Ao longo da história, a cannabis foi amplamente utilizada por mulheres gestantes e puérperas para tratar uma variedade de condições, incluindo cólicas, irregularidades menstruais, disúria e urgência urinária, hiperêmese gravídica, dores associadas ao parto e hemorragia pós-parto. A gestação é um período de profundas mudanças fisiológicas e hormonais no corpo da mulher. Durante esses nove meses, o corpo da gestante passa por alterações significativas para sustentar o desenvolvimento do feto. Entre essas mudanças estão o aumento do volume sanguíneo, modificação da função renal, ajustes metabólicos e hormonais, além da adaptação do sistema imunológico para proteger tanto a mãe quanto o bebê. Nesse contexto, o sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel crucial nesse processo, regulando funções essenciais como a manutenção e proliferação de células-tronco neurais, controle da migração de neurônios recém-nascidos, especificação de subtipos neuronais e diferenciação de células neuronais e gliais.
No contexto da gestação e amamentação, o aleitamento materno fortalece significativamente o sistema imunológico do bebê, previne alterações gastrointestinais e respiratórias e reduz a mortalidade infantil. Além disso, o leite materno é perfeitamente adaptado às necessidades nutricionais específicas do bebê, promovendo um desenvolvimento saudável. Contudo, é fundamental considerar que substâncias presentes no corpo da mãe podem ser transferidas ao bebê através do leite materno, assim como durante a gestação. Diante disso, surge uma questão fundamental: é seguro prescrever canabidiol (CBD) durante a gestação e a amamentação? Este post abordará essa questão em detalhe, analisando os potenciais riscos e benefícios.
Definição e Propriedades do Canabidiol
O canabidiol (CBD) é um dos mais de 120 fitocanabinoides encontrados na planta Cannabis sativa, diferindo do tetrahidrocanabinol (THC) por não causar efeitos psicotrópicos. Valorizado por suas propriedades terapêuticas, o CBD tem demonstrado benefícios em várias condições de saúde, incluindo ansiedade, dor crônica, inflamações diversas e epilepsia. Ele interage com o sistema endocanabinoide do corpo¹, modulando funções fisiológicas como percepção da dor, humor e resposta imunológica, sem causar as alterações mentais associadas ao THC.
Saiba mais sobre o Sistema Endocanabinoide: O que é o Sistema Endocanabinoide? (wecann.academy)
Embora o CBD seja considerado seguro, seus efeitos em populações vulneráveis, como gestantes, lactantes e neonatos, ainda precisam de mais estudos. Com o reconhecimento crescente dos potenciais terapêuticos da Cannabis e sua integração como uma terapia complementar em diversos contextos clínicos, compreender profundamente as implicações do CBD na prática clínica torna-se essencial. É crucial orientar os pacientes de forma segura e tecnicamente apropriada em relação ao uso de CBD em diferentes contextos clínicos, especialmente durante a gestação e amamentação.
Gestação, amamentação e CBD: Avaliando a Segurança
A segurança do uso de CBD durante a gestação e a amamentação é um campo de estudo emergente e ainda insuficientemente explorado. Com o crescente interesse pelo canabidiol como terapia alternativa, especialmente em casos onde as terapias convencionais frequentemente falham ou apresentam efeitos colaterais indesejados, torna-se essencial avaliar minuciosamente suas implicações. Os principais pontos de atenção incluem:
- Transferência para o Leite Materno: Há evidências de que fitocanabinoides, incluindo o CBD, podem ser excretados no leite materno. Estudos limitados indicam que compostos da Cannabis são detectáveis no leite materno por até seis dias após o uso². No entanto, a concentração de CBD e sua biodisponibilidade para o neonato ainda são questões abertas que necessitam de maiores esclarecimentos.
