A enxaqueca é uma condição neurológica crônica caracterizada por cefaleias recorrentes de intensidade moderada a grave, frequentemente acompanhadas por náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a enxaqueca é a sexta doença mais incapacitante do mundo, com uma prevalência global significativa. Nos últimos anos, a Cannabis medicinal emergiu como uma alternativa terapêutica promissora para o manejo da enxaqueca, especialmente em pacientes que não respondem adequadamente aos tratamentos convencionais. Neste post, vamos explorar o uso da Cannabis medicinal no tratamento da enxaqueca, revisando as evidências científicas atuais.
Enxaqueca: Fases e Mecanismos Fisiopatológicos:
A enxaqueca é uma condição neurológica complexa que se desenvolve em várias fases distintas, cada uma com seus próprios sintomas característicos e implicações fisiopatológicas. Vamos explorar as quatro fases da enxaqueca – prodrômica, aura, ataque e pós-drômica – e discutir os mecanismos subjacentes que contribuem para o desenvolvimento desta condição debilitante.
- Estágio Prodrômico: Este estágio inicial pode durar de horas a dias antes da dor de cabeça começar. Os sintomas incluem fotofobia, fadiga, mudanças de humor (como irritabilidade ou depressão), rigidez muscular (especialmente no pescoço), desejo por certos alimentos, e sede intensa. Esses sinais antecipatórios podem variar entre os pacientes, mas são consistentes em cada indivíduo.
- Estágio de Aura: O estágio de aura é experimentado por cerca de 25% dos pacientes com enxaqueca. Os sintomas típicos incluem distúrbios visuais (como flashes de luz, pontos cegos e linhas em ziguezague), sensações de formigamento ou dormência, geralmente começando em uma mão e se espalhando para o braço e face, dificuldades na fala e alterações sensoriais como mudanças nos odores e paladares. Esse estágio dura de 20 a 60 minutos e precede ou acompanha a dor de cabeça.
- Fase de Ataque: Caracterizada por uma dor de cabeça pulsátil, que é unilateral em aproximadamente 60% dos casos. A dor pode variar de moderada a severa e geralmente é agravada por atividades físicas de rotina. É comumente acompanhada de náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia. Este estágio pode durar de 4 a 72 horas, se não tratado de forma eficaz.
- Estágio Pós-drômico: Após a fase de ataque, os pacientes frequentemente experimentam uma sensação de exaustão física e mental, com confusão, letargia e dor muscular. Este período de recuperação, que pode durar várias horas a dias, é frequentemente descrito como uma “ressaca da enxaqueca”.
Acredita-se que a enxaqueca seja causada pela ativação anormal do sistema trigeminovascular, que envolve os nervos trigêmeos e os vasos sanguíneos das meninges, resultando em processos de vasodilatação e neuroinflamação. A liberação de substâncias neuroquímicas, como serotonina e peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP), desempenha um papel crucial na mediação da dor e dos sintomas associados à enxaqueca.¹
Atualmente, não existe cura para a enxaqueca, mas diversos medicamentos estão disponíveis para alívio sintomático. Estes incluem analgésicos, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), antieméticos e medicamentos específicos para enxaqueca, como triptanos e antagonistas de receptores de CGRP. Apesar disso, a terapia convencional muitas vezes falha, e os pacientes necessitam de tratamentos combinados e preventivos, como o uso de betabloqueadores, anticonvulsivantes e antagonistas de serotonina, para um gerenciamento mais eficaz e redução da frequência e severidade das crises. Mesmo assim, a terapia pode não ser eficaz e apresentar diversos efeitos colaterais. Assim, a cannabis surge como uma alternativa promissora. Como já discutimos em outros posts, os canabinoides podem modular a neurotransmissão e reduzir a neuroinflamação, sendo eficazes para tratar dores crônicas e com mínimos e toleráveis efeitos colaterais.
Como a Cannabis age na enxaqueca
O uso medicinal da Cannabis para o tratamento de cefaleias tem uma longa história, com evidências etnobotânicas e relatos anedóticos sugerindo seu potencial analgésico. Recentemente, a pesquisa científica tem focado no Sistema Endocanabinoide (SEC), um sistema crucial de sinalização celular envolvido na modulação da dor, inflamação e homeostase neurológica.
O SEC é composto por receptores canabinoides, principalmente CB1 e CB2, e ligantes endógenos, como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonilglicerol (2-AG). Esses componentes regulam várias funções fisiológicas essenciais. Os receptores CB1 são predominantemente encontrados no sistema nervoso central e são responsáveis pela modulação da dor e inflamação. Já os receptores CB2 estão mais presentes no sistema imunológico e em células periféricas.²
Evidências científicas indicam que pacientes com enxaqueca crônica apresentam níveis reduzidos de anandamida (AEA), um dos principais endocanabinoides do corpo humano, facilitando assim a percepção da dor.³ A suplementação com CBD pode ajudar a restaurar o equilíbrio do SEC, aumentando os níveis de anandamida e reduzindo a frequência e intensidade das crises álgicas. O CBD tem mostrado um potencial promissor no tratamento da enxaqueca ao modular o SEC, essencial para a homeostase do organismo.
