A esteatose hepática, ou doença hepática gordurosa, representa um espectro de condições caracterizadas pelo acúmulo excessivo de lipídios nos hepatócitos. Essa condição está frequentemente associada à obesidade, resistência à insulina, consumo excessivo de álcool e hepatites virais, representando um grande desafio para a saúde pública. De acordo com o Global Burden of Disease Study, as doenças hepáticas são responsáveis por mais de 2 milhões de mortes anualmente, representando cerca de 4% de todas as mortes no mundo—o que equivale a 1 em cada 25 óbitos.
Esses dados ressaltam a relevância clínica e epidemiológica das doenças hepáticas, bem como a necessidade de terapias eficazes para reduzir sua progressão e morbimortalidade. Nos últimos anos, cresceu o interesse pelo canabidiol (CBD) como uma possível opção terapêutica para doenças hepáticas, especialmente na modulação da inflamação, do estresse oxidativo e da disfunção metabólica, fatores críticos na progressão da esteatose hepática para estágios mais avançados. No post de hoje, abordaremos as bases fisiopatológicas da esteatose hepática, os mecanismos de ação do CBD no fígado e os principais achados de estudos pré-clínicos e clínicos que investigam sua eficácia.
Da Esteatose à Doença Hepática Avançada
A Doença Hepática Esteatótica Metabólica (DHEM) é a condição hepática mais prevalente globalmente, afetando cerca de 30% da população mundial. Ela representa um espectro de manifestações hepáticas associadas a distúrbios metabólicos e cardiovasculares, incluindo obesidade, resistência à insulina, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes tipo 2 (DM2). Reconhecida como a manifestação hepática da síndrome metabólica, a DHEM abrange desde a esteatose hepática simples — forma menos progressiva da doença — até a esteato-hepatite associada a distúrbios metabólicos (MASH, Metabolic Dysfunction-Associated Steatohepatitis), que apresenta maior potencial de evolução para fibrose, cirrose e carcinoma hepatocelular (CHC).¹
Historicamente conhecida como Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (DHGNA), essa condição teve sua nomenclatura revisada para refletir mais precisamente seu contexto metabólico. O termo DHGNA foi substituído por MASLD (Metabolic Dysfunction-Associated Steatotic Liver Disease), destacando a forte associação da doença com os distúrbios metabólicos subjacentes. De forma similar, a esteato-hepatite não alcoólica (NASH) passou a ser chamada de MASH (Metabolic Dysfunction-Associated Steatohepatitis), mantendo a distinção entre a forma mais branda e a forma inflamatória mais avançada da doença.¹
A esteatose hepática ocorre quando há um acúmulo excessivo de triglicerídeos nos hepatócitos, promovido por múltiplos fatores:
- Aumento da lipogênese hepática: A resistência à insulina ativa a via SREBP-1c (Sterol Regulatory Element-Binding Protein 1c), estimulando a síntese de ácidos graxos.
- Redução da β-oxidação mitocondrial: Disfunções mitocondriais impedem a degradação eficiente dos lipídios, agravando a deposição hepática de gordura.
- Diminuição da exportação de lipídios: Alterações na síntese e secreção de lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL) comprometem a eliminação dos triglicerídeos pelo fígado.
Enquanto a MASLD pode permanecer estável ou regredir com mudanças no estilo de vida, alguns pacientes evoluem para MASH, onde o acúmulo de gordura desencadeia inflamação crônica e fibrose hepática. Esse processo envolve:
- Ativação das células de Kupffer e infiltração de macrófagos, liberando citocinas pró-inflamatórias como TNF-α e IL-6, que exacerbam o dano hepatocelular.
- Lesão peroxidativa lipídica, promovendo estresse oxidativo e morte celular.
- Estimulação das células estreladas hepáticas, levando à deposição de colágeno e desenvolvimento progressivo de fibrose.