- Evidências Clínicas e Pré-Clínicas: Até o momento, os dados disponíveis são insuficientes para uma conclusão definitiva. Estudos em modelos animais e observações clínicas sugerem que o uso de CBD por mães gestantes e lactantes não resulta em efeitos adversos significativos em seus bebês³. No entanto, a ausência de estudos longitudinalmente robustos impede uma avaliação completa dos possíveis riscos a longo prazo.
- Riscos Potenciais: Sem dados concretos, os riscos potenciais para o desenvolvimento neurológico e outros sistemas corporais do neonato permanecem desconhecidos. Sabemos que o THC, um componente psicoativo da Cannabis, pode afetar negativamente o desenvolvimento do sistema nervoso³. Embora o CBD não possua as mesmas propriedades psicotrópicas, a falta de pesquisa específica sobre seu impacto a longo prazo é uma preocupação válida.
Dada a crescente utilização do CBD como ferramenta terapêutica, é essencial que mais estudos sejam conduzidos para garantir a segurança e eficácia de seu uso, especialmente em populações vulneráveis como gestantes, lactantes e neonatos. Compreender completamente as implicações do CBD ajudará a garantir seu uso seguro e eficaz em diferentes contextos clínicos.
Potenciais Justificativas para o Uso de CBD Durante a Gestação e Amamentação
O sistema endocanabinoide (SEC) é um modulador crucial da homeostase no corpo humano, influenciando funções como sono, apetite, dor e resposta ao estresse. O CBD atua modulando os receptores canabinoides CB1 e CB2¹, bem como outros receptores não canabinoides, como o receptor de serotonina 5-HT1A. Esta interação complexa pode explicar os efeitos ansiolíticos, analgésicos e anti-inflamatórios observados em estudos pré-clínicos e clínicos. No entanto, o uso de derivados da cannabis durante a gestação e lactação é um tema extremamente delicado e requer um posicionamento rigoroso. Nossa orientação é prescrever derivados canabinoides apenas quando os potenciais terapêuticos superarem os riscos potenciais para o feto e a mãe, especialmente para contornar a refratariedade e os eventos adversos relacionados a outras opções medicamentosas. Exemplos de condições onde o uso de CBD poderia ser considerado incluem:
- Epilepsia grave e refratária a outras drogas antiepilépticas (DAEs)
- Transtornos psiquiátricos graves refratários e mal controlados, como:
- Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) em uso de múltiplos medicamentos;
- Transtorno depressivo com risco de suicídio;
- Transtorno de abuso de substâncias;
- Transtornos psicóticos severos;
- Transtorno Bipolar Afetivo;
- Transtorno Obsessivo-Compulsivo;
- Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
- Quadros de dor crônica incapacitante refratária a combinações medicamentosas diversas e intervenções cirúrgicas e minimamente invasivas.
É fundamental destacar a falta de segurança de muitos fármacos frequentemente prescritos nestes cenários. Por exemplo:
- Antidepressivos (como ISRS): Classificação de risco C na gravidez, podendo estar associados a possíveis defeitos congênitos, como cardiopatias e complicações neonatais, como síndrome de abstinência neonatal e dificuldades respiratórias.
- Antipsicóticos: Classificação de risco C ou D na gravidez, apresentam diferentes níveis de potencial de risco para o feto. Alguns antipsicóticos podem causar malformações congênitas específicas, enquanto outros têm sido associados a efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neonatal, como distúrbios metabólicos e síndrome de abstinência neonatal.
- Carbonato de lítio: Classificação de risco D na gravidez, associado a um aumento significativo no risco de malformações cardíacas e outros defeitos congênitos.
- Drogas anticonvulsivantes: Classificação de risco D na gravidez, associadas a um aumento do risco de defeitos congênitos, especialmente defeitos do tubo neural, bem como riscos para o desenvolvimento neurológico e comportamental da criança.
- Benzodiazepínicos: Classificação de risco D na gravidez, associados a sintomas de abstinência no neonato, como hipertonia, hiperreflexia, irritabilidade e tremores. Próximo ao parto, esses medicamentos podem induzir à síndrome “floppy baby”, caracterizada por hipotonia, hipotermia e dificuldades respiratórias. Além disso, estudos associaram benzodiazepínicos a um aumento no risco de abortos espontâneos e parto prematuro.
