Segurança dos Canabinoides em terapias a longo prazo

Publicado em 29/08/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 14 minutos

Canabinoides

O uso de canabinoides para fins terapêuticos tem sido um campo de crescente interesse na medicina contemporânea. Esses compostos, extraídos principalmente da planta Cannabis sativa, têm demonstrado potencial terapêutico em uma variedade de condições clínicas, desde dor crônica até epilepsia e transtornos de ansiedade. Contudo, com o aumento da utilização de canabinoides na prática médica, surge a necessidade de melhor compreender sua segurança, especialmente em terapias de longo prazo. Neste post, vamos abordar as evidências científicas existentes sobre a segurança dos canabinoides em tratamentos de longo prazo.

Canabinoides

Os canabinoides são uma classe de compostos químicos que interagem com o sistema endocanabinoide do corpo humano. Os principais canabinoides são o Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) e o canabidiol (CBD), ambos amplamente estudados por suas propriedades terapêuticas. Após a década de 1930, o uso medicinal da Cannabis sofreu um declínio mundial devido a restrições políticas e ao conhecimento limitado sobre seus princípios ativos. Somente em 1964, os principais compostos químicos da Cannabis sativa foram identificados e isolados: o Δ9-THC, responsável pelos efeitos psicotrópicos da planta, e o CBD, que apresenta efeitos psicoativos, mas não potencialmente tóxicos. 

Até hoje, foram identificados mais de 500 compostos químicos presentes na planta, sendo que 10% desses são fitocanabinoides com atuação direta no cérebro humano.³ Nos anos 1990, a descoberta do sistema endocanabinoide revelou dois tipos principais de receptores: CB1, encontrado principalmente no sistema nervoso central, e CB2, amplamente presente em células do sistema imunológico. Estes receptores, acoplados à proteína G, atuam inibindo a enzima adenilato ciclase, modulando diversas funções fisiológicas, incluindo a resposta à dor e inflamação.4

Para saber mais sobre os canabinoides acesse: Principais Fitocanabinoides e seus efeitos no organismo (wecann.academy)

Eficácia dos Canabinoides

Estudos indicam que os canabinoides possuem um alto potencial terapêutico, sendo utilizados no tratamento de diversas patologias, devido às suas propriedades ansiolíticas, anti-inflamatórias, anticonvulsivantes, dentre muitas outras. 

Tratamento da Dor Crônica

Os receptores endocanabinoides estão amplamente distribuídos pelo sistema nervoso central (SNC), sistema imunológico e diversos órgãos e tecidos periféricos. Tanto os receptores CB1 quanto os CB2 são sintetizados em resposta a estímulos dolorosos. O receptor CB1, predominante no SNC, modula a dor inibindo a transmissão dos impulsos nervosos através de uma cascata que reduz a liberação de neurotransmissores. Em contraste, o receptor CB2 demonstra maior potencial nas dores periféricas associadas a processos inflamatórios. A ativação dos receptores CB2 ocorre na medula espinhal, onde a resposta inflamatória é mediada por células microgliais e astrócitos. O Δ9-THC é um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2, demonstrando-se uma alternativa promissora devido aos seus efeitos analgésicos. Além disso, o canabidiol pode ser utilizado para mitigar os potenciais efeitos adversos do Δ9-THC.5

Um estudo prospectivo realizado por Bar-Lev Schleider et al. (2022) em Israel destacou-se por sua abrangência e relevância. Com mais de 10.000 participantes, o estudo avaliou os efeitos da cannabis medicinal em condições crônicas, como dor e distúrbios do sono. Aproximadamente 80% dos pacientes relataram dor crônica e problemas de sono como seus principais sintomas. Após seis meses de tratamento, mais de 70% dos pacientes apresentaram melhorias na intensidade da dor, com mais de 60% alcançando reduções significativas de 30% ou mais. Além disso, houve uma diminuição notável no número de pacientes que classificaram sua dor entre 8 e 10 na escala de intensidade, reduzindo de 62% antes do tratamento para apenas 5% após seis meses de tratamento.6