A fisiopatologia da DHEM está intimamente ligada aos mecanismos metabólicos, que envolvem aumento da lipogênese hepática, resistência à insulina, disfunção mitocondrial e comprometimento na exportação de lipídios, fatores que favorecem o acúmulo de gordura nos hepatócitos e a inflamação hepática subsequente. Quando a doença avança para MASH, o acúmulo de lipídios no fígado resulta em inflamação crônica e fibrose, aumentando o risco de complicações graves como cirrose e carcinoma hepatocelular.¹
O diagnóstico da DHEM envolve uma abordagem multifacetada, incluindo avaliação clínica, exames laboratoriais e métodos de imagem. Como a maioria dos pacientes é assintomática em estágios iniciais, a suspeita geralmente surge em indivíduos com fatores de risco metabólicos, como obesidade, diabetes tipo 2 e dislipidemia.¹
Exames laboratoriais podem revelar alterações como elevação das transaminases (ALT e AST), embora seus níveis nem sempre refletem a gravidade da doença. Outros biomarcadores, como ferritina elevada e aumento da relação AST/ALT, podem sugerir progressão para fibrose. A elastografia hepática, realizada por ultrassom ou ressonância magnética, é uma ferramenta essencial para avaliar o grau de fibrose, permitindo diferenciar esteatose simples de formas mais avançadas da doença. Já a biópsia hepática continua sendo o padrão-ouro para confirmar MASH e determinar a extensão do dano hepático, embora seja reservada para casos selecionados devido ao seu caráter invasivo.¹
O manejo da DHEM é baseado na modificação do estilo de vida, que inclui redução de peso, atividade física regular e dieta equilibrada. A perda de 7% a 10% do peso corporal demonstrou melhora significativa da esteatose, inflamação e até regressão da fibrose em alguns casos. No âmbito farmacológico, não há terapias aprovadas especificamente para DHEM, mas medicamentos como pioglitazona e agonistas do GLP-1, utilizados no tratamento do diabetes tipo 2, demonstraram benefícios na melhora da resistência à insulina e da esteatose hepática.¹
Dentre as terapias emergentes, o canabidiol (CBD), um fitocanabinoide não psicotrópico, tem se destacado como uma opção potencial para a doenças hepáticas devido aos seus efeitos anti-inflamatórios, antioxidantes e moduladores do metabolismo lipídico. Estudos pré-clínicos sugerem que o CBD pode reduzir a inflamação hepática ao modular a sinalização do sistema endocanabinoide.
Além disso, o CBD pode contribuir para a melhora da resistência à insulina e do perfil lipídico, atuando na homeostase da glicose e na regulação do metabolismo de ácidos graxos no fígado. Evidências iniciais indicam que sua ação sobre receptores como PPARγ e TRPV1 pode reduzir o estresse oxidativo e modular a resposta inflamatória no tecido hepático.
O Papel do Sistema Endocanabinoide na Homeostase Hepática
O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel central na regulação da homeostase hepática, influenciando processos como metabolismo lipídico, homeostase da glicose, inflamação e fibrose hepática. A ativação dos receptores canabinoides, particularmente o CB1 e CB2, modula a função hepática em resposta a mudanças metabólicas e inflamatórias, impactando diretamente a saúde do fígado.²
A ativação dos receptores CB1 no fígado promove a lipogênese e o acúmulo de triglicerídeos, contribuindo para o desenvolvimento da MASLD. O SEC está envolvido na regulação do armazenamento energético, e sua hiperatividade pode resultar em esteatose hepática, um fator de risco para inflamação e progressão para MASH.²
Além disso, o SEC interage com o tecido adiposo e os hormônios metabólicos, influenciando a diferenciação de adipócitos e a sensibilidade à insulina. A ativação excessiva do CB1 pode levar ao acúmulo de gordura visceral e resistência à insulina, agravando disfunções hepáticas.
O SEC desempenha um papel importante na regulação da homeostase da glicose. A ativação dos receptores CB1 no pâncreas modula a secreção de insulina pelas células β pancreáticas, afetando a captação de glicose e a sensibilidade à insulina. Exemplificando, pacientes com diabetes tipo 2 apresentam aumento na expressão do gene CNR1, que codifica o receptor CB1, no tecido adiposo, o que está associado à resistência à insulina e ao risco de doenças metabólicas.²
O SEC também está diretamente envolvido na regulação da inflamação hepática e no desenvolvimento de fibrose hepática. A ativação dos receptores CB2 modula a resposta imunológica das células hepáticas, impactando o equilíbrio entre inflamação e regeneração tecidual.² A superativação do CB1, por outro lado, pode agravar a inflamação hepática ao estimular a produção de citocinas pró-inflamatórias, contribuindo para a progressão da fibrose e da disfunção hepática.
