Canabidiol no tratamento do transtorno por uso de álcool

Publicado em 18/12/24 | Atualizado em 18/12/24 Leitura: 12 minutos

Canabidiol (CBD)CanabinoidesCannabis como MedicamentoPsiquiátricas

O transtorno por uso de álcool (TUA) é uma condição psiquiátrica caracterizada pelo consumo descontrolado de álcool, e todas as suas consequências negativas. Atinge milhões de pessoas em todo o mundo e representa um grande desafio para a saúde pública, devido às suas complicações médicas, sociais e psicológicas. Tratamentos tradicionais, como terapia farmacológica e comportamental, apresentam taxas variadas de sucesso, destacando a necessidade de novas abordagens terapêuticas. 

Nos últimos anos, o canabidiol (CBD), um dos principais compostos não psicotrópico da planta Cannabis sativa, tem emergido como uma opção promissora no manejo do TUA, devido às suas propriedades neuroprotetoras, ansiolíticas e moduladoras do sistema endocanabinoide. No post de hoje iremos explorar o papel do canabidiol no manejo terapêutico do transtorno por uso de álcool.

Transtorno por uso de álcool 

O Transtorno por Uso de Álcool é uma condição psiquiátrica multifacetada, caracterizada pelo consumo compulsivo de álcool. Esse consumo gera diversas consequências negativas para a saúde física, mental e social. O álcool é a substância psicoativa legal mais consumida no Brasil e, embora amplamente aceito socialmente, seu uso abusivo constitui um grave problema de saúde pública. Farmacologicamente, o álcool é classificado como uma droga depressora do sistema nervoso central, promovendo inicialmente euforia e desinibição, seguidos por disfunções cognitivas e motoras à medida que inibe a atividade neuronal.¹

Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a dependência de álcool como uma síndrome caracterizada pelo uso contínuo da substância, mesmo diante de danos significativos à saúde física e mental, bem como prejuízos nas relações interpessoais e no funcionamento social e econômico. O impacto do consumo abusivo de álcool é globalmente devastador, sendo responsável por aproximadamente 2,5 milhões de mortes anualmente, o que o posiciona como a terceira principal causa de morte evitável no mundo. No Brasil, as taxas de mortalidade relacionadas ao consumo de álcool são particularmente altas, afetando 8,2% dos homens e 3,2% das mulheres.

Do ponto de vista clínico, o diagnóstico de TUA abrange um conjunto de critérios definidos pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5), que incluem sintomas comportamentais e fisiológicos, como a presença de fissura, abstinência e comprometimentos em diversas áreas funcionais. Os sintomas de abstinência podem variar desde alterações no sono e apetite até manifestações autonômicas como bradicardia e tremores, refletindo o impacto sistêmico do álcool sobre o organismo.

Tradicionalmente, o tratamento do TUA envolve uma combinação de intervenções farmacológicas e psicoterapêuticas. Entre as abordagens psicoterápicas, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem se mostrado eficaz em muitos casos, ajudando os pacientes a identificar e modificar padrões de pensamento disfuncionais, que perpetuam o ciclo de consumo de álcool. No entanto, a TCC clássica apresenta limitações, especialmente em pacientes com comorbidades psiquiátricas, como transtornos de personalidade, que tendem a apresentar altas taxas de recaída.¹

Além das terapias psicossociais, o manejo farmacológico do TUA inclui o uso de medicamentos como o dissulfiram, naltrexona e acamprosato, que atuam em diferentes vias neuroquímicas para reduzir o desejo pelo álcool e os sintomas de abstinência. No entanto, a resposta ao tratamento varia amplamente entre os pacientes, refletindo a complexidade da dependência alcoólica e a necessidade de abordagens terapêuticas personalizadas.¹

Diante das limitações dos tratamentos convencionais, novas abordagens estão sendo investigadas, incluindo o uso de canabinoides no manejo do TUA. O canabidiol, tem demonstrado potencial neuroprotetor e ansiolítico, além de modular o sistema endocanabinoide, que está envolvido na regulação de processos emocionais e de recompensa associados à dependência de substâncias. Estudos científicos sugerem que o CBD pode ser uma intervenção promissora para reduzir o consumo de álcool e aliviar os sintomas de abstinência.

