Como a Cannabis ajuda no manejo da dor neuropática

Publicado em 04/07/24 | Atualizado em 16/07/24 Leitura: 11 minutos

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A dor neuropática, é uma dor crônica que pode ser resultante de lesões ou disfunções no sistema nervoso central ou periférico, e que apresenta desafios terapêuticos significativos devido a sua natureza complexa e frequentemente resistente aos tratamentos convencionais. Caracterizada por sensações como queimação, formigamento e dor lancinante, essa condição pode ser debilitante e impactar drasticamente a qualidade de vida dos pacientes. Nos últimos anos, a cannabis emergiu como uma alternativa promissora no manejo da dor neuropática. Neste post, vamos explorar os mecanismos pelos quais a cannabis pode ajudar a aliviar a dor neuropática, revisando a literatura científica atual e abordando considerações clínicas essenciais para sua implementação segura e eficaz.

O Sistema Endocanabinoide e a Neuromodulação da Dor

O sistema endocanabinoide (SEC) é uma rede complexa que desempenha um papel crucial na regulação de diversas funções fisiológicas, incluindo a modulação da dor. Ele é composto por receptores canabinoides (principalmente CB1 e CB2), endocanabinoides (moléculas lipídicas como anandamida e 2-AG) e enzimas que sintetizam e degradam os endocanabinoides.

Como o SEC Modula a Dor?

Através de receptores CB1 e CB2:

  • Receptores CB1: Principalmente localizados no sistema nervoso central (SNC), incluindo o cérebro e a medula espinhal. Quando ativados por endocanabinoides, os receptores CB1 inibem a liberação de neurotransmissores excitatórios, como o glutamato e a substância P. Isso resulta em uma diminuição da excitabilidade neuronal e, consequentemente, na percepção da dor. Em outras palavras, a ativação dos receptores CB1 age como um “freio” nos sinais de dor que viajam pelo sistema nervoso.¹
  • Receptores CB2: Localizados principalmente nas células do sistema imunológico e nos tecidos periféricos, mas também presentes em menor quantidade no SNC, em células da glia. A ativação dos receptores CB2 modula a resposta inflamatória. Eles reduzem a liberação de citocinas pró-inflamatórias e aumentam a produção de citocinas anti-inflamatórias.¹  Esta ação anti-inflamatória é particularmente importante na dor neuropática, onde a inflamação crônica pode causar uma sensibilização neuronal e perpetuar a sensação de dor.

Através de Endocanabinoides

  • Anandamida e 2-AG (2-Araquidonoil-Glicerol):  Esses endocanabinoides são produzidos “sob demanda” em resposta a estímulos fisiológicos e patológicos, como lesões ou estresse. A anandamida e o 2-AG se ligam aos receptores CB1 e CB2 para exercer seus efeitos. A anandamida, por exemplo, pode diminuir a liberação de neurotransmissores excitatórios no SNC, ajudando a reduzir a sensação de dor. O 2-AG, por outro lado, tem um papel mais significativo na modulação da inflamação, reduzindo a resposta inflamatória e, consequentemente, a dor associada à inflamação.

 

O sistema endocanabinoide regula a dor através da inibição da transmissão de sinais dolorosos e da modulação da resposta inflamatória. A compreensão desse sistema permite o desenvolvimento de terapias baseadas em canabinoides, que podem ser eficazes no tratamento de diferentes tipos de dor, especialmente aquelas resistentes aos tratamentos convencionais.

Mecanismos de ação da Cannabis na Dor Neuropática

A dor neuropática é uma condição crônica e debilitante, frequentemente causada por danos ou disfunções no sistema nervoso, e muitas vezes resistente aos tratamentos convencionais, como analgésicos opióides e anticonvulsivantes. Essas terapias frequentemente falham em proporcionar alívio adequado ou apresentam efeitos colaterais significativos. Nesse cenário, a cannabis surge como uma ferramenta terapêutica valiosa. A planta contém mais de 150 fitocanabinoides, entre os quais o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) são os mais amplamente estudados. Esses fitocanabinoides interagem com o sistema endocanabinoide e outras vias neuroquímicas de maneiras distintas, oferecendo uma variedade de efeitos terapêuticos na dor neuropática.

