O uso medicinal da Cannabis sativa remonta a sistemas tradicionais de saúde, incluindo a medicina asiática, onde a planta era empregada no alívio de dores dentárias, na prevenção de cáries e no tratamento de tumores, sem que seus principais compostos ativos fossem plenamente compreendidos.
Nos últimos anos, a pesquisa sobre canabinoides tem avançado significativamente, abrangendo diversas áreas da medicina e odontologia. O sistema endocanabinoide, anteriormente estudado principalmente em outras condições clínicas, tem se revelado um alvo terapêutico promissor para doenças inflamatórias bucais, como a gengivite e a doença periodontal.
Mas o que dizem as evidências científicas? De que maneira a cannabis medicinal pode modular a inflamação e a homeostase tecidual na cavidade oral? No post de hoje vamos explorar o papel da cannabis medicinal, na regulação da resposta inflamatória periodontal e suas aplicações terapêuticas potenciais.
Canabinoides
Os canabinoides são compostos químicos biologicamente ativos encontrados na planta Cannabis sativa e desempenham um papel fundamental nos efeitos terapêuticos da cannabis medicinal. Eles interagem com o sistema endocanabinoide (SEC), um complexo sistema de sinalização presente em mamíferos, envolvido na regulação de funções fisiológicas como inflamação, dor, resposta imunológica e homeostase tecidual.¹
Os canabinoides podem ser classificados em três categorias principais:
- Fitocanabinoides – São os compostos naturalmente produzidos pela planta Cannabis sativa. Entre os mais estudados estão o delta-9-tetrahidrocanabinol (Δ9-THC), principal responsável pelos efeitos psicotrópicos da cannabis, e o canabidiol (CBD), que apresenta propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e neuroprotetoras. Outros fitocanabinoides relevantes incluem o canabigerol (CBG), canabidivarina (CBDV) e canabinol (CBN), cada um com potenciais terapêuticos distintos.¹
- Endocanabinoides – São compostos produzidos endogenamente pelo organismo humano e que atuam como sinalizadores no sistema endocanabinoide. Os dois principais endocanabinoides são a anandamida (AEA) e o 2-araquidonilglicerol (2-AG), que modulam a inflamação, a dor e a resposta imunológica, além de desempenharem um papel na homeostase oral.¹
- Canabinoides sintéticos – São substâncias desenvolvidas em laboratório que mimetizam a ação dos fitocanabinoides ou endocanabinoides. Alguns desses compostos são utilizados para fins terapêuticos, como o dronabinol e a nabilona, empregados no tratamento de náuseas e dor crônica.¹
Doença Periodontal
A doença periodontal é uma condição inflamatória crônica que compromete os tecidos de suporte dos dentes, incluindo a gengiva, o ligamento periodontal e o osso alveolar. Diferente de uma simples inflamação gengival transitória, essa patologia pode evoluir de forma silenciosa, resultando em perdas estruturais irreversíveis e impactando não apenas a saúde bucal, mas também a saúde sistêmica do paciente.²
A principal causa da doença periodontal é o acúmulo de biofilme dental – um ecossistema microbiano complexo aderido à superfície dentária e gengival. Inicialmente, a resposta do organismo a essa colonização bacteriana resulta em gengivite, uma inflamação superficial e reversível. No entanto, quando o biofilme não é adequadamente removido, a inflamação se aprofunda, desencadeando um processo destrutivo nos tecidos periodontais.²
A progressão da doença depende de uma interação multifatorial entre fatores ambientais, microbiológicos e imunológicos. Tabagismo, diabetes, predisposição genética, alterações hormonais e estresse são elementos que podem intensificar a resposta inflamatória, tornando o paciente mais suscetível à destruição do periodonto. Além disso, a resposta imunológica exacerbada do hospedeiro, mediada por citocinas pró-inflamatórias como TNF-α, IL-1 e IL-6, amplifica o dano tecidual e favorece a reabsorção óssea.²
Cada vez mais evidências científicas apontam que a periodontite não se limita à cavidade oral, mas pode atuar como fator de risco para diversas condições sistêmicas. A inflamação crônica e a disseminação de patógenos periodontais na corrente sanguínea podem contribuir para doenças cardiovasculares, descompensar quadros de diabetes, causar complicações gestacionais e até mesmo distúrbios pulmonares.²
Estudos indicam que pacientes com periodontite apresentam níveis elevados de biomarcadores inflamatórios, como proteína C reativa e fibrinogênio, que estão diretamente ligados ao risco de eventos cardiovasculares. Além disso, a relação bidirecional entre diabetes e periodontite reforça a importância de um acompanhamento odontológico rigoroso em pacientes diabéticos, pois a inflamação periodontal pode dificultar o controle glicêmico.²
O manejo da doença periodontal concentra-se no controle da infecção e na modulação da resposta inflamatória do organismo. A remoção mecânica do biofilme, por meio de procedimentos como raspagem e alisamento radicular, é essencial para interromper a progressão da patologia e preservar os tecidos periodontais. Em estágios mais avançados, intervenções cirúrgicas podem ser necessárias para a regeneração das estruturas de suporte dos dentes, especialmente nos casos de reabsorção óssea significativa.