Em suma, o sistema endocanabinoide desempenha um papel essencial na homeostase hepática, regulando a lipogênese, homeostase da glicose, inflamação e fibrose. A desregulação desse sistema está associada ao desenvolvimento de distúrbios metabólicos e doenças hepáticas, tornando-o um alvo relevante para intervenções terapêuticas.
CBD e seus mecanismos de ação no fígado
Estudos pré-clínicos demonstram que canabinoides como o CBD possuem propriedades anti-inflamatórias, podem estimular o metabolismo lipídico e a atividade mitocondrial, reduzindo o acúmulo de gordura no fígado e atenuando o dano hepático em doenças metabólicas. Modelos experimentais em peixes-zebra e camundongos obesos mostraram que o CBD altera a expressão de proteínas envolvidas no metabolismo lipídico, favorecendo a degradação de lipídios e prevenindo a deposição de gordura hepática. Além disso, em camundongos alimentados com dieta rica em gordura (HFD), derivados do CBD reduziram os níveis de lipoproteína de baixa densidade (LDL), um fator importante no desenvolvimento da esteatose hepática.³
O processo inflamatório desempenha um papel central na progressão da MASH. A ativação do inflamassoma NLRP3 e da via inflamatória NF-κB são eventos críticos na patogênese da doença. O CBD tem mostrado potencial para inibir a ativação do NF-κB, reduzindo assim a resposta inflamatória dos macrófagos hepáticos e impedindo a progressão do MASLD.³
Além disso, em um modelo experimental de esteatose hepática induzida pelo álcool, o CBD demonstrou efeitos protetores ao inibir a via de sinalização JNK-MAPK e aumentar a autofagia hepática, reduzindo o acúmulo de gordura e os níveis de estresse oxidativo no fígado.³
Estudos recentes indicam uma forte relação entre alterações na microbiota intestinal e o desenvolvimento da doença hepática gordurosa. O CBD pode modular a microbiota intestinal, promovendo um aumento da abundância de Lactobacillaceae, bactérias que produzem ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), conhecidos por seus efeitos benéficos no metabolismo hepático. Em camundongos alimentados com HFD (High-Fat Diet, ou uma dieta rica em gorduras) suplementado com CBD (2,39 mg/kg por 6 semanas), observou-se uma redução da inflamação hepática, melhora da tolerância à glicose e reequilíbrio da microbiota intestinal.4
Entretanto, outro estudo relatou que a administração de um extrato rico em CBD (5 mg/kg a cada três dias) resultou em aumento da expressão gênica inflamatória no fígado e diminuição da diversidade microbiana, levantando questões sobre a dose, formulação e via de administração do CBD na modulação da microbiota e seus efeitos no fígado.5
O conjunto de evidências indica que o CBD exerce efeitos benéficos na regulação do metabolismo lipídico, na modulação da inflamação e no equilíbrio da microbiota intestinal, posicionando-se como um candidato promissor para o tratamento multifatorial da esteatose hepática. Seu potencial terapêutico abre novas perspectivas para o desenvolvimento de estratégias inovadoras no manejo das doenças hepáticas metabólicas, especialmente quando associado a intervenções dietéticas e mudanças no estilo de vida.