THC 

  • Interação com receptores CB1 e CB2: Como discutido anteriormente, os receptores CB1 são amplamente expressos no SNC, em áreas consideradas chave para a modulação da dor, como o córtex cerebral, a medula espinhal e o hipocampo. A ligação do THC a esses receptores inibe a liberação de neurotransmissores excitatórios, incluindo o glutamato e a substância P, o que reduz a excitabilidade neuronal e a transmissão dos sinais de dor.² Em contraste, os receptores CB2 estão predominantemente localizados em células imunológicas e tecidos periféricos. A ativação dos receptores CB2 pelo THC pode atenuar a inflamação, um componente crucial da dor neuropática, ao inibir a liberação de citocinas pró-inflamatórias e modular a resposta imune.²
  • Receptores Vaniloides TRPV1: O THC também atua em receptores TRPV1, que estão envolvidos na modulação da sensibilidade à dor e na regulação da resposta inflamatória.³ A ativação desses receptores leva à dessensibilização dos nociceptores e à redução da liberação de substâncias pró-inflamatórias, contribuindo para o alívio da dor inflamatória.
  • Neuroplasticidade e excitabilidade neuronal: O THC modula a neuroplasticidade e a excitabilidade dos neurônios envolvidos na dor crônica. Estudos em modelos animais sugerem que o THC pode prevenir a hiperalgesia induzida por lesões nervosas crônicas, interferindo na sinalização de longo prazo nos circuitos neurais da dor.4

CBD

  • Modulação de neurotransmissores: O canabidiol oferece efeitos analgésicos complexos e modula a dor neuropática através de diferentes mecanismos bioquímicos e neurofisiológicos. Em relação aos receptores canabinoides, o CBD, apesar de sua baixa afinidade direta com os receptores CB1 e CB2, modula esses receptores indiretamente. Ele aumenta os níveis de endocanabinoides endógenos, como a anandamida, inibindo sua degradação pela enzima FAAH (Amida hidrolase de ácidos graxos). Isso contribui para a regulação da dor e de processos inflamatórios diversos. 
  • Receptores 5-HT1A e TRPV1: Além disso, o CBD atua como um agonista parcial dos receptores 5-HT1A de serotonina, conhecidos por sua influência na modulação da dor e na resposta ao estresse. Esta interação pode reduzir tanto a ansiedade quanto a percepção da dor, proporcionando um efeito terapêutico adicional na dor neuropática.³ O CBD também ativa os receptores TRPV1 (canais iônicos de potencial transitório), que desempenham um papel crucial na detecção de estímulos nocivos e na regulação da sensação de dor. Esta ativação pode ajudar na modulação da nocicepção, melhorando o controle da dor neuropática.5
  • Propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras: CBD demonstra efeitos robustos na redução da inflamação associada à dor neuropática. Ele inibe a produção de citocinas pró-inflamatórias e reduz a atividade das células microgliais, que desempenham um papel crucial na resposta imunológica no sistema nervoso central. Adicionalmente, o CBD exerce efeitos neuroprotetores ao promover a regeneração neuronal e modular a neuroplasticidade, ajudando na recuperação e na função de nervos danificados. Esses diversos mecanismos de ação tornam o CBD uma opção terapêutica promissora no manejo da dor neuropática, especialmente quando tratamentos convencionais se mostram ineficazes ou associados a efeitos colaterais significativos.

Evidências clínicas do uso de Cannabis na dor neuropática

A pesquisa científica sobre o uso da cannabis e seus componentes no tratamento da dor neuropática está em crescimento, com vários estudos clínicos fornecendo evidências substanciais de sua segurança e eficácia.

Estudos Clínicos Randomizados (ECR):

  • Ainda em 2019, Überall e colaboradore sinvestigaram a coadministração de THC e CBD da formulação nabiximols (1:1) para o controle da dor neuropática, observando resultados promissores. A dose ótima para controle eficaz e bem tolerado da dor crônica foi estabelecida entre 8 e 12 pulverizações diárias de nabiximols (22-32 mg de THC + 20-30 mg de CBD), alcançadas geralmente durante a fase inicial de titulação, em 2 a 4 semanas.6 Outras pesquisas clínicas também relataram reduções significativas na dor neuropática em pacientes tratados com cannabis vaporizada.7

 

Metanálises:

  • Em 2018 foi realizada uma metanálise que demonstrou que a administração média de dez pulverizações diárias de nabiximols (27 mg de THC e 25 mg de CBD) foi eficaz no controle da dor crônica, incluindo dor neuropática, artrite reumatoide e dor relacionada ao câncer. Já em outra metanálise, também publicada em 2018, os autores concluíram que os canabinoides, como THC e CBD, são moderadamente eficazes na redução da dor neuropática crônica, embora os resultados variem entre os indivíduos.7

 

Relatos de pacientes e estudos observacionais:

  • Relatos anedóticos e estudos observacionais indicam que muitos pacientes com dor neuropática experimentam alívio substancial com o uso de cannabis medicinal. A variabilidade na resposta aos canabinoides destaca a importância de abordagens personalizadas nas estratégias prescritivas.

