Canabidiol, Gestação e Amamentação

Publicado em 28/06/24 | Atualizado em 16/07/24 Leitura: 11 minutos

Canabidiol (CBD)CanabinoidesEducação Médica

Ao longo da história, a cannabis foi amplamente utilizada por mulheres gestantes e puérperas para tratar uma variedade de condições, incluindo cólicas, irregularidades menstruais, disúria e urgência urinária, hiperêmese gravídica, dores associadas ao parto e hemorragia pós-parto.  A gestação é um período de profundas mudanças fisiológicas e hormonais no corpo da mulher. Durante esses nove meses, o corpo da gestante passa por alterações significativas para sustentar o desenvolvimento do feto. Entre essas mudanças estão o aumento do volume sanguíneo, modificação da função renal, ajustes metabólicos e hormonais, além da adaptação do sistema imunológico para proteger tanto a mãe quanto o bebê. Nesse contexto, o sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel crucial nesse processo, regulando funções essenciais como a manutenção e proliferação de células-tronco neurais, controle da migração de neurônios recém-nascidos, especificação de subtipos neuronais e diferenciação de células neuronais e gliais.

No contexto da gestação e amamentação, o aleitamento materno fortalece significativamente o sistema imunológico do bebê, previne alterações gastrointestinais e respiratórias e reduz a mortalidade infantil. Além disso, o leite materno é perfeitamente adaptado às necessidades nutricionais específicas do bebê, promovendo um desenvolvimento saudável. Contudo, é fundamental considerar que substâncias presentes no corpo da mãe podem ser transferidas ao bebê através do leite materno, assim como durante a gestação. Diante disso, surge uma questão fundamental: é seguro prescrever canabidiol (CBD) durante a gestação e a amamentação? Este post abordará essa questão em detalhe, analisando os potenciais riscos e benefícios.

Definição e Propriedades do Canabidiol

O canabidiol (CBD) é um dos mais de 120 fitocanabinoides encontrados na planta Cannabis sativa, diferindo do tetrahidrocanabinol (THC) por não causar efeitos psicotrópicos. Valorizado por suas propriedades terapêuticas, o CBD tem demonstrado benefícios em várias condições de saúde, incluindo ansiedade, dor crônica, inflamações diversas e epilepsia. Ele interage com o sistema endocanabinoide do corpo¹, modulando funções fisiológicas como percepção da dor, humor e resposta imunológica, sem causar as alterações mentais associadas ao THC.

Saiba mais sobre o Sistema Endocanabinoide: O que é o Sistema Endocanabinoide? (wecann.academy)

Embora o CBD seja considerado seguro, seus efeitos em populações vulneráveis, como gestantes, lactantes e neonatos, ainda precisam de mais estudos. Com o reconhecimento crescente dos potenciais terapêuticos da Cannabis e sua integração como uma terapia complementar em diversos contextos clínicos, compreender profundamente as implicações do CBD na prática clínica torna-se essencial. É crucial orientar os pacientes de forma segura e tecnicamente apropriada em relação ao uso de CBD em diferentes contextos clínicos, especialmente durante a gestação e amamentação.

Gestação, amamentação e CBD: Avaliando a Segurança

A segurança do uso de CBD durante a gestação e a amamentação é um campo de estudo emergente e ainda insuficientemente explorado. Com o crescente interesse pelo canabidiol como terapia alternativa, especialmente em casos onde as terapias convencionais frequentemente falham ou apresentam efeitos colaterais indesejados, torna-se essencial avaliar minuciosamente suas implicações. Os principais pontos de atenção incluem:

  • Transferência para o Leite Materno: Há evidências de que fitocanabinoides, incluindo o CBD, podem ser excretados no leite materno. Estudos limitados indicam que compostos da Cannabis são detectáveis no leite materno por até seis dias após o uso². No entanto, a concentração de CBD e sua biodisponibilidade para o neonato ainda são questões abertas que necessitam de maiores esclarecimentos.
  • Evidências Clínicas e Pré-Clínicas: Até o momento, os dados disponíveis são insuficientes para uma conclusão definitiva. Estudos em modelos animais e observações clínicas sugerem que o uso de CBD por mães gestantes e lactantes não resulta em efeitos adversos significativos em seus bebês³. No entanto, a ausência de estudos longitudinalmente robustos impede uma avaliação completa dos possíveis riscos a longo prazo.
  • Riscos Potenciais: Sem dados concretos, os riscos potenciais para o desenvolvimento neurológico e outros sistemas corporais do neonato permanecem desconhecidos. Sabemos que o THC, um componente psicoativo da Cannabis, pode afetar negativamente o desenvolvimento do sistema nervoso³. Embora o CBD não possua as mesmas propriedades psicotrópicas, a falta de pesquisa específica sobre seu impacto a longo prazo é uma preocupação válida.

