Canabinoides e Neuroproteção: Uma nova perspectiva na medicina

Publicado em 06/10/25 | Atualizado em 06/10/25 Leitura: 13 minutos

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A busca por estratégias eficazes para mitigar a progressão de distúrbios neurodegenerativos permanece um dos maiores desafios da neurologia clínica. A fisiopatologia dessas condições, frequentemente centrada na neuroinflamação e no estresse oxidativo, demanda a exploração de novos paradigmas terapêuticos. Nesse contexto, a medicina está voltando sua atenção para um sistema endógeno de modulação complexo: o sistema endocanabinoide.

Em paralelo, a crescente evidência científica sobre os canabinoides, fitoquímicos derivados da planta Cannabis sativa, sugere um potencial promissor como agentes neuroprotetores. Neste post, vamos aprofundar a discussão sobre os mecanismos de ação desses compostos, suas interações sinérgicas e as implicações clínicas de seu uso na preservação da função neuronal.

O que são canabinoides?

Os canabinoides são compostos químicos que interagem com o nosso sistema endocanabinoide. Essa é uma rede complexa de receptores e enzimas que desempenha um papel crucial na regulação de diversas funções fisiológicas, como humor, sono, apetite e, o que é mais relevante aqui, a saúde neuronal.¹

Os dois canabinoides mais estudados, o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), apresentam perfis farmacológicos distintos. Enquanto o THC é conhecido por sua ação psicotrópica, o CBD não possui esse efeito e tem sido amplamente investigado por suas propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes. No entanto, é fundamental considerar a complexidade da planta Cannabis, um gênero da família Cannabaceae que abrange as espécies C. sativa, C. indica e C. ruderalis.¹ 

A C. sativa, em particular, é a mais pesquisada e, além do THC e do CBD, contém mais de 150 canabinoides e outros compostos bioativos, como terpenos e flavonoides. Esses componentes, incluindo os canabinoides menos abundantes, também exibem propriedades terapêuticas e contribuem para a eficácia clínica da planta.

Para saber mais sobre os fitocanabinoides, acesse: Principais Fitocanabinoides e seus efeitos no organismo

Neurodegeneração e neuroproteção

A neurodegeneração representa um processo patológico progressivo que culmina na disfunção e perda de neurônios, sendo a base de doenças devastadoras como o Alzheimer, Parkinson e a esclerose múltipla. Nesse cenário, a neuroproteção surge como um campo de pesquisa crítico, buscando estratégias para retardar, interromper ou reverter a morte neuronal e preservar a integridade das funções cerebrais.

No cerne da neurodegeneração, a neuroinflamação — uma resposta inflamatória crônica no cérebro — atua como um fator-chave. Esse processo envolve a ativação de células gliais, como a microglia e os astrócitos, que liberam mediadores inflamatórios e moléculas tóxicas, causando dano neuronal.²

Mecanismos que levam à neurodegeneração. Fonte: Hasbi A, George SR. Multilayered neuroprotection by cannabinoids in neurodegenerative diseases. Explor Neuroprot Ther. 2025;5:100498. https://doi.org/10.37349/ent.2025.100498
Mecanismos que levam à neurodegeneração. Fonte: Hasbi A, George SR. Multilayered neuroprotection by cannabinoids in neurodegenerative diseases. Explor Neuroprot Ther. 2025;5:100498. https://doi.org/10.37349/ent.2025.100498

A microglia e os astrócitos são vitais para manter os neurônios saudáveis e preservar a homeostase e a neurotransmissão normais. Lesões, infecções e outros insultos levam à ativação de micróglias e astrócitos e liberação de glutamato, a principal fonte de excitotoxicidade, e também quimiocinas e citocinas, algumas das quais estão envolvidas na anti-inflamação e outras na pró-inflamação. Essas misturas moleculares podem levar à sobrevivência neuronal ou à neuroinflamação grave, em condições extremas.³

As citocinas pró-inflamatórias geradas e outras moléculas neurotóxicas aumentam a produção de espécies reativas livres de oxigênio (ROS) e a peroxidação lipídica, levando à disfunção mitocondrial e maior intensificação dos efeitos prejudiciais da neurotoxicidade. A persistência da neuroinflamação e a falha da barreira hematoencefálica (BHE) levam à infiltração de células imunes que exacerbam a neuroinflamação e, por fim, levam à morte neuronal.³

O sistema endocanabinoide e a neuroinflamação

A neuroinflamação refere-se a uma resposta imune no sistema nervoso central (SNC) que pode ser desencadeada por inflamação periférica, lesões ou infecções. Os principais agentes celulares nesse processo são a microglia e os astrócitos, que atuam como a linha de frente de defesa do SNC.