TUA e Sistema Endocanabinoide

O CBD exerce efeitos terapêuticos por meio de vários mecanismos de ação. Um dos principais é sua interação com o sistema endocanabinoide (SEC), que desempenha um papel fundamental na regulação de funções como humor, estresse, prazer e dependência. O SEC é composto por receptores canabinoides, como o CB1 e o CB2, e seus ligantes endógenos, os endocanabinoides. No TUA, o consumo excessivo de álcool altera o funcionamento deste sistema, contribuindo para a dependência e recaída.³

O sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial na regulação dos circuitos neuronais associados ao sistema de recompensa, um mecanismo central no desenvolvimento de Transtornos por Uso de Substâncias (TUS), incluindo o Transtorno por Uso de Álcool. Este sistema neuronal é fundamental para o reforço positivo de comportamentos relacionados ao prazer e ao consumo de substâncias, sendo composto por neurotransmissores como dopamina, glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA). A influência do SEC sobre o sistema de recompensa pode ter implicações significativas para a compreensão e o manejo do TUA.³

Os receptores canabinoides CB1 são elementos fundamentais na modulação do sistema de recompensa, particularmente na área tegmental ventral (VTA). A ativação dos receptores CB1 nesta região reduz a liberação de GABA, resultando na desinibição dos neurônios dopaminérgicos e subsequente ativação do sistema mesocorticolímbico. Este processo é fundamental para o reforço de comportamentos de busca por substâncias e para a manutenção do consumo compulsivo de álcool.4

O receptor CB2, embora menos estudado em comparação ao CB1, também desempenha um papel significativo no TUA. A manipulação farmacológica do CB2 tem demonstrado afetar comportamentos relacionados à dependência de álcool. Modelos animais com deleção genética do CB2 exibem aumento no consumo de álcool e maior propensão à recaída.5 Além disso, análises de tecido cerebral post-mortem de indivíduos com alcoolismo revelaram alterações na expressão do gene CNR2, que codifica o receptor CB2. Essas alterações genéticas e suas correlações com o TUA indicam que o receptor CB2 pode ser um alvo potencial para intervenções terapêuticas.

Um dos principais mecanismos pelo qual o CBD atua é como um modulador alostérico negativo dos receptores CB1. Isso significa que o CBD pode alterar a forma como os receptores CB1 respondem a seus ligantes naturais ou a outras substâncias, resultando em efeitos neuromodulatórios, que podem atenuar a busca compulsiva por álcool. O CBD, ao agir como um modulador alostérico negativo dos receptores CB1, pode alterar a resposta dos neurônios dopaminérgicos à ativação do sistema de recompensa. Isso pode resultar em uma diminuição na compulsão por álcool e na redução dos comportamentos associados à dependência.³

Embora o CBD não se ligue diretamente aos receptores CB2, ele pode influenciar a expressão e a atividade destes receptores de forma indireta. A modulação do CB2 pelo CBD pode contribuir para a redução dos comportamentos de busca por álcool e ajudar a prevenir recaídas. Além da interação com o SEC, o CBD atua por meio de outros mecanismos neurobiológicos que podem contribuir para o tratamento do TUA. O CBD possui propriedades ansiolíticas e antipsicóticas, que são atribuídas em parte à sua interação com os receptores serotoninérgicos 5-HT1a e aos receptores dopaminérgicos D2. Essas ações podem ajudar a reduzir a ansiedade e a compulsão associadas ao consumo de álcool.6,7

Para saber mais sobre o Sistema Endocanabinoide acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide?

Evidências científicas 

As evidências científicas têm demonstrado que o CBD possui propriedades neuroprotetoras significativas. Em modelos animais de TUA, o CBD tem mostrado reduzir os danos cerebrais induzidos pelo álcool, especificamente nas regiões do hipocampo e do córtex entorrinal, áreas críticas para a memória e a cognição.8 Estes efeitos são particularmente importantes, pois a neurodegeneração nessas regiões está associada a déficits cognitivos e comportamento impulsivo, fatores que podem contribuir para a recaída no TUA.9

Além dos efeitos neuroprotetores, o CBD também tem mostrado potencial na prevenção da hepatotoxicidade induzida pelo álcool. Estudos pré-clínicos revelaram que o CBD pode prevenir aumentos nas enzimas hepáticas ALT e AST, que são marcadores de danos ao fígado.10 Essa proteção hepática é particularmente relevante para pacientes com TUA, que frequentemente apresentam problemas hepáticos devido ao consumo excessivo de álcool.