Estudos recentes têm demonstrado que a cannabis medicinal é, em geral, um tratamento bem tolerado, apresentando efeitos colaterais relativamente leves em comparação com outras terapias para dor crônica. Uma revisão sistemática, que analisou diversos estudos sobre o uso de cannabis para esta finalidade, revelou que os efeitos adversos mais comuns relatados pelos pacientes incluíam boca seca, sonolência, tontura e fadiga, todos considerados de leve a moderada intensidade.7 Além disso, a baixa taxa de abandono do tratamento devido a esses efeitos adversos sugere uma boa tolerabilidade da cannabis medicinal. Esses achados são particularmente relevantes quando comparados com os perfis de efeitos colaterais de outros tratamentos para dor crônica, como opioides, que frequentemente estão associados a riscos mais graves, incluindo dependência e depressão respiratória. Assim, a cannabis medicinal se destaca como uma alternativa terapêutica promissora e segura para o manejo da dor crônica, especialmente em pacientes que buscam minimizar os efeitos colaterais dos tratamentos convencionais.

A administração conjunta de canabinoides e opioides, como a morfina, tem mostrado potencial significativo no tratamento da dor crônica. Estudos indicam que essa combinação pode aumentar o efeito analgésico dos opioides, permitindo a redução das doses necessárias e, consequentemente, minimizando os efeitos colaterais associados.8 Além disso, a coadministração de canabinoides pode ajudar a gerenciar a tolerância desenvolvida por pacientes em tratamento prolongado com opioides. Os estudos clínicos sobre o uso de canabinoides no tratamento da dor crônica têm apresentado resultados promissores, especialmente em casos de dor crônica refratária, onde as terapias convencionais falharam. 

Epilepsia

O canabidiol tem sido amplamente recomendado para casos de epilepsia refratária. Estudos recentes sugerem que o CBD aumenta a ativação dos receptores CB1 pela anandamida, enquanto diminui seu agonismo pelo 2-AG, modulando a atividade neuronal envolvida nas crises epiléticas. Esse efeito é particularmente relevante devido à ação pré-sináptica dos receptores CB1 em neurônios glutamatérgicos, que são focos de origem das atividades epileptiformes. A administração sistêmica de CBD leva ao acúmulo de anandamida nos sítios de ação sináptica, ajudando a moderar os circuitos neuronais responsáveis pela disseminação da atividade epiléptica.9

A alta eficácia do extrato de CBD em reduzir ou até mesmo eliminar convulsões, juntamente com a baixa incidência de efeitos colaterais, torna seu uso cada vez mais aceito tanto pela comunidade médica quanto por pacientes e familiares, especialmente em casos de epilepsias refratárias e de difícil controle, como as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Em um estudo multicêntrico envolvendo pacientes com essa síndrome, o CBD demonstrou ser um tratamento seguro e bem tolerável, promovendo uma redução significativa na ocorrência de convulsões ao longo de um período de tratamento de 14 semanas.10

Doença de Parkinson

A doença de Parkinson é um distúrbio neurodegenerativo caracterizado pela morte de neurônios dopaminérgicos na substância negra do cérebro, localizada no mesencéfalo. Este processo leva a uma série de sintomas motores, como tremores, bradicinesia, instabilidade postural e rigidez muscular, além de sintomas não motores, incluindo alterações no olfato e na fala, disfagia, mudanças cognitivas, depressão e distúrbios do sono. A neuroinflamação, evidenciada por altos níveis de células microgliais nas áreas afetadas, é uma das principais causas da degeneração dos neurônios dopaminérgicos. Pesquisas têm demonstrado que a ativação dos receptores CB2 possui um efeito neuroprotetor nessas regiões.11

Os tratamentos convencionais para a doença de Parkinson envolvem o uso de fármacos agonistas da dopamina, anticolinérgicos e inibidores da monoamina oxidase-B (MAO-B). A Levodopa (L-DOPA) é amplamente utilizada, particularmente eficaz no controle da bradicinesia. No entanto, esse fármaco e outros similares apresentam uma série de efeitos adversos significativos, incluindo intolerância gastrointestinal e sintomas que mimetizam a própria patologia, como movimentos involuntários e alterações comportamentais. Além disso, o uso prolongado desses medicamentos pode levar ao desenvolvimento de tolerância, necessitando ajustes frequentes nas doses e aumento na frequência de administração para manter os efeitos terapêuticos.