 

Dada a crescente utilização do CBD como ferramenta terapêutica, é essencial que mais estudos sejam conduzidos para garantir a segurança e eficácia de seu uso, especialmente em populações vulneráveis como gestantes, lactantes e neonatos. Compreender completamente as implicações do CBD ajudará a garantir seu uso seguro e eficaz em diferentes contextos clínicos.

Potenciais Justificativas para o Uso de CBD Durante a Gestação e Amamentação

O sistema endocanabinoide (SEC) é um modulador crucial da homeostase no corpo humano, influenciando funções como sono, apetite, dor e resposta ao estresse. O CBD atua modulando os receptores canabinoides CB1 e CB2¹, bem como outros receptores não canabinoides, como o receptor de serotonina 5-HT1A. Esta interação complexa pode explicar os efeitos ansiolíticos, analgésicos e anti-inflamatórios observados em estudos pré-clínicos e clínicos. No entanto, o uso de derivados da cannabis durante a gestação e lactação é um tema extremamente delicado e requer um posicionamento rigoroso. Nossa orientação é prescrever derivados canabinoides apenas quando os potenciais terapêuticos superarem os riscos potenciais para o feto e a mãe, especialmente para contornar a refratariedade e os eventos adversos relacionados a outras opções medicamentosas. Exemplos de condições onde o uso de CBD poderia ser considerado incluem:

  • Epilepsia grave e refratária a outras drogas antiepilépticas (DAEs)
  • Transtornos psiquiátricos graves refratários e mal controlados, como:
  • Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) em uso de múltiplos medicamentos;
  •  Transtorno depressivo com risco de suicídio;
  •  Transtorno de abuso de substâncias;
  • Transtornos psicóticos severos;
  • Transtorno Bipolar Afetivo;
  • Transtorno Obsessivo-Compulsivo;
  • Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
  • Quadros de dor crônica incapacitante refratária a combinações medicamentosas diversas e intervenções cirúrgicas e minimamente invasivas.

 

É fundamental destacar a falta de segurança de muitos fármacos frequentemente prescritos nestes cenários. Por exemplo:

  • Antidepressivos (como ISRS): Classificação de risco C na gravidez, podendo  estar associados a possíveis defeitos congênitos, como cardiopatias e complicações neonatais, como síndrome de abstinência neonatal e dificuldades respiratórias.
  • Antipsicóticos: Classificação de risco C ou D na gravidez, apresentam diferentes níveis de potencial de risco para o feto. Alguns antipsicóticos podem causar malformações congênitas específicas, enquanto outros têm sido associados a efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neonatal, como distúrbios metabólicos e síndrome de abstinência neonatal.
  • Carbonato de lítio: Classificação de risco D na gravidez, associado a um aumento significativo no risco de malformações cardíacas e outros defeitos congênitos.
  • Drogas anticonvulsivantes: Classificação de risco D na gravidez, associadas a um aumento do risco de defeitos congênitos, especialmente defeitos do tubo neural, bem como riscos para o desenvolvimento neurológico e comportamental da criança.
  • Benzodiazepínicos: Classificação de risco D na gravidez, associados a sintomas de abstinência no neonato, como hipertonia, hiperreflexia, irritabilidade e tremores. Próximo ao parto, esses medicamentos podem induzir à síndrome “floppy baby”, caracterizada por hipotonia, hipotermia e dificuldades respiratórias. Além disso, estudos associaram benzodiazepínicos a um aumento no risco de abortos espontâneos e parto prematuro.
  • Gabapentinoides: Apresentam um perfil de segurança incerto na gravidez, com poucos estudos específicos, mas preocupações potenciais com o desenvolvimento fetal não podem ser descartadas.
  • Analgésicos opioides: Classificação de risco C na gravidez, com riscos potenciais para o feto, incluindo síndrome de abstinência neonatal e complicações respiratórias.

 

Para melhor entendimento, segue classificação das substâncias químicas de acordo com o seu potencial teratogênico segundo a FDA (Food and Drug Administration – EUA):

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Diante da gravidade e da refratariedade das condições clínicas previamente citadas e também, dos riscos conhecidos desses fármacos em altas dosagens, o uso de CBD poderia ser considerado uma tratamento alternativo e/ou complementar em casos selecionados, sob estrita supervisão médica qualificada. A capacidade do CBD em proporcionar alívio sintomático sem os riscos associados aos medicamentos convencionais pode ser benéfica para gestantes e lactantes que precisam de outras opções terapêuticas. No entanto, é crucial que essas decisões sejam cuidadosamente avaliadas por profissionais médicos capacitados, priorizando sempre a segurança e o bem-estar tanto da mãe quanto do bebê.