Além disso, o SEC interage diretamente com o Sistema Trigeminovascular (ST) que é fundamental na patogênese das crises de enxaqueca. Essa interação indica que o canabidiol pode oferecer uma alternativa terapêutica segura e eficaz para o manejo dos sintomas dessa condição debilitante. Os fitocanabinoides como o THC e o CBD presentes na Cannabis também interagem com o SEC. O THC se liga diretamente aos receptores CB1, produzindo efeitos analgésicos e anti-inflamatórios, enquanto o CBD modula indiretamente o SEC, aumentando os níveis de endocanabinoides endógenos, como a anandamida (AEA), e interagindo com outros receptores e canais iônicos, incluindo os receptores de serotonina (5-HT1A) e os canais TRPV1, ambos envolvidos na regulação da dor. Essas ações sinérgicas e multimodais dos canabinoides suportam seu potencial terapêutico no tratamento da enxaqueca.
Evidências clínicas do uso da cannabis no tratamento da Enxaqueca
No final do século XIX e início do século XX a cannabis era frequentemente prescrita por médicos para o tratamento sintomático e preventivo de cefaleias. Mas foi em 1985, que Volfe e colaboradores demonstraram que o THC, inibiu significativamente a liberação plaquetária de serotonina durante crises de enxaqueca, um efeito não observado fora das crises.
Estudos recentes têm aprofundado a investigação sobre a eficácia da cannabis no tratamento da enxaqueca. Um estudo de 2012 comparou a nabilona (0,5 mg/dia) com ibuprofeno em pacientes com cefaleia por uso excessivo de medicamentos. A nabilona mostrou-se superior na redução da intensidade da dor e na diminuição do consumo diário de analgésicos, além de reduzir a dependência de medicamentos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.4
Outro estudo significativo realizado em 2017 comparou extratos de cannabis com alto teor de THC (19% THC) e alto teor de CBD (<0,4% THC; 9% CBD) com amitriptilina e verapamil ao longo de três meses. Os resultados indicaram que a formulação à base de cannabis reduziu a dor em 55% dos casos e ofereceu um benefício terapêutico de 40,4% no tratamento profilático, comparável ao da amitriptilina.5 Em pacientes com cefaleia em salvas, a cannabis moderadamente reduziu o número e a gravidade das crises, especialmente em indivíduos com histórico de enxaqueca na infância.
Conclusão
A enxaqueca é uma condição de alta prevalência e com um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes, muitas vezes não respondendo adequadamente aos tratamentos convencionais disponíveis. A cannabis medicinal emerge como uma alternativa viável e promissora para o tratamento da enxaqueca, com potencial para melhorar substancialmente a qualidade de vida e reduzir a dependência de medicamentos tradicionais. À medida que a pesquisa e os ensaios clínicos continuam avançando, espera-se que novas evidências fortaleçam ainda mais o seu papel terapêutico no manejo dessa condição clínica desafiadora. Nós da WeCann estamos comprometidos em fornecer suporte e orientação tecnicamente qualificados à comunidade médica, ancorados na vasta experiência prática do nosso corpo técnico e na sólida abordagem baseada em evidências científicas, caminho fundamental para os profissionais médicos que desejam explorar os benefícios dos medicamentos à base de cannabis na prática médica
Referências
- MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Pertwee RG. The diverse CB1 and CB2 receptor pharmacology of three plant cannabinoids: delta9-tetrahydrocannabinol, cannabidiol and delta9-tetrahydrocannabivarin. Br J Pharmacol. 2008 Jan;153(2):199-215. doi: 10.1038/sj.bjp.0707442. Epub 2007 Sep 10. PMID: 17828291; PMCID: PMC2219532.
- GRECO, R.; DEMARTINI, C.; ZANABONI, A. M.; PIOMELLI, D.; TASSORELLI, C. Endocannabinoid System and Migraine Pain: An Update. *Frontiers in Neuroscience*, [S.l.], v. 12, p. 172, 2018. DOI: 10.3389/fnins.2018.00172.
- Pini, L. A. et al. Nabilone for the treatment ofmedication overuse headache: results of a preliminarydouble-blind, active-controlled, randomized trial. J.Headache Pain 13, 677–684 (2012).
- Nicolodi, M., Sandoval, V. & Torrini, A. Therapeuticuse of cannabinoids-dose finding, effects and pilotdata of effects in chronic migraine and clusterheadache. Eur. J. Neurol. 24, 123–444 (2017).