Apesar das opções terapêuticas disponíveis, a chave para um controle eficaz da doença periodontal reside na prevenção. A adoção de uma rotina rigorosa de higiene bucal, aliada ao acompanhamento odontológico periódico e ao controle de fatores sistêmicos predisponentes, são estratégias fundamentais para reduzir a recorrência da inflamação. Além disso, é essencial ampliar a conscientização sobre a inter-relação entre saúde bucal e saúde sistêmica, promovendo uma abordagem integrada no cuidado ao paciente.
Nesse contexto, a busca por novas estratégias terapêuticas tem levado à exploração do potencial dos fitocanabinoides no manejo de doenças odontológicas. Mas por que considerar a cannabis medicinal no tratamento de condições periodontais? Evidências crescentes sugerem que os canabinoides, como o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC), apresentam propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e antimicrobianas, que podem contribuir para a redução da inflamação gengival, do desconforto associado à periodontite e até mesmo para o controle da microbiota oral patogênica. Essas características tornam a cannabis medicinal uma abordagem promissora no suporte ao tratamento convencional da doença periodontal, abrindo novas perspectivas para a odontologia baseada em evidências.
Sistema Endocanabinoide e Saúde Bucal
O sistema endocanabinoide (SEC) tem um papel fundamental na regulação de diversos processos fisiológicos, incluindo inflamação, dor e cicatrização de tecidos. No contexto da saúde bucal, os receptores canabinoides CB1 e CB2 estão amplamente distribuídos em diferentes estruturas orais, como língua, glândulas salivares, tecido pulpar, periodonto e mucosa oral. Essa distribuição sugere um potencial terapêutico significativo para os canabinoides no manejo de diversas condições odontológicas.¹
A presença de receptores CB1 e CB2 na língua humana foi identificada em estudos imunohistoquímicos, com expressão notável nas papilas circunvaladas e fungiformes. Além disso, o receptor TRPV1, que interage com o SEC, foi detectado nas células epiteliais adjacentes às papilas gustativas. Estudos indicam que os canabinoides modulam a percepção gustativa, aumentando a resposta aos adoçantes e influenciando a preferência por sabores doces. Esse efeito pode estar associado ao aumento do apetite frequentemente relatado por pessoas que consomem cannabis de forma recreativa.³
Curiosamente, alterações na expressão dos receptores canabinoides também foram observadas em condições patológicas. Pacientes com carcinoma de células escamosas da língua apresentam aumento na expressão de CB1 e CB2, enquanto aqueles com síndrome da boca ardente apresentam redução dos níveis de CB1, associada a um aumento de CB2 e TRPV1. Esses achados sugerem que o SEC pode estar envolvido tanto na progressão tumoral quanto na modulação da dor neuropática oral.³
As glândulas salivares expressam ambos os receptores canabinoides, mas com padrões distintos. O receptor CB1 está localizado predominantemente nas células ductais, enquanto o receptor CB2 é encontrado nas células mioepiteliais ao redor dos ácinos e nos neurônios dos gânglios secretores. A ativação desses receptores modula a secreção salivar, sendo associada a uma inibição da produção de saliva.³
O tecido pulpar dentário apresenta expressão de CB1, especialmente nos terminais nervosos próximos à interface polpa-dentina. Como o CB1 desempenha um papel na inibição da transmissão de sinais nociceptivos, os canabinoides podem atuar como moduladores da dor dentária. Além disso, foi demonstrado que os CB1 presentes nos odontoblastos promovem a formação de dentina reparadora, indicando um potencial terapêutico para regeneração pulpar.³
O periodonto também expressa receptores canabinoides, que regulam processos inflamatórios e de cicatrização tecidual. Em condições saudáveis, há uma predominância de CB1 no epitélio e no ligamento periodontal. No entanto, em casos de inflamação bacteriana, ocorre uma regulação negativa de CB1 e superexpressão de CB2, enquanto processos inflamatórios estéreis induzem o aumento da expressão de ambos os receptores no ligamento periodontal.³
Essa plasticidade do SEC sugere que os canabinoides podem influenciar a resposta inflamatória periodontal. Estudos demonstram que a ativação de CB2 promove a migração de células periodontais e acelera a cicatrização, enquanto a ativação de CB1 inibe a via inflamatória NF-kB, reduzindo a degradação óssea associada à periodontite.³
Embora a expressão direta de receptores canabinoides na mucosa oral ainda não esteja completamente elucidada, sabe-se que CB1 e CB2 estão presentes em células epiteliais da pele, sugerindo uma possível atuação na mucosa oral. Além disso, a mucosa contém receptores CB1, CB2 e TRPV1 em suas camadas subjacentes, incluindo glândulas salivares, vasos sanguíneos e terminações nervosas.