Os canabinoides surgem como uma alternativa promissora devido às suas propriedades neuroprotetoras e ao perfil de segurança favorável. A atividade neuroprotetora dos canabinoides reduz as lesões oxidativas responsáveis pela degeneração neuronal, minimizando a excitotoxicidade e a ativação glial.11 Outros estudos destacam a capacidade dos canabinoides em proteger as células neuronais, retardando a progressão da doença.12

Transtornos de Ansiedade

Os transtornos de ansiedade apresentam alta taxa de prevalência, estando entre os transtornos psiquiátricos mais comuns, impactando gravemente a qualidade de vida e saúde de seus portadores. O tratamento convencional inclui o uso de antidepressivos, benzodiazepínicos e/ou inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), que apresentam vários efeitos adversos, além de altas taxas de refratariedade e abandono do tratamento.

A utilização de canabinoides no tratamento dos transtornos de ansiedade tem sido amplamente estudada, com resultados promissores. O canabidiol é o principal componente estudado, devido as suas propriedades ansiolíticas. Sua ação é mediada pela modulação do receptor 5-HT1A, ligado ao sistema serotoninérgico, e pelo aumento dos níveis de anandamida, além de interações com os receptores TRPV1 e PPARγ. Os efeitos do CBD sobre o transtorno de ansiedade generalizada (TAG) foram demonstrados em estudos com animais e humanos, mostrando redução significativa dos sintomas de ansiedade.4

Em 2019, Shannon e colaboradores conduziram uma série de casos que examinou os efeitos do canabidiol  sobre os sintomas de ansiedade e distúrbios do sono em um grupo de 103 pacientes adultos. Este estudo focou-se em avaliar a eficácia do CBD como um tratamento alternativo para esses distúrbios, que são frequentemente difíceis de gerenciar com as terapias convencionais. Os resultados mostraram uma redução significativa nos escores de ansiedade já no primeiro mês de tratamento. Especificamente, 79,2% dos pacientes relataram uma diminuição substancial nos níveis de ansiedade, medidos através de escalas de avaliação padronizadas. Notavelmente, essa redução nos sintomas de ansiedade foi mantida ao longo de todo o período do estudo, indicando uma eficácia sustentada do CBD.13  Além disso, os participantes do estudo também relataram melhorias nos padrões de sono. A consistência dos resultados ao longo do estudo destaca o potencial do CBD como uma intervenção terapêutica segura e potencialmente eficaz para tratamento da ansiedade e distúrbios do sono.

Segurança ao longo prazo

Os canabinoides apresentam um potencial terapêutico significativo no tratamento de diversas condições médicas, incluindo dor crônica, epilepsia, doença de Parkinson e transtornos de ansiedade. Embora mais estudos sejam necessários para entender completamente seus mecanismos de ação e efeitos em longo prazo, as evidências atuais indicam que os canabinoides podem ser uma alternativa segura e eficaz para o tratamento de várias condições, frequentemente refratárias e de difícil manejo. 

Até o momento, não há evidências científicas sólidas que indiquem que os efeitos adversos neuropsiquiátricos sejam uma preocupação significativa no uso medicinal da cannabis, especialmente quando se utiliza produtos padronizados e de alta qualidade, aliados a métodos terapêuticos bem definidos e ao acompanhamento médico adequado. Dados recentes de farmacovigilância, coletados pela farmacêutica GW Pharmaceuticals para avaliar o nabiximols (um produto contendo 27 mg de THC/mL e 25 mg de CBD/mL), demonstraram que não houve um aumento relevante na incidência de efeitos adversos neuropsiquiátricos entre milhares de usuários regulares.14 Além disso, estudos conduzidos por diferentes grupos de pesquisadores confirmaram que o nabiximols é bem tolerado ao longo do tempo, sem associações significativas com alterações na cognição ou no humor dos pacientes. Esses resultados reforçam a segurança e a eficácia do uso de cannabis medicinal em um contexto controlado e supervisionado.15

Alguns estudos iniciais apontam que os canabinoides, especialmente o Δ9-THC, podem causar efeitos adversos como boca seca e sonolência, que são geralmente bem tolerados pelos pacientes. Entretanto, existem algumas estratégias para mitigar isso, como o uso associado ao CBD, já que esse fitocanabinoide pode amenizar os efeitos indesejados do THC, proporcionando um tratamento mais equilibrado e seguro  . Além disso, é importante considerar a individualidade biológica dos pacientes, pois a resposta aos canabinoides pode variar significativamente entre os indivíduos. A maioria das evidências disponíveis sugere que os canabinoides podem ser uma opção terapêutica segura e eficaz a longo prazo.