Embora a barreira hematoencefálica (BHE) atue como uma barreira protetora, ela pode se tornar permeável a moléculas pró-inflamatórias, permitindo que elas entrem no cérebro e causem disfunção sináptica e perda neuronal. As células microgliais, que funcionam como macrófagos residentes do cérebro, são ativadas em resposta a danos teciduais ou patógenos, iniciando uma resposta imune inata. Em doenças neurodegenerativas, a microglia se associa à neuroinflamação por meio da ativação de receptores como os receptores Toll-like (TLRs) e o inflamassoma NLRP3.

Nesse cenário, o sistema endocanabinoide (SEC) surge como um modulador-chave da neuroinflamação. O SEC é composto por endocanabinoides endógenos (como a AEA e o 2-AG), receptores (principalmente CB1 e CB2) e enzimas. Os endocanabinoides são produzidos em grandes quantidades pela microglia, macrófagos, astrócitos e neurônios durante processos inflamatórios.¹

Os receptores CB1 são encontrados principalmente no SNC, enquanto os receptores CB2 são mais abundantes em células do sistema imunológico, incluindo as células gliais, com expressão significativamente maior do que os receptores CB1 nessas células.¹ A ativação dos receptores CB regula as respostas anti-inflamatórias, o que é demonstrado pelo aumento da liberação da citocina anti-inflamatória IL-10 e pela diminuição de citocinas pró-inflamatórias como a IL-12 e a IL-23

Desse modo, a modulação terapêutica do SEC, seja por meio de canabinoides endógenos ou fitocanabinoides como o THC e o CBD, tem se mostrado benéfica ao atenuar os efeitos inflamatórios e proteger as células gliais.¹ No geral, o sistema canabinoide desempenha um papel protetor fundamental no combate à neuroinflamação e à excitotoxicidade no SNC.

Ação dos canabinoides e outros fitoquímicos na neuroproteção

Ação anti-inflamatória:

A neuroinflamação, mediada pela ativação de células gliais como a microglia, é um pilar central na progressão de doenças neurodegenerativas.

  • Canabidiol (CBD): O CBD atua diretamente na supressão da resposta inflamatória em modelos in vitro e in vivo. Ele reduz a expressão de marcadores inflamatórios como IL-6, TNF-α, COX-2 e iNOS, e inibe a produção de citocinas inflamatórias em células microgliais. Essa ação é mediada por mecanismos complexos, incluindo a ativação dos receptores CB2 e de adenosina A2A, e a modulação de vias de sinalização como a p38 MAPK e a NF-κB.4
  • Tetrahidrocanabinol (THC): Agindo como um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2, o THC também exibe potentes propriedades anti inflamatórias.5 Em modelos de esclerose múltipla (EM), ele demonstrou a capacidade de aumentar a produção de citocinas anti-inflamatórias, enquanto reduz a de citocinas pró-inflamatórias.6
  • Terpenos: Esses hidrocarbonetos aromáticos, que dão à cannabis seu aroma e sabor únicos, também exibem notáveis efeitos farmacológicos. Embora suas atividades anti neuro inflamatórias não tenham sido extensivamente estudadas, alguns terpenos primários, como o mirceno, o alfa-pineno e o linalol, demonstraram propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes em diversos estudos. O linalol, por exemplo, inibe a migração da microglia e a síntese de citocinas inflamatórias, protegendo neurônios do estresse oxidativo.7,8,9

 