Um estudo, conduzido com camundongos C57BL/6J machos, uma raça conhecida por sua preferência por etanol, demonstrou que a administração de CBD reduziu as propriedades de reforço, a motivação e a recaída associadas ao etanol. Em doses crescentes (30, 60 e 120 mg/kg), administradas por via intraperitoneal, o CBD diminuiu a preferência por etanol (de 75% para 55%) e a ingestão (de cerca de 6 g/kg/dia para 3,5 g/kg/dia) em um paradigma de escolha entre água e solução de etanol a 8%. Esses resultados foram corroborados por um paradigma operante, onde camundongos pressionavam uma alavanca para obter acesso a 36 mL de solução de etanol a 8%.11

O CBD também reduziu o número de prensas de alavanca ativas em aproximadamente 40% e a motivação para beber etanol em cerca de 50%, além de diminuir a recaída em cerca de 30% após uma sessão de extinção com uma dose de 120 mg/kg. O tratamento com CBD não afetou a motivação para a ingestão de água. Além disso, o CBD foi eficaz na redução da hipotermia e convulsões induzidas por etanol, mas não influenciou a concentração de etanol no sangue.11

Evidências pré-clínicas mostram que o CBD possui aplicações terapêuticas promissoras no transtorno por uso de álcool (TUA). O CBD reduz o consumo de álcool, a motivação para o uso e a recaída em modelos animais. Além disso, protege o fígado contra danos induzidos pelo álcool, reduzindo a fibrose hepática por meio de suas propriedades imunomoduladoras, antioxidantes, ativação da autofagia e regulação do acúmulo de lipídios. No cérebro, o CBD atua como agente neuroprotetor multimodal, prevenindo danos neuronais associados ao comprometimento cognitivo e motor, efeito relacionado às suas propriedades antioxidantes e à modulação do sistema de adenosina cerebral. Fonte: De Ternay, J., Naassila, M., Nourredine, M., Louvet, A., Bailly, F., Sescousse, G., Maurage, P., Cottencin, O., Carrieri, P. M., & Rolland, B. (2019). Therapeutic prospects of cannabidiol for alcohol use disorder and alcohol-related damages on the liver and the brain. Frontiers in Pharmacology, 10.
Evidências pré-clínicas mostram que o CBD possui aplicações terapêuticas promissoras no transtorno por uso de álcool (TUD). O CBD reduz o consumo de álcool, a motivação para o uso e a recaída em modelos animais. Além disso, protege o fígado contra danos induzidos pelo álcool, reduzindo a fibrose hepática por meio de suas propriedades imunomoduladoras, antioxidantes, ativação da autofagia e regulação do acúmulo de lipídios. No cérebro, o CBD atua como agente neuroprotetor multimodal, prevenindo danos neuronais associados ao comprometimento cognitivo e motor, efeito relacionado às suas propriedades antioxidantes e à modulação do sistema de adenosina cerebral. Fonte: De Ternay, J., Naassila, M., Nourredine, M., Louvet, A., Bailly, F., Sescousse, G., Maurage, P., Cottencin, O., Carrieri, P. M., & Rolland, B. (2019). Therapeutic prospects of cannabidiol for alcohol use disorder and alcohol-related damages on the liver and the brain. Frontiers in Pharmacology, 10.

Conclusão

Diante das evidências apresentadas, o canabidiol emerge como uma alternativa promissora no tratamento do Transtorno por Uso de Álcool, oferecendo tanto neuroproteção quanto modulação dos sistemas envolvidos no comportamento compulsivo e na dependência. Seus efeitos sobre o sistema endocanabinoide, aliados às suas propriedades ansiolíticas e hepatoprotetoras, o colocam como uma abordagem terapêutica inovadora. 

