A osteoartrite (OA) é uma das condições articulares mais comuns e prevalentes, caracterizada pela degeneração da cartilagem e pela inflamação das articulações. Ela afeta milhões de pessoas ao redor do mundo e é uma das principais causas de dor crônica e limitação de movimentos em idosos. Os tratamentos convencionais, como analgésicos e anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), muitas vezes vêm acompanhados de efeitos colaterais que podem limitar sua eficácia e segurança a longo prazo. Nesse cenário, a cannabis tem se mostrado uma opção terapêutica promissora, oferecendo alívio para a dor e a inflamação sem os efeitos adversos associados a medicamentos tradicionais.
Osteoartrite
A osteoartrite é a doença articular mais prevalente, acometendo principalmente indivíduos acima dos 50 anos. Trata-se de uma condição degenerativa crônica caracterizada pela degradação progressiva da cartilagem articular, remodelação óssea subcondral, formação de osteófitos e inflamação sinovial. Clinicamente, manifesta-se por dor articular, rigidez matinal, limitação funcional e, em estágios avançados, deformidade articular. Os fatores de risco incluem idade avançada, predisposição genética, obesidade, lesões articulares prévias e sobrecarga mecânica.
A dor, principal queixa dos pacientes, é um fenômeno multifatorial que inclui componentes inflamatórios, nociceptivos e neuropáticos. Esses mecanismos frequentemente se sobrepõem, resultando em uma experiência dolorosa complexa e de difícil manejo. Além disso, a dor da OA é exacerbada por fatores biomecânicos, como instabilidade articular e alterações estruturais, o que reforça a necessidade de intervenções integradas e específicas.
Do ponto de vista terapêutico, o manejo da OA inclui medidas não farmacológicas, como fisioterapia, controle de peso e exercícios físicos, bem como intervenções farmacológicas. As opções mais comumente utilizadas incluem analgésicos simples, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), opioides e antidepressivos para dores neuropáticas. No entanto, essas abordagens apresentam limitações significativas, como eficácia insuficiente e alto risco de efeitos adversos, especialmente em pacientes que necessitam de uso prolongado. Cirurgias, como a artroplastia total de joelho ou quadril, são reservadas para casos avançados e refratários. Embora eficazes, apresentam riscos significativos, incluindo infecções, tromboembolismo, falha do implante e complicações anestésicas, além de uma recuperação prolongada que pode afetar a qualidade de vida desses pacientes.
Pesquisas recentes têm explorado o potencial do sistema endocanabinoide (SEC) no manejo da OA. Este sistema fisiológico, composto por receptores, ligantes endógenos e enzimas reguladoras, desempenha um papel central na modulação da dor e da inflamação. Evidências científicas apontam que os canabinoides, sejam fitocanabinoides naturais, como o canabidiol (CBD), ou moduladores sintéticos, podem atuar nos mecanismos multifatoriais da dor da OA, oferecendo um alívio mais abrangente e com menor incidência de efeitos adversos em comparação aos tratamentos convencionais. A introdução da cannabis medicinal no manejo da osteoartrite representa um avanço significativo, trazendo uma nova perspectiva para o tratamento dessa patologia.