O sistema endocanabinoide está amplamente distribuído na cavidade oral e desempenha funções essenciais na modulação da dor, inflamação, secreção salivar e regeneração tecidual. Essas descobertas sugerem um potencial significativo para o uso terapêutico de canabinoides no tratamento de condições odontológicas. No entanto, mais estudos são necessários para elucidar plenamente os mecanismos envolvidos.
Para saber mais sobre o Sistema Endocanabinoide acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide?
Uso terapêutico dos Canabinoides na Doença Periodontal
Nos últimos anos, os canabinoides, compostos bioativos encontrados na planta de cannabis, têm ganhado atenção na medicina devido ao seu potencial terapêutico em várias condições inflamatórias e dolorosas, incluindo doenças periodontais. O sistema endocanabinoide, que regula uma série de processos fisiológicos, incluindo a inflamação, a resposta imunológica e a homeostase do tecido, desempenha um papel crucial na modulação da resposta inflamatória na periodontite.
Os principais canabinoides presentes na planta de cannabis, como o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), interagem com os receptores CB1 e CB2 do sistema endocanabinoide. O receptor CB2, em particular, está amplamente distribuído em células do sistema imunológico e nos tecidos periféricos, e sua ativação pode ter um efeito anti-inflamatório significativo. Estudos sugerem que a ativação dos receptores CB2 pode atenuar a produção de mediadores inflamatórios, como as citocinas pró-inflamatórias, e reduzir a ativação das células inflamatórias no local da infecção periodontal.4
O CBD demonstrou ser capaz de influenciar esses processos, regulando a proliferação celular e a secreção de citocinas pró-inflamatórias, especialmente através de canais TRP (receptores de potencial transitório) como o TRPV3. Esses efeitos do CBD são particularmente relevantes na doença periodontal, onde a inflamação exacerbada desempenha um papel crucial na progressão da doença. De acordo com Petrosino et al. (2020), o CBD tem a capacidade de inibir a produção de quimiocinas como MCP-2 e citocinas pró-inflamatórias, como IL-6, IL-8 e TNF-α, moléculas chave na modulação da resposta inflamatória local e sistêmica na periodontite.5
Particularmente, a interleucina-6 está fortemente associada à progressão das doenças periodontais e é um marcador de complicações em várias condições sistêmicas, como a COVID-19. Petrosino et al. (2020) sugerem que o CBD pode reduzir os níveis locais e sistêmicos de IL-6, o que não só poderia mitigar a progressão da doença periodontal, mas também reduzir as complicações pulmonares relacionadas à COVID-19, onde o aumento de IL-6 é um preditor significativo de complicações graves. Este efeito de modulação da IL-6 reflete o potencial do CBD em tratar doenças inflamatórias crônicas, incluindo aquelas com ligação direta à saúde periodontal.5
Além disso, o CBD possui propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes, que atuam por meio da inibição de vias inflamatórias cruciais. O antagonismo do CBD à via do NF-kB é especialmente importante, pois impede a produção de mediadores inflamatórios, como citocinas, quimiocinas e fatores de crescimento pró-inflamatórios, que são fundamentais no desenvolvimento da periodontite.