No entanto, é fundamental que mais estudos clínicos em humanos sejam realizados para validar esses achados pré-clínicos e estabelecer protocolos seguros e eficazes para o uso do CBD no manejo do TUA, possibilitando assim, uma nova fronteira no tratamento da dependência alcoólica. Nesse contexto, a WeCann desempenha um papel essencial ao fornecer conteúdos técnicos de qualidade, sempre baseados em rigor científico, contribuindo para a incorporação segura da cannabis medicinal na prática médica e promovendo uma abordagem mais assertiva e personalizada no manejo de pacientes portadores de TUA.

Referências

  1. Maciel, Luisa & Tractenberg, Saulo & Habigzang, Luísa & Wainer, Ricardo. (2013). Esquemas iniciais desadaptativos no transtorno por uso de álcool. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas. 9. 101-107. 10.5935/1808-5687.20130014. 
  2. American Psychiatric Association (APA) (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. (5 ed.) Porto Alegre: Artmed.
  3. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  4. Sagheddu, C., Muntoni, A. L, Pistis, M. & Melis, M. Endocannabinoid Signaling in Motivation, Reward, and Addiction. in International Review of Neurobiology vol. 125 257-302 (Elsevier, 2015). 
  5. García-Gutiérrez, M.S. et al. Role of Cannabinoid CB2 Receptor in Alcohol Use Disorders: From Animal to Human Studies. Int.J. Mol. Sci. 23, 5908 (2022).
  6. Paulus, V., Billieux, J, Benyamina, A. & Karila, L. Cannabidiol in the context of substance use disorder treatment: A systematic review. Addict. Bebav. 132, 107360 (2022).
  7. Navarrete, F, García-Gutiérrez, M. S., Gasparyan, A., Austrich-Olivares, A. & Manzanares, J. Role of Cannabidiol in the Therapeutic Intervention for Substance Use Disorders. Front. Pharmacol. 12, 626010 (2021).
  8. Hamelink C, Hampson A, Wink DA, Eiden LE, Eskay RL. Comparison of cannabidiol, antioxidants, and diuretics in reversing binge ethanol-induced neurotoxicity. J Pharmacol Exp Ther. 2005 Aug;314(2):780-8. doi: 10.1124/jpet.105.085779. Epub 2005 May 5. PMID: 15878999; PMCID: PMC4183207.
  9. Stevens L, Goudriaan AE, Verdejo-Garcia A, Dom G, Roeyers H, Vanderplasschen W. Impulsive choice predicts short-term relapse in substance-dependent individuals attending an in-patient detoxification programme. Psychol Med. 2015 Jul;45(10):2083-93. doi: 10.1017/S003329171500001X. Epub 2015 Feb 2. PMID: 25640022.
  10. Wang Y, Mukhopadhyay P, Cao Z, Wang H, Feng D, Haskó G, Mechoulam R, Gao B, Pacher P. Cannabidiol attenuates alcohol-induced liver steatosis, metabolic dysregulation, inflammation and neutrophil-mediated injury. Sci Rep. 2017 Sep 21;7(1):12064. doi: 10.1038/s41598-017-10924-8. PMID: 28935932; PMCID: PMC5608708.
  11. Viudez-Martínez A, García-Gutiérrez MS, Navarrón CM, Morales-Calero MI, Navarrete F, Torres-Suárez AI, Manzanares J. Cannabidiol reduces ethanol consumption, motivation and relapse in mice. Addict Biol. 2018 Jan;23(1):154-164. doi: 10.1111/adb.12495. Epub 2017 Feb 13. PMID: 28194850.
  12. De Ternay, J., Naassila, M., Nourredine, M., Louvet, A., Bailly, F., Sescousse, G., Maurage, P., Cottencin, O., Carrieri, P. M., & Rolland, B. (2019). Therapeutic prospects of cannabidiol for alcohol use disorder and alcohol-related damages on the liver and the brain. Frontiers in Pharmacology, 10. Disponível em: https://www.frontiersin.org/journals/pharmacology/articles/10.3389/fphar.2019.00627. DOI: 10.3389/fphar.2019.00627.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

Mantenha-se atualizado. Cadastre-se e receba conteúdos exclusivos e tecnicamente qualificados.


    Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

    Assine nossa
    
newsletter.

      Ao assinar, você concorda com a política de privacidade.

      Artigos relacionados