Sistema Endocanabinoide e Osteoartrite
O sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial na regulação de diversos processos fisiopatológicos associados à osteoartrite, como controle da dor, modulação imunológica, preservação da cartilagem e homeostase articular. O SEC é composto pelos receptores canabinoides CB1 e CB2, endocanabinoides como anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG), além das enzimas responsáveis por sua síntese e degradação.¹
Os receptores CB2, particularmente expressos em células imunes, como macrófagos e células T, têm um papel destacado na OA ao reduzir a inflamação articular. A ativação desses receptores inibe a produção de moléculas pró-inflamatórias, como TNF-α e IL-6, e limita a infiltração de células imunes nas articulações.² Além disso, o SEC tem sido implicado na proteção contra a degradação da cartilagem, suprimindo a produção de metaloproteinases de matriz (MMPs) e promovendo a sobrevivência dos condrócitos.³
Estudos demonstraram que os níveis de endocanabinoides, como anandamida e 2-araquidonoilglicerol, estão significativamente elevados no líquido sinovial de pacientes com osteoartrite em comparação a indivíduos saudáveis. Essa descoberta sugere que o sistema endocanabinoide é supraregulado em resposta à inflamação crônica e à dor associadas à doença, atuando como um mecanismo compensatório natural.4 A ativação dos receptores canabinoides CB1, amplamente expressos em fibras nervosas sensoriais presentes na articulação, desempenha um papel essencial na redução da percepção da dor ao modular a liberação de neurotransmissores relacionados à sensibilização nociceptiva.4
Além disso, a ativação dos receptores CB1 nos terminais nervosos pode inibir a transmissão dos sinais de dor no sistema nervoso central, diminuindo a hiperalgesia articular característica da OA. Esse efeito analgésico é particularmente relevante em fases mais avançadas da doença, onde a dor se torna um sintoma debilitante e de difícil controle com os tratamentos convencionais.¹ Assim, a regulação do SEC nos tecidos articulares evidencia seu papel na manutenção da homeostase articular e reforça seu potencial como alvo terapêutico no manejo da dor da OA.
Pesquisas em modelos experimentais de OA revelaram que a expressão dos receptores canabinoides CB1, CB2 e do receptor vaniloide TRPV1 é significativamente aumentada nos estágios iniciais da doença. Esse aumento parece ser uma resposta adaptativa inicial do SEC frente à inflamação articular local. A ativação desses receptores está associada à modulação da inflamação, redução da sensibilização nociceptiva e potencial proteção contra danos estruturais na articulação.5
As evidências científicas demonstram o SEC como um alvo terapêutico promissor para a OA. Fitocanabinoides, como o THC e o CBD, têm demonstrado efeitos analgésicos e anti-inflamatórios por meio da interação com os receptores CB1 e CB2, além de apresentarem propriedades antioxidantes e neuroprotetoras. Essas características reforçam o potencial dos canabinoides como parte de uma abordagem terapêutica integrada para o manejo da OA, especialmente em pacientes que não respondem bem a tratamentos convencionais.
Para conhecer mais sobre o Sistema Endocanabinoide acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide?
Evidências científicas
Estudos pré-clínicos em modelos animais mostraram que o sistema endocanabinoide desempenha um papel crucial na modulação da dor e da inflamação associada à OA. Receptores CB1 e CB2 foram identificados em estruturas articulares, como o tecido sinovial e os terminais nervosos localizados nas articulações. Em modelos experimentais de OA, a ativação local de receptores CB1 e CB2 demonstrou reduzir significativamente tanto a dor quanto os marcadores inflamatórios nas articulações afetadas. Agonistas sintéticos específicos, como o ACEA (um agonista seletivo do receptor CB1) e o A-796260 (um agonista seletivo do receptor CB2), apresentaram efeitos antinociceptivos robustos, diminuindo a intensidade da dor associada à OA e inibindo a liberação de mediadores inflamatórios nas articulações. Esses achados reforçam a importância de estratégias terapêuticas direcionadas aos receptores canabinoides.7,8
Um ensaio clínico randomizado (ECR) duplo-cego foi conduzido em 2022, na Dinamarca, com o objetivo de avaliar a eficácia do canabidiol isolado no manejo da dor em pacientes diagnosticados com osteoartrite das mãos ou artrite psoriática. O estudo incluiu 129 participantes, que foram divididos em dois grupos: um recebeu doses fixas de 20 a 30 mg de CBD administrado por via oral diariamente, enquanto o outro grupo recebeu placebo. Após 12 semanas de tratamento, aproximadamente 20% dos pacientes de ambos os grupos relataram redução na intensidade da dor, mas não houve diferenças estatisticamente significativas entre os grupos CBD e placebo, indicando que o CBD isolado não apresentou eficácia superior ao placebo no alívio da dor nessas condições.9
A ausência de efeitos significativos pode estar relacionada à falta de titulação de dose individualizada. A dosagem fixa de 20 a 30 mg pode ter sido inadequada para muitos pacientes, especialmente considerando as diferenças individuais na farmacocinética e na resposta terapêutica ao CBD. Além disso, a duração de 12 semanas, embora adequada para avaliar efeitos de curto a médio prazo, pode não ter sido suficiente para observar benefícios mais duradouros em condições crônicas como OA ou artrite psoriática.