Conclusão

Ao considerar a segurança dos canabinoides em terapias de longo prazo, é fundamental reconhecer tanto seu potencial terapêutico significativo quanto a necessidade de pesquisas mais extensivas. As evidências atuais indicam que, apesar de potencialmente apresentarem alguns efeitos adversos, os canabinoides são geralmente bem tolerados pelos pacientes. É fundamental que os médicos se mantenham atualizados sobre as terapias com cannabis medicinal para oferecer o melhor cuidado possível aos seus pacientes.  Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel fundamental, fornecendo informações baseadas em evidências científicas e contando com uma comunidade global e um centro de estudos especializado em medicina endocanabinoide. Além disso, dispõe de um tratado de medicina endocanabinoide, referência na área, que permite aos médicos aprofundar seus conhecimentos e aplicar terapias com cannabis de maneira segura e eficaz.

Referências

  1. MATOS, R. L. A. et al. O uso do canabidiol no tratamento da epilepsia. Revista Virtual de Química, v. 9, n. 2, p. 786-814, 2017
  2.  MATOS, G.V Therapeutic Action Of Cannabis Sativa In The Treatment Of People With Cancer: A Review In The Literature  
  3. GARCIA, T. R., Cruz, M. C. A., Silva, G. O. A., Cardoso, E. F., & Arruda, J. T. (2020). Canabidiol para o tratamento de pacientes com Síndrome de West e epilepsia. Research, Society and Development, 9(9), e420997267.
  4. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  5. LESSA, M.A, Cavalcanti IL e Figueiredo NV et. al. Derivados canabinóides e o tratamento farmacológico da dor; Rev Dor. São Paulo, 2016 jan-mar;17(1):47-51 
  6. Bar-Lev Schleider L, Mechoulam R, Sikorin I, Naftali T, Novack V. Adherence, Safety, and Effectiveness of Medical Cannabis and Epidemiological Characteristics of the Patient Population: A Prospective Study. Front Med (Lausanne). 2022 Feb 9;9:827849. doi: 10.3389/fmed.2022.827849. PMID: 35223923; PMCID: PMC8864967.
  7. MATIAS, G. F. S. .; LIMA, M. A. C.; COSTA, T. A. .; FARIA, M. S. .; NASCIMENTO , I. B. O. .; DEBBO, A. Use of Cannabis for chronic pain treatment: a systematic review. Research, Society and Development, [S. l.], v. 11, n. 3, p. e25411326586, 2022. DOI: 10.33448/rsd-v11i3.26586. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/26586. Acesso em: 25 aug. 2024.
  8. ASCENÇÃO, M. D., Lustosa VR, Silva LJ; Canabinoides no tratamento da dor crônica; 2238-5339 © Rev Med Saude Brasilia 2016; 5(3): 255-63
  9. MEDEIROS, F. C., Soares, P. B., Jesus, R. A., Teixeira, D. G., Alexandre, M. M., & Sabec, G. Z. (2020). Medicinal use of Cannabis sativa (Cannabaceae) as an alternative in the treatment of epilepsy. Brazilian Journal of Development, 6(6), 41510-41523.
  10. Devinsky, O., Patel, A. D., Cross, J. H., Villanueva, V., Wirrell, E. C., Privitera, M., Greenwood, S. M., Roberts, C., Checketts, D., VanLandingham, K. E., Zuberi, S. M., & GWPCARE3 Study Group. (2018). Effect of Cannabidiol on Drop Seizures in the Lennox-Gastaut Syndrome. *New England Journal of Medicine*. DOI: 10.1056/NEJMoa1714631.
  11. LIMA, Mateus das Neves et al. O uso de canabinóides no tratamento de idosos com doença de parkinson. Anais do VII CIEH… Campina Grande: Realize Editora, 2020. 
  12. Pérez-Olives, C., Rivas-Santisteban, R., Lillo, J., Navarro, G., & Franco, R. (2022). Recent Advances in the Potential of Cannabinoids for Neuroprotection in Alzheimer’s, Parkinson’s, and Huntington’s Diseases. *PMID: 33332005*. DOI: 10.1007/978-3-030-57369-0_6.
  13. Shannon, S, Cannabidiol in Anxiety and Sleep: A Large Case Series. Perm., J. 23, (2019).
  14. GW Pharma Ltd. Sativex Oromucosal Spray. www.bayer.com/sites/default/files/2020-11/sativex- pm-en.pdf (2019).
  15. Gottschling S. et al. Safety considerations in cannabinoid-based medicine. Int.J. Gen. Med, 1317- 1333 (2020). 
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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