O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição complexa de neurodesenvolvimento, caracterizada por déficits na comunicação, na interação social, e pela presença de comportamentos repetitivos e restritivos. Essas características podem variar amplamente em termos de severidade, comprometendo a qualidade de vida dos indivíduos e impondo desafios significativos para seus familiares e cuidadores. O tratamento do TEA tem se mostrado um grande desafio para a medicina, uma vez que as opções farmacológicas disponíveis, como antipsicóticos, antidepressivos e psicoestimulantes, frequentemente apresentam eficácia limitada e efeitos colaterais importantes.
Nos últimos anos, a Cannabis medicinal tem ganhado destaque como uma alternativa segura e potencialmente eficaz no manejo de sintomas do TEA. Neste post, vamos explorar as evidências científicas mais recentes sobre o uso de Cannabis medicinal no tratamento do TEA, destacando os mecanismos de ação no Sistema Endocanabinoide e discutindo como os fitocanabinoides podem ser incorporados de maneira segura e eficaz nesse contexto clínico.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA)
O Transtorno do Espectro Autista é uma condição caracterizada por uma série de disfunções que afetam o neurodesenvolvimento, manifestando-se precocemente na infância. Os principais sintomas incluem dificuldades de comunicação verbal e não verbal, déficits na interação social, comportamentos repetitivos e restritivos, irritabilidade, agressividade e, em alguns casos, automutilação.¹ Além disso, muitos indivíduos com TEA apresentam condições comórbidas, como Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), distúrbios do sono, ansiedade e epilepsia.²
Ainda há lacunas significativas no entendimento dos mecanismos fisiopatológicos do TEA. Fatores genéticos e ambientais são considerados influências cruciais, afetando diretamente o sistema imunológico, a função mitocondrial, o estresse oxidativo, a sinalização celular, além de alterações epigenéticas. A interação entre a micróglia e os fatores etiológicos do autismo, como plasticidade sináptica, circuitos neurais, desenvolvimento celular e epigenética, está sendo intensamente estudada.³
A forma como os sintomas se manifestam e a gravidade dos mesmos podem variar amplamente de um indivíduo para outro, o que torna o manejo do TEA particularmente desafiador. As intervenções precoces, como terapias psicopedagógicas, são cruciais para melhorar o prognóstico, mas as opções farmacológicas atuais são limitadas e muitas vezes insuficientes para controlar diversos sintomas de forma eficaz.
Os medicamentos frequentemente utilizados, como antipsicóticos, antidepressivos e psicoestimulantes, são comumente prescritos para tratar os sintomas do TEA, mas esses podem apresentar efeitos colaterais significativos, como ganho de peso, alterações hormonais e metabólicas, sonolência, insônia e irritabilidade. Além disso, a eficácia dessas medicações varia de paciente para paciente, e muitos indivíduos com TEA permanecem refratários ao tratamento convencional, necessitando de alternativas terapêuticas mais eficazes e com menor perfil de efeitos colaterais.
O Sistema Endocanabinoide e o Transtorno do Espectro Autista
O Sistema Endocanabinoide (SEC) é um sistema de sinalização celular presente em todo o corpo humano, desempenhando um papel crucial na regulação de várias funções fisiológicas, incluindo o humor, a memória, a dor, a inflamação e o neurodesenvolvimento. O SEC pode estar diretamente envolvido na etiologia e na progressão de várias doenças neuropsiquiátricas, como depressão, ansiedade, Parkinson, Alzheimer e epilepsia.4 No contexto do TEA, o SEC também tem atraído atenção significativa devido ao seu papel na modulação de processos neuroinflamatórios e na neurogênese.
