. Observações indicam que formulações de cannabis com maiores concentrações de THC podem ser mais eficazes na redução da ansiedade em comparação com quimiovariantes de tipo III, que possuem alto teor de CBD e baixo teor de THC.11
As evidências sobre o THC indicam que ele pode exercer um efeito ansiolítico em baixas doses orais agudas. Em outro estudo foi visto que uma dose de 7,5 mg de THC em adultos saudáveis reduziu a reatividade da região límbica frente a estímulos de ameaça social, sugerindo que o efeito ansiolítico esteja ligado aos mecanismos centrais relacionados ao comportamento de medo. Além disso, essa mesma dose de 7,5 mg de THC também foi capaz de atenuar os efeitos emocionais negativos induzidos pelo teste TSST. 12
No entanto, quando administrado em doses mais altas, o THC parece ter um efeito contrário, elevando a ansiedade. Doses agudas orais de 12,5 mg de THC foram associadas ao aumento da ansiedade, depressão e angústia subjetiva em adultos saudáveis.13 Da mesma forma, uma dose de 10 mg de THC elevou a ansiedade e causou a ativação de regiões específicas do cérebro, como o córtex frontal e parietal, diferenciando-se dos efeitos do CBD.13 Além disso, uma dose única de 1,5 mg de THC administrada por via intravenosa provocou experiências anômalas, ansiedade, preocupação, depressão e crenças negativas sobre si mesmo, aumentando a paranoia em indivíduos com ideação persecutória.14
Conclusão
O tratamento da ansiedade com canabinoides é uma área promissora, mas complexa, que requer uma abordagem personalizada. Formulações com uma alta proporção de CBD em relação ao THC são consideradas mais eficazes e seguras para a maioria dos pacientes. A escolha da proporção correta de CBD e THC é essencial para otimizar os benefícios e minimizar os riscos, necessitando de um monitoramento contínuo dos pacientes para garantir segurança e eficácia. Portanto, é fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem capacitação nas terapêuticas à base de cannabis. Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel fundamental ao fornecer conteúdos técnicos de qualidade sobre cannabis medicinal, sempre baseados em rigor científico. Dessa maneira, a WeCann contribui para a incorporação segura da cannabis medicinal na prática médica e promove uma abordagem mais assertiva e personalizada no manejo de pacientes com ansiedade.
Referências
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