Ação antioxidante e modulação da excitotoxicidade

  • Além de sua ação anti-inflamatória, os canabinoides oferecem uma dupla camada de proteção contra o dano celular. A primeira linha de defesa é contra o estresse oxidativo, um processo caracterizado pelo acúmulo de espécies reativas de oxigênio (ROS), que leva à degradação molecular dos neurônios. Canabinoides como o CBD e o THC atuam como potentes antioxidantes, neutralizando esses radicais livres e protegendo a integridade das células nervosas.³
  • A segunda linha de defesa é a modulação da excitotoxicidade. Esse é um processo patológico crucial na neurodegeneração, onde a superestimulação dos neurônios por neurotransmissores excitatórios, como o glutamato, causa morte celular. Para combater isso, os canabinoides ativam os receptores CB1 localizados nos neurônios pré-sinápticos. Essa ativação desencadeia um mecanismo de sinalização retrógrada que reduz a liberação desses neurotransmissores, prevenindo a hiperexcitabilidade e restaurando a homeostase neuronal.³

 

Inibição da Agregação e da Apoptose

A ação neuroprotetora dos canabinoides se estende à inibição de processos celulares degenerativos.

  • Ação antiagregante: O THC demonstrou a capacidade de inibir a agregação de placas de beta-amiloide (Aβ), uma das principais características patológicas da doença de Alzheimer. Essa ação é fundamental para retardar a progressão da doença.10
  • Ação antiapoptótica: Diversos canabinoides, como o canabigerol (CBG), demonstram a capacidade de prevenir a apoptose (morte celular programada).11 O CBG, em particular, mostrou-se promissor em modelos da doença de Huntington, onde atenuou a ativação de vias pró-inflamatórias e inibiu a expressão de proteínas associadas à apoptose, como a caspase-3.12

 

Flavonoides: potentes Inibidores da Inflamação

  • Os flavonoides, outra classe de fitoquímicos encontrados na cannabis, também contribuem significativamente para suas propriedades anti-inflamatórias. As canflavinas A, B e C foram identificadas por suas propriedades terapêuticas promissoras, demonstrando ser aproximadamente 30 vezes mais potentes que a aspirina na inibição da liberação de prostaglandina E2 (PGE2), um importante mediador da inflamação.13

 

Em resumo, o potencial terapêutico da cannabis transcende o alívio sintomático. A sinergia entre canabinoides, terpenos e flavonoides, agindo em múltiplos alvos para modular a neuroinflamação, combater o estresse oxidativo, regular a excitotoxicidade e inibir a morte celular, posiciona os compostos da planta como agentes promissores para o tratamento de doenças neurodegenerativas.

Conclusão: Uma nova fronteira terapêutica

Em nossa prática clínica, a busca por tratamentos que realmente alterem o curso das doenças neurodegenerativas é um desafio constante. As abordagens atuais, muitas vezes, focam no manejo sintomático, sem moldar a complexa fisiopatologia subjacente de neuroinflamação e dano neuronal. Neste cenário, a exploração do sistema endocanabinoide e dos fitocanabinoides da Cannabis sativa se apresenta como um novo e promissor paradigma terapêutico.

Como vimos, os compostos da planta agem em sinergia, oferecendo uma abordagem diversificada. Eles não apenas combatem a neuroinflamação ao modular células-chave como a microglia, mas também atuam diretamente na proteção dos neurônios. Essa dupla ação inclui a potente capacidade de neutralizar o estresse oxidativo, regular a excitotoxicidade e inibir processos patológicos como a agregação de proteínas tóxicas e a morte celular programada.

Os canabinoides, como o THC e o CBD, demonstram um promissor potencial neuroprotetor para diversas doenças neurológicas. Eles atuam em múltiplos mecanismos, incluindo a capacidade de modular a neuroinflamação, combater o estresse oxidativo, e inibir a agregação de proteínas tóxicas e a morte celular. As evidências sugerem que esses compostos podem ser aplicados no manejo de condições como as doenças de Alzheimer, Parkinson e esclerose múltipla, não apenas para aliviar os sintomas, mas também para potencialmente retardar a progressão dessas patologias, abrindo novas e promissoras frentes de pesquisa e tratamento.

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Para os médicos que atuam na vanguarda do tratamento de condições neuroinflamatórias, o domínio sobre os mecanismos de ação dos canabinoides é uma competência clínica essencial. Essa expertise nos capacita a garantir que o paciente tenha acesso às ferramentas terapêuticas seguras e potencialmente eficazes para amenizar sintomas e melhorar qualidade de vida.