Pesquisas recentes revelam que crianças com TEA frequentemente apresentam níveis reduzidos de endocanabinoides, como a anandamida (AEA), em comparação com crianças neurotípicas.5 Além disso, evidências clínicas recentes mostram que os níveis de canabinoides endógenos, como a anandamida, podem servir como biomarcadores para o TEA.5 Esse desequilíbrio sugere que a diminuição do tônus de funcionamento do sistema endocanabinoide pode estar associada tanto ao desenvolvimento quanto à gravidade dos sintomas do TEA. Relatos clínicos têm demonstrado que os derivados canabinoides podem aliviar sintomas significativos associados ao TEA, incluindo convulsões, insônia e ansiedade, em crianças.6 Esses achados reforçam a importância da pesquisa contínua sobre o SEC e o potencial terapêutico dos canabinoides no tratamento do TEA.
A modulação do SEC por meio da administração de fitocanabinoides, como o Canabidiol (CBD), tem o potencial de restaurar o equilíbrio desse sistema, promovendo efeitos terapêuticos em pacientes com TEA. Estudos clínicos indicam que o CBD pode ajudar a reduzir comportamentos autolesivos, hiperatividade e ansiedade, além de melhorar a qualidade do sono, com uma boa tolerabilidade, sem causar os efeitos adversos comumente associados aos medicamentos convencionais.
Evidências Científicas sobre Cannabis e TEA
A pesquisa científica sobre o uso do CBD em pacientes com Transtorno do Espectro Autista TEA ainda está em desenvolvimento, mas alguns estudos preliminares e ensaios clínicos fornecem dados promissores. Um estudo controlado com 150 crianças com TEA, por exemplo, investigou os efeitos de uma formulação rica em CBD (com proporção de 20:1 de CBD para THC) na qualidade do sono e nos sintomas comportamentais. Embora os parâmetros de sono medidos através do questionário CSHQ (Children’s Sleep Habits Questionnaire) não tenham mostrado diferenças significativas em comparação ao placebo, os pesquisadores destacaram que essa preparação pode ter impacto em subgrupos específicos de pacientes dentro do espectro do autismo.7
Além disso, o estudo revelou que houve uma correlação entre a qualidade do sono e a redução de sintomas centrais do TEA, como comportamento disruptivo, sugerindo que intervenções mais direcionadas podem apresentar resultados mais consistentes.7 Outro dado importante é que, além de estudos clínicos, há evidências robustas do uso de canabinoides para tratar condições como epilepsia refratária em crianças, uma comorbidade frequentemente observada em indivíduos com TEA. O Epidiolex, uma preparação purificada de CBD, já é aprovado para tratar formas específicas de epilepsia, como a síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut, e sua eficácia em melhorar a qualidade de vida de crianças com esses transtornos contribui para o otimismo em relação ao seu uso no manejo do TEA.7
Um outro estudo, que incluiu 53 pacientes, predominantemente do sexo masculino (85%), com uma idade mediana de 11 anos (variando de 4 a 22 anos) fez um acompanhamento médio de 66 dias de paciente com TEA em uso de cannabis medicinal. As doses diárias medianas de Δ9-THC e CBD foram de 7 mg e 90 mg, respectivamente. Após a administração de canabidiol, observou-se uma melhora significativa nos sintomas em 68,4% das 38 crianças com hiperatividade, enquanto 67,6% dos 34 casos de automutilação relataram redução dos sintomas. Além disso, problemas de sono melhoraram em 71,4% dos 21 pacientes avaliados, e 47,1% das crianças com sintomas de ansiedade apresentaram melhora. Embora as melhorias observadas não tenham sido estatisticamente diferentes em comparação ao tratamento convencional, os resultados são promissores para o uso do canabidiol. Além disso, nesse estudo os efeitos adversos mais frequentemente relatados incluíram sonolência (n = 12) e diminuição do apetite (n = 6), ambos considerados transitórios e que se resolveram espontaneamente.8
Um dos estudos mais impactantes sobre o uso da Cannabis medicinal no tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) foi conduzido por pesquisadores brasileiros e publicado na revista Frontiers in Neurology em 2019. Nesse estudo, 15 pacientes com TEA, muitos dos quais apresentavam comorbidades graves como epilepsia refratária, foram tratados com extrato de Cannabis rico em canabidiol em um regime de uso compassivo. A pesquisa acompanhou esses pacientes ao longo de um período de 6 a 9 meses.9
Os resultados foram impressionantes: 14 dos 15 pacientes mostraram melhorias significativas em pelo menos uma das oito categorias avaliadas, que incluíam transtornos comportamentais, déficits motores, dificuldades de comunicação e interação social, distúrbios do sono e crises convulsivas. As melhorias mais marcantes foram observadas nas crises convulsivas, no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), nos distúrbios do sono e nas dificuldades de comunicação.9
Um achado particularmente relevante foi que a maioria dos pacientes conseguiu manter os benefícios terapêuticos do CBD mesmo após a redução ou suspensão de outros medicamentos convencionais, como antipsicóticos e anticonvulsivantes.9 Esse fato não apenas reforça a eficácia do CBD, mas também destaca seu perfil de segurança, dado que os efeitos adversos relatados foram raros e na maioria das vezes, de intensidade leve.