Evidências científicas
Lopez et al. (2020) conduziram um ensaio clínico randomizado duplo-cego para avaliar a segurança e os efeitos metabólicos indiretos de um extrato de cânhamo contendo 15 mg de CBD em adultos com sobrepeso. Os resultados indicaram uma melhora significativa nos níveis de colesterol HDL, um marcador relevante para a saúde cardiovascular, além de benefícios subjetivos como melhora na percepção do sono e no prazer de viver. Importante destacar que o tratamento foi bem tolerado, sem preocupações clínicas relevantes em termos de segurança.6
Embora o estudo não tenha avaliado diretamente a esteatose hepática, seus achados sugerem um potencial efeito modulador do CBD em fatores metabólicos associados à doença, como dislipidemia e resistência à insulina. Considerando que a disfunção metabólica é um dos principais contribuintes para a progressão da MASLD, investigações futuras são necessárias para esclarecer se o CBD pode impactar diretamente a deposição de gordura hepática e a inflamação associada à condição.6
Em um ensaio clínico randomizado (ECR) de 8 semanas, pacientes com esteatose hepática receberam doses diárias de 200, 400 ou 800 mg de CBD, sem que houvesse impacto significativo nos níveis de triglicerídeos hepáticos. Apesar disso, um estudo epidemiológico sugeriu uma menor incidência de MASLD em usuários de cannabis, levantando a hipótese de que outros fitocanabinoides, além do CBD isolado, possam estar envolvidos nos efeitos observados.7
Adicionalmente, diferentes formulações e vias de administração do CBD podem impactar sua absorção e eficácia terapêutica. O CBD é um inibidor das enzimas CYP450, o que pode levar a interações medicamentosas relevantes, especialmente em doses elevadas. A ausência de dados farmacocinéticos robustos e de uma padronização na dosagem dificulta sua aplicação clínica e a interpretação dos resultados dos ensaios.
Embora os estudos pré-clínicos sugiram um potencial terapêutico do CBD na modulação do metabolismo hepático e inflamação associada à esteatose hepática, a evidência clínica ainda é limitada. Pesquisas futuras devem direcionar seus esforços para a compreensão dos mecanismos de ação do CBD, além de aprofundar os estudos sobre sua farmacocinética, a fim de avaliar com maior precisão o impacto do CBD na esteatose hepática e nas suas complicações associadas.
Conclusão
O envolvimento do sistema endocanabinoide na fisiopatologia da esteatose hepática abre novas perspectivas para o uso do CBD no manejo dessa condição. Estudos pré-clínicos demonstram que o CBD pode modular a lipogênese, reduzir a inflamação e prevenir a progressão para doença hepática avançada. No entanto, mais ensaios clínicos são necessários para esclarecer sua eficácia e segurança em humanos.
Nesse contexto, a WeCann se destaca como uma parceira essencial da comunidade médica, oferecendo suporte na tomada de decisões clínicas baseadas em evidências científicas. Por meio de recursos técnicos, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a instituição capacita os médicos a explorar com profundidade o potencial terapêutico dos canabinoides no manejo de condições complexas, incluindo patologias hepáticas.
As implicações do sistema endocanabinoide nos mais diversos processos disiopatológicos permite uma compreensão detalhada das aplicações seguras e eficazes da cannabis medicinal, proporcionando aos médicos as ferramentas necessárias para integrar essas terapias de forma ética, responsável e alinhada às mais recentes descobertas científicas, promovendo tratamentos inovadores, personalizados e potencialmente mais eficazes para os pacientes.
Referências
- Silva Júnior WS, Valério CM, Araujo-Neto JM, Godoy-Matos AF, Bertoluci M. Doença hepática esteatótica metabólica (DHEM). Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2024). DOI: 10.29327/5412848.2024-8, ISBN: 978-65-272-0704-7.
- MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Chen, Si, and Jeon-Kyung Kim. “The Role of Cannabidiol in Liver Disease: A Systemic Review.” International journal of molecular sciences vol. 25,4 2370. 17 Feb. 2024, doi:10.3390/ijms25042370
- Gorelick, J., Assa-Glazer, T., Zandani, G. et al. THC and CBD affect metabolic syndrome parameters including microbiome in mice fed high fat-cholesterol diet. J Cannabis Res 4, 27 (2022). https://doi.org/10.1186/s42238-022-00137-w
- Assa-Glazer, Tal et al. “Cannabis Extracts Affected Metabolic Syndrome Parameters in Mice Fed High-Fat/Cholesterol Diet.” Cannabis and cannabinoid research vol. 5,3 202-214. 2 Sep. 2020, doi:10.1089/can.2020.0013
- Lopez, H. ( et al. Effects of Hemp Extract on Markers of Wellness, Stress Resilience, Recovery and Clinical Biomarkers of Safety in Overweight But Otherwise Healthy Subjects. J. Diet. Suppl. 17,561-586 (2020).
- Clinicaltrials.gov Study to Assess the Effect of Cannabidiol on Liver Fat Levels in Subjects with Fatty Liver Disease. 2018 Available online: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/results/NCT01284634.