Recomendações clínicas para a prescrição de CBD a Gestantes e Lactantes

Consulta com Especialistas: É imperativo que mães lactantes consultem médicos devidamente qualificados antes de iniciar o uso de CBD. A avaliação deve considerar:

  • Estado de saúde da mãe: Avaliar a condição médica da mãe e a necessidade terapêutica específica que justifique o uso do CBD.
  • Necessidades terapêuticas: Identificar se o CBD é realmente uma opção adequada ou se outras terapêuticas deveriam ser otimizadas e/ou iniciadas.
  • Bem-estar do bebê: Considerar os possíveis impactos no bebê, mesmo na ausência de dados conclusivos sobre a transferência e efeitos do CBD através da barreira placentária e do leite materno.

Monitoramento Clínico: Se o uso de CBD for considerado apropriado após a consulta e avaliação, é fundamental que a prescrição seja acompanhada de supervisão médica rigorosa. Isso inclui:

  • Monitoramento contínuo: Realizar acompanhamento regular para observar possíveis alterações na saúde da mãe e do bebê.
  • Saúde e comportamento do neonato: Vigiar atentamente qualquer mudança no desenvolvimento neurológico, comportamental ou físico do bebê.
  • Ajuste de dosagem: Se necessário, ajustar a dosagem de CBD com base na resposta terapêutica e na observação de quaisquer efeitos adversos.

 

Essas recomendações são essenciais para garantir a segurança e eficácia do uso de CBD em lactantes, minimizando riscos e maximizando os benefícios terapêuticos.

Conclusão

O uso de CBD durante a gestação e amamentação é um campo que requer investigação adicional para fornecer diretrizes claras e baseadas em evidências. Os profissionais médicos devem exercer cautela, baseando suas recomendações na avaliação individualizada dos riscos e benefícios. Até que mais dados estejam disponíveis, o princípio da precaução deve guiar a prática clínica.

Em conclusão, enquanto o potencial terapêutico do CBD é promissor, sua segurança e eficácia durante a gestação e amamentação ainda necessitam de validação científica robusta. A consulta com especialistas e o monitoramento cuidadoso são essenciais para garantir a saúde e o bem-estar tanto da mãe quanto do bebê. Além disso, é fundamental que os médicos se capacitem continuamente e tenham acesso a fontes científicas qualificadas e imparciais para estarem melhor preparados ao orientar seus pacientes. Nesse sentido, plataformas como a WeCann oferecem recursos e informações atualizadas sobre o uso terapêutico do CBD, auxiliando os médicos  nos diferentes processos de tomada de decisão clínica.

Referências 

  1. Pertwee, R. G. (2008). The diverse CB1 and CB2 receptor pharmacology of three plant cannabinoids: Δ9-tetrahydrocannabinol, cannabidiol and Δ9-tetrahydrocannabivarin. British Journal of Pharmacology, 153(2), 199-215. doi:10.1038/sj.bjp.0707442.
  2. Davis E, Lee T, Weber JT, Bugden S. Cannabis use in pregnancy and breastfeeding: The pharmacist’s role. Can Pharm J (Ott). 2020 Jan 8;153(2):95-100. doi: 10.1177/1715163519893395. PMID: 32206154; PMCID: PMC7079319.
  3. Campolongo P, Trezza V, Palmery M, Trabace L, Cuomo V. Developmental exposure to cannabinoids causes subtle and enduring neurofunctional alterations. Int Rev Neurobiol. 2009;85:117-33. doi: 10.1016/S0074-7742(09)85009-5. PMID: 19607965.
  4. Babson, K. A., Sottile, J., & Morabito, D. (2017). Cannabis, Cannabinoids, and Sleep: a Review of the Literature. Current Psychiatry Reports, 19(4), 23. https://doi.org/10.1007/s11920-017-0775-9
  5. Blessing, Esther M., et al. “Cannabidiol as a potential treatment for anxiety disorders.” Neurotherapeutics 12.4 (2015): 825-836. DOI: 10.1007/s13311-015-0387-1
  6. Xiong W, Cui T, Cheng K, Yang F, Chen SR, Willenbring D, Guan Y, Pan HL, Ren K, Xu Y, Zhang L. Cannabinoids suppress inflammatory and neuropathic pain by targeting α3 glycine receptors. J Exp Med. 2012 Jun 4;209(6):1121-34. doi: 10.1084/jem.20120242. Epub 2012 May 14. PMID: 22585736; PMCID: PMC3371734.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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