Conforme as pesquisas sobre Cannabis medicinal continuam a progredir, novas estratégias para o uso da cannabis no tratamento do Transtorno do Espectro Autista estão sendo investigadas. Uma revisão sistemática realizada pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) destacou os benefícios do CBD na diminuição da intensidade e frequência de diversos sintomas associados ao TEA, como autolesão, hiperatividade, ansiedade, agressividade, agitação psicomotora e distúrbios do sono. Além disso, a revisão sugere que o CBD pode promover melhorias em aspectos cognitivos, incluindo sensibilidade sensorial, atenção, interação social e desenvolvimento da linguagem em pacientes com TEA.10
Diversos estudos observacionais têm explorado o uso de canabinoides no tratamento do Transtorno do Espectro Autista. Um estudo particularmente notável foi conduzido em Israel e publicado na revista Nature. Nessa pesquisa, 188 crianças, com idade média de 13 anos, foram acompanhadas por seis meses enquanto recebiam um óleo de cannabis rico em canabidiol, com uma composição de 30% de CBD e 1,5% de THC, resultando em uma proporção de 20:1 entre CBD e THC, além de conter outros canabinoides em baixas concentrações, terpenos e flavonoides.11
Os resultados mostraram uma melhora global em 80% dos casos, incluindo a qualidade de vida dos pacientes. Os efeitos colaterais foram mínimos, com sonolência sendo o mais comum, e a adesão ao tratamento foi alta, com 60% dos pacientes optando por continuar o uso do óleo de cannabis mesmo após o término do estudo. Em linha com esses achados, um estudo duplo-cego e randomizado também investigou o uso do extrato de cannabis em pacientes com TEA, observando uma melhora no comportamento disruptivo, boa tolerabilidade do tratamento e poucos efeitos colaterais, como sonolência, náuseas e alterações no apetite.11
Saiba mais sobre a prescrição e o uso terapêutico do canabidiol, incluindo regulamentação e benefícios clínicos comprovados aqui: Canabidiol: O manual definitivo para Médicos (wecann.academy)
Conclusão
O Transtorno do Espectro Autista é um dos maiores desafios para a medicina moderna, dada sua complexidade e a ampla variabilidade dos sintomas. As terapias convencionais, embora possam ser eficazes em alguns casos, muitas vezes são limitadas em termos de eficácia e segurança. Nesse cenário, a cannabis medicinal emerge como uma alternativa promissora. A introdução de fitocanabinoides na prática médica pode representar um avanço significativo no tratamento do TEA, oferecendo uma opção potencialmente mais eficaz e com um perfil de efeitos colaterais mais favorável em comparação a outras terapêuticas.
Nesse contexto, é essencial que os médicos se mantenham atualizados sobre os avanços no tratamento do TEA e no uso da cannabis medicinal, a fim de assegurar a melhor assistência possível aos seus pacientes. A WeCann desempenha um papel fundamental ao partilhar informações atualizadas e baseadas em evidências científicas, capacitando os médicos a oferecer cuidados de alta qualidade com segurança e bons resultados.
Referências
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