 

Destaca-se que a Federação Europeia de Dor (European Pain Federation) e a Sociedade Canadense de Dor (Canadian Pain Society) publicaram artigos posicionando os canabinoides como medicamentos de tratamento de terceira linha na abordagem terapêutica da dor neuropática, mantendo-os à frente de agentes de quarta linha, como a metadona e a lamotrigina.7

Essas evidências reforçam a cannabis como uma opção terapêutica importante para pacientes enfrentando dor neuropática refratária aos tratamentos convencionais. Esses e outros dados científicos estão disponíveis no Tratado de Medicina Endocanabinoide, um manual completo e abrangente que cobre os principais aspectos do do sistema endocanabinoide e do uso medicinal da cannabis, totalmente voltado para profissionais da área médica.

Para saber mais sobre o Tratado de Medicina Endocanabinoide: Tratado de Medicina Endocanabinoide | WeCann Academy – Wecann

Conclusão

A cannabis representa uma promissora abordagem terapêutica para o tratamento da dor neuropática, uma condição frequentemente resistente aos tratamentos convencionais. Seus mecanismos de ação, incluindo a modulação do sistema endocanabinoide e outros alvos moleculares, oferecem uma base científica sólida para sua utilização na prática clínica. Embora evidências clínicas sustentem sua eficácia, a variação na resposta individual demanda estratégias personalizadas de tratamento. Portanto, é fundamental que os profissionais médicos estejam plenamente capacitados e atualizados ao considerar a cannabis como opção terapêutica para a dor neuropática. A educação continuada e a constante atualização sobre as pesquisas são essenciais para a segurança e eficácia do uso de medicamentos à base de cannabis na prática clínica.

Referências: 

  1. Francischetti, E. A., & Genelhu de Abreu, V. (2006). O Sistema Endocanabinóide: Nova Perspectiva no Controle de Fatores de Risco Cardiometabólico. The Endocannabinoid System: A New Perspective for Cardiometabolic Risk Control. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, RJ. https://doi.org/10.1590/S0066-782X2006001700023
  2. Pertwee RG. The diverse CB1 and CB2 receptor pharmacology of three plant cannabinoids: delta9-tetrahydrocannabinol, cannabidiol and delta9-tetrahydrocannabivarin. Br J Pharmacol. 2008 Jan;153(2):199-215. doi: 10.1038/sj.bjp.0707442. Epub 2007 Sep 10. PMID: 17828291; PMCID: PMC2219532.
  3. De Petrocellis L, Di Marzo V. Non-CB1, non-CB2 receptors for endocannabinoids, plant cannabinoids, and synthetic cannabimimetics: focus on G-protein-coupled receptors and transient receptor potential channels. J Neuroimmune Pharmacol. 2010 Mar;5(1):103-21. doi: 10.1007/s11481-009-9177-z. Epub 2009 Oct 22. PMID: 19847654.
  4. Richardson JD, Kilo S, Hargreaves KM. Cannabinoids reduce hyperalgesia and inflammation via interaction with peripheral CB1 receptors. Pain. 1998 Mar;75(1):111-119. doi: 10.1016/S0304-3959(97)00213-3. PMID: 9539680.
  5. Campos AC, Moreira FA, Gomes FV, Del Bel EA, Guimarães FS. Multiple mechanisms involved in the large-spectrum therapeutic potential of cannabidiol in psychiatric disorders. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2012 Dec 5;367(1607):3364-78. doi: 10.1098/rstb.2011.0389. PMID: 23108553; PMCID: PMC3481531.
  6. Ueberall, M., Essner, U. & Mueller-Schwefe, G. H.H. Effectiveness and tolerability of THC:CBDoromucosal spray as add-on measure in patientswith severe chronic pain: analysis of 12-week openlabelreal-world data provided by the German Paine-Registry. J. Pain Res. Volume 12, 1577–1604(2019).
  7. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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