- Gabapentinoides: Apresentam um perfil de segurança incerto na gravidez, com poucos estudos específicos, mas preocupações potenciais com o desenvolvimento fetal não podem ser descartadas.
- Analgésicos opioides: Classificação de risco C na gravidez, com riscos potenciais para o feto, incluindo síndrome de abstinência neonatal e complicações respiratórias.
Para melhor entendimento, segue classificação das substâncias químicas de acordo com o seu potencial teratogênico segundo a FDA (Food and Drug Administration – EUA):
Diante da gravidade e da refratariedade das condições clínicas previamente citadas e também, dos riscos conhecidos desses fármacos em altas dosagens, o uso de CBD poderia ser considerado uma tratamento alternativo e/ou complementar em casos selecionados, sob estrita supervisão médica qualificada. A capacidade do CBD em proporcionar alívio sintomático sem os riscos associados aos medicamentos convencionais pode ser benéfica para gestantes e lactantes que precisam de outras opções terapêuticas. No entanto, é crucial que essas decisões sejam cuidadosamente avaliadas por profissionais médicos capacitados, priorizando sempre a segurança e o bem-estar tanto da mãe quanto do bebê.
Recomendações clínicas para a prescrição de CBD a Gestantes e Lactantes
Consulta com Especialistas: É imperativo que mães lactantes consultem médicos devidamente qualificados antes de iniciar o uso de CBD. A avaliação deve considerar:
- Estado de saúde da mãe: Avaliar a condição médica da mãe e a necessidade terapêutica específica que justifique o uso do CBD.
- Necessidades terapêuticas: Identificar se o CBD é realmente uma opção adequada ou se outras terapêuticas deveriam ser otimizadas e/ou iniciadas.
- Bem-estar do bebê: Considerar os possíveis impactos no bebê, mesmo na ausência de dados conclusivos sobre a transferência e efeitos do CBD através da barreira placentária e do leite materno.
Monitoramento Clínico: Se o uso de CBD for considerado apropriado após a consulta e avaliação, é fundamental que a prescrição seja acompanhada de supervisão médica rigorosa. Isso inclui:
- Monitoramento contínuo: Realizar acompanhamento regular para observar possíveis alterações na saúde da mãe e do bebê.
- Saúde e comportamento do neonato: Vigiar atentamente qualquer mudança no desenvolvimento neurológico, comportamental ou físico do bebê.
- Ajuste de dosagem: Se necessário, ajustar a dosagem de CBD com base na resposta terapêutica e na observação de quaisquer efeitos adversos.
Essas recomendações são essenciais para garantir a segurança e eficácia do uso de CBD em lactantes, minimizando riscos e maximizando os benefícios terapêuticos.
Conclusão
O uso de CBD durante a gestação e amamentação é um campo que requer investigação adicional para fornecer diretrizes claras e baseadas em evidências. Os profissionais médicos devem exercer cautela, baseando suas recomendações na avaliação individualizada dos riscos e benefícios. Até que mais dados estejam disponíveis, o princípio da precaução deve guiar a prática clínica.
Em conclusão, enquanto o potencial terapêutico do CBD é promissor, sua segurança e eficácia durante a gestação e amamentação ainda necessitam de validação científica robusta. A consulta com especialistas e o monitoramento cuidadoso são essenciais para garantir a saúde e o bem-estar tanto da mãe quanto do bebê. Além disso, é fundamental que os médicos se capacitem continuamente e tenham acesso a fontes científicas qualificadas e imparciais para estarem melhor preparados ao orientar seus pacientes. Nesse sentido, plataformas como a WeCann oferecem recursos e informações atualizadas sobre o uso terapêutico do CBD, auxiliando os médicos nos diferentes processos de tomada de decisão clínica.
Referências
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