Uma revisão sistemática analisou a eficácia da cannabis no manejo da dor lombar crônica, abrangendo quatro ensaios clínicos randomizados com um total de 110 participantes. Os resultados demonstraram o potencial terapêutico significativo dos canabinoides, com três estudos relatando uma redução estatisticamente significativa na intensidade da dor nos grupos tratados em comparação aos controles. Embora um dos estudos não tenha identificado benefícios, o tamanho reduzido da amostra (sete pacientes) pode ter comprometido a significância estatística, indicando que resultados mais robustos poderiam ser alcançados em estudos com maior número de participantes.10
Os canabinoides analisados, incluindo nabilona e dronabinol, administrados por via oral, mostraram eficácia considerável no manejo da dor neuropática. Além disso, a administração por inalação foi apontada como promissora, permitindo a titulação das doses pelo paciente, o que pode potencialmente melhorar a eficácia e a adesão ao tratamento. No entanto, preocupações com os riscos respiratórios associados ao uso inalatório favorecem as formulações orais como a via preferencial. O tempo de acompanhamento nos estudos variou de quatro semanas a seis meses, sem relatos de eventos adversos graves associados ao uso de canabinoides. Esse perfil de segurança, aliado à eficácia demonstrada, reforça o potencial terapêutico da cannabis como uma opção analgésica relevante.10
Heineman et al. realizaram um ensaio clínico randomizado e duplo-cego em 2022, nos Estados Unidos, com o objetivo de avaliar os efeitos da aplicação tópica de canabidiol isolado no manejo da dor e incapacidade em pacientes com osteoartrite da articulação da base do polegar. O estudo incluiu 18 participantes, que foram submetidos a um protocolo cruzado: cada um recebeu, de forma alternada, 1 mL de uma loção contendo 6,2 mg/mL de CBD ou um placebo (manteiga de karité isolada), aplicado duas vezes ao dia no polegar afetado, por um período de duas semanas para cada tratamento.11
Os resultados demonstraram que, após duas semanas de uso do CBD, houve melhorias significativas em vários desfechos clínicos, incluindo a redução da intensidade da dor avaliada por escalas de autorrelato e a melhora na funcionalidade da articulação afetada. Essas melhorias foram superiores às observadas no grupo placebo, indicando um efeito analgésico e anti-inflamatório potencial do CBD quando administrado topicamente. Além disso, o tratamento foi bem tolerado, sem relatos de eventos adversos relevantes, o que reforça sua segurança no manejo da OA localizada. Este estudo destaca o potencial do CBD como uma alternativa terapêutica não invasiva para o alívio da dor e melhora da funcionalidade articular em condições osteoartríticas específicas.11
Conclusão
O uso de cannabis medicinal no manejo da osteoartrite apresenta-se como uma abordagem terapêutica promissora, especialmente frente às limitações dos tratamentos convencionais. Evidências científicas destacam a relevância do sistema endocanabinoide na modulação da dor e inflamação características da doença, apontando fitocanabinoides como o THC e o CBD como potenciais aliados no alívio dos sintomas. Embora estudos clínicos ainda enfrentem desafios, como a necessidade de ajustes individualizados de dose e protocolos mais robustos, os avanços na compreensão do papel dos canabinoides abrem novas perspectivas para tratamentos mais seguros e eficazes, trazendo esperança para pacientes que sofrem com essa patologia.
Manter-se atualizado sobre o uso medicinal da cannabis e os avanços relacionados é fundamental para que médicos possam oferecer as melhores opções terapêuticas aos pacientes com osteoartrite. A WeCann, referência internacional em educação médica continuada, disponibiliza recursos técnicos e informações de alta qualidade sobre a aplicação da cannabis medicinal na prática médica. Esses materiais ajudam a comunidade médica a tomar decisões baseadas em evidências científicas, permitindo a implementação de tratamentos personalizados e seguros, alinhados às descobertas mais recentes, com o objetivo de oferecer melhores resultados para o paciente.
Referências
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