Neste cenário, a WeCann surge como uma aliada estratégica da comunidade médica, oferecendo formação baseada em evidências e ferramentas práticas para integrar o conhecimento sobre cannabis medicinal à prática clínica. Entre esses recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, como um manual abrangente e atualizado, de referência internacional, que aborda todo o conhecimento necessário para a incorporação das terapêuticas à base de cannabis na prática.

Se você é um profissional da saúde que busca atuar de forma ética, baseada em evidências e centrada no paciente, o acesso ao Tratado de Medicina Endocanabinoide é um passo decisivo para transformar sua abordagem terapêutica.

Referências

  1. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Al-Khazaleh, A.K.; Zhou, X.; Bhuyan, D.J.; Münch, G.W.; Al-Dalabeeh, E.A.; Jaye, K.; Chang, D. The Neurotherapeutic Arsenal in Cannabis sativa: Insights into Anti-Neuroinflammatory and Neuroprotective Activity and Potential Entourage Effects. Molecules 2024, 29, 410. https://doi.org/10.3390/molecules29020410
  3. Hasbi A, George SR. Multilayered neuroprotection by cannabinoids in neurodegenerative diseases. Explor Neuroprot Ther. 2025;5:100498. https://doi.org/10.37349/ent.2025.100498
  4. Kozela, E.; Pietr, M.; Juknat, A.; Rimmerman, N.; Levy, R.; Vogel, Z. Cannabinoids Δ9-Tetrahydrocannabinol and Cannabidiol Differentially Inhibit the Lipopolysaccharide-activated NF-κB and Interferon-β/STAT Proinflammatory Pathways in BV-2 Microglial Cells. J. Biol. Chem. 2010, 285, 1616–1626.
  5. Gaston, T.E.; Friedman, D. Pharmacology of cannabinoids in the treatment of epilepsy. Epilepsy Behav. 2017, 70, 313–318
  6. Sido, J.M.; Jackson, A.R.; Nagarkatti, P.S.; Nagarkatti, M. Marijuana-derived Δ-9-tetrahydrocannabinol suppresses Th1/Th17 cell-mediated delayed-type hypersensitivity through microRNA regulation. J. Mol. Med. 2016, 94, 1039–1051.
  7. Neves, Â.; Rosa, S.; Gonçalves, J.; Rufino, A.; Judas, F.; Salgueiro, L.; Lopes, M.C.; Cavaleiro, C.; Mendes, A.F. Screening of five essential oils for identification of potential inhibitors of IL-1-induced NF-κB activation and NO production in human chondrocytes: Characterization of the inhibitory activity of α-pinene. Planta Medica 2010, 76, 303–308.
  8. Rufino, A.T.; Ribeiro, M.; Judas, F.; Salgueiro, L.; Lopes, M.C.; Cavaleiro, C.; Mendes, A.F. Anti-inflammatory and chondroprotective activity of (+)-α-pinene: Structural and enantiomeric selectivity. J. Nat. Prod. 2014, 77, 264–269.
  9. Downer, E.J. Anti-inflammatory Potential of Terpenes Present in Cannabis sativa L. ACS Chem. Neurosci. 2020, 11, 659–662.
  10. Blazquez, C.; Chiarlone, A.; Sagredo, O.; Aguado, T.; Pazos, M.R.; Resel, E.; Palazuelos, J.; Julien, B.; Salazar, M.; Boerner, C. Loss of striatal type 1 cannabinoid receptors is a key pathogenic factor in Huntington’s disease. Brain 2011, 134, 119–136.
  11. Gugliandolo, A.; Pollastro, F.; Grassi, G.; Bramanti, P.; Mazzon, E. In Vitro Model of Neuroinflammation: Efficacy of Cannabigerol, a Non-Psychoactive Cannabinoid. Int. J. Mol. Sci. 2018, 19, 1992.
  12. Valdeolivas, S.; Navarrete, C.; Cantarero, I.; Bellido, M.L.; Muñoz, E.; Sagredo, O. Neuroprotective properties of cannabigerol in Huntington’s disease: Studies in R6/2 mice and 3-nitropropionate-lesioned mice. Neurotherapeutics 2015, 12, 185–199.
  13. Erridge, S.; Mangal, N.; Salazar, O.; Pacchetti, B.; Sodergren, M.H. Cannflavins—From plant to patient: A scoping review. Fitoterapia 2020, 146, 104712.

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