Em modelos experimentais, Napimoga et al. (2019) demonstraram que o tratamento com CBD (5 mg/kg) em ratos com periodontite induzida reduziu significativamente a perda óssea alveolar e diminuiu a expressão de NF-kB, um marcador de inflamação. Esses resultados indicam que o CBD pode desempenhar um papel importante na modulação da inflamação periodontal, na prevenção da reabsorção óssea e na manutenção da integridade do tecido periodontal.6
Além de suas propriedades anti-inflamatórias locais, o CBD também pode ter benefícios em doenças sistêmicas associadas à doença periodontal, como diabetes. O controle da inflamação relacionada ao diabetes, especialmente no contexto da periodontite, pode reduzir a incidência de complicações metabólicas e melhorar o prognóstico geral dos pacientes. A capacidade do CBD de regular essas respostas inflamatórias sistêmicas torna-o uma opção terapêutica promissora para o tratamento de condições multifatoriais que envolvem inflamação crônica
Para saber mais sobre o uso da cannabis no tratamento da dor crônica: Cannabis no manejo da Dor Crônica
O uso terapêutico de canabinoides na doença periodontal representa um campo promissor, particularmente devido ao seu potencial na modulação da inflamação e na proteção contra o estresse oxidativo. À medida que avançamos em direção a uma abordagem mais personalizada e baseada em evidências científicas, os canabinoides têm o potencial de desempenhar um papel fundamental no tratamento de diversas condições clínicas, incluindo a doença periodontal.
Conclusão
O crescente entendimento sobre o sistema endocanabinoide e suas interações com a saúde bucal abre novas possibilidades terapêuticas. A modulação da resposta imune pelos canabinoides, especialmente o CBD e o THC, sugere um potencial promissor na odontologia, podendo atuar como coadjuvantes no tratamento convencional da doença periodontal. O potencial dos canabinoides na saúde bucal é inegável. No entanto, são necessários mais estudos científicos para elucidar melhor seus mecanismos de ação e sua aplicabilidade clínica.
Diante desse cenário, é fundamental que profissionais da odontologia acompanhem os avanços científicos sobre o uso da cannabis medicinal no contexto da saúde bucal. A integração de novas abordagens terapêuticas, aliadas a medidas preventivas e tratamentos convencionais, pode aprimorar o cuidado periodontal e proporcionar melhores desfechos para os pacientes.
Nesse contexto, a WeCann Academy se destaca como uma aliada indispensável da comunidade odontológica, oferecendo suporte na adoção de abordagens clínicas baseadas em ciência. Por meio de recursos técnicos, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a instituição capacita dentistas, médicos e médicos veterinários a explorar o potencial terapêutico dos canabinoides no tratamento de diversas condições clínicas. Essa abordagem promove uma compreensão aprofundada das aplicações seguras e eficazes da cannabis medicinal, permitindo que os profissionais de saúde integrem essas terapias de forma ética, responsável e alinhada às mais recentes evidências científicas.
Referências
- MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- DEL BUONO, Eduardo Alberto. Doença periodontal e saúde pública no Brasil: importância do diagnóstico, prevenção e tratamento para melhoria da saúde do indivíduo – análise de literatura. Revista Acadêmica Caderno de Diálogos, v. 2, n. 1, 2022. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/caderno/article/view/74892. Acesso em: 23 fev. 2025.
- Bellocchio, L.; Inchingolo, A.D.; Inchingolo, A.M.; Lorusso, F.; Malcangi, G.; Santacroce, L.; Scarano, A.; Bordea, I.R.; Hazballa, D.; D’Oria, M.T.; et al. Cannabinoids Drugs and Oral Health—From Recreational Side-Effects to Medicinal Purposes: A Systematic Review. Int. J. Mol. Sci. 2021, 22, 8329. https://doi.org/10.3390/ijms22158329
- Napimoga M.H., Benatti B.B., Lima F.O., Alves P.M., Campos A.C., Pena-dos-Santos D.R., Severino F.P., Cunha F.Q., Guimarães F.S. Cannabidiol Decreases Bone Resorption by Inhibiting RANK/RANKL Expression and pro-Inflammatory Cytokines during Experimental Periodontitis in Rats. Int. Immunopharmacol. 2009;9:216–222. doi: 10.1016/j.intimp.2008.11.010.
- HU, Zonghao et al. Cannabidiol and its application in the treatment of oral diseases: therapeutic potentials, routes of administration and prospects. Biomedicine & Pharmacotherapy, v. 176, p. 116271, 2024. ISSN 0753-3322. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.biopha.2024.116271. Acesso em: 26 fev. 2025.
- NAPIMOGA, Marcelo H. et al. Cannabidiol decreases bone resorption by inhibiting RANK/RANKL expression and pro-inflammatory cytokines during experimental periodontitis in rats. International Immunopharmacology, v. 9, n. 2, p. 216-222, 2009. ISSN 1567-5769. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.intimp.2008.11.010. Acesso em: 26 fev. 2025.