Início do uso da Cannabis para fins medicinais: Uma perspectiva histórico-científica

Publicado em 23/12/25 | Atualizado em 23/12/25 | Leitura: 8 minutos

CanabinoidesCannabis como Medicamento

A Cannabis Sativa possui uma das mais extensas e ininterruptas histórias de uso pela humanidade, acompanhando a evolução humana por cerca de 12.000 anos, desde o período neolítico,. Para a prática clínica moderna, é fundamental adotar uma perspectiva histórica que reconheça a longa trajetória da planta como fármaco, um período que excede em muito o hiato de proibicionismo do século XX,.

A elucidação do Sistema Endocanabinoide (SEC) e o aumento exponencial das publicações científicas recentes apenas validam a necessidade de resgatar este conhecimento milenar. No post de hoje, vamos explorar uma perspectiva histórica e científica do uso da cannabis medicinal.

A Cannabis na Medicina da Antiguidade Clássica

O uso da cannabis como agente terapêutico está documentado nas fundações da medicina e farmacologia de diversas civilizações:

  1. China Antiga (2737 a.C.): Os primeiros registros atribuídos ao imperador Shen Neng descrevem a prescrição de chá de cannabis para o tratamento de condições como gota, reumatismo, malária e até memória fraca. Textos antigos, como o livro chinês Pen Tsao (a partir de 2700 a.C.), já relataram seu uso para dores articulares e cólicas menstruais.¹
  2. Egito e Oriente Médio: O Papiro de Ebers (1550 a.C.) registra a presença da cannabis em mais de 700 formulações médicas, sendo indicada para dor, transtornos emocionais e “bem-estar”. No Oriente Médio, textos médicos muçulmanos (por volta de 1.000 d.C.) descreveram o uso da cannabis como diurético, antiespasmódico, analgésico, anti-inflamatório e ansiolítico.²
  3. Fundamentos da Farmacologia: O médico greco-romano Pedânio Dioscórides, considerado o fundador da farmacologia, incluiu a cannabis medicinal em sua obra “De Materia Medica” (Ano 70 d.C.), indicando-a como um tratamento eficaz para inflamações e dores articulares.²

A Reintrodução e a Validação Moderna no Ocidente

A aceitação da cannabis na medicina ocidental ganhou força nos séculos seguintes. No Brasil colonial, a planta foi trazida por escravos africanos e seu cultivo chegou a ser estimulado pela coroa portuguesa. O ponto de virada na medicina moderna ocorreu em 1839 na Índia, quando o médico do exército britânico, William O’Shaughnessy, administrou com sucesso uma tintura de cannabis para cessar convulsões contínuas em uma criança. O’Shaughnessy concluiu que a cannabis medicinal era um anticonvulsivante de maior valor, e sua publicação levou o cânhamo de volta à Europa como um fármaco inovador.³

Em pouco tempo, a cannabis consolidou-se como medicamento nos EUA e na Europa, sendo descrita pela primeira vez na Farmacopeia dos Estados Unidos em 1850. Inclusive, em 1889, um artigo na revista The Lancet descreveu a aplicação da Cannabis Sativa L. para o tratamento da dependência ao ópio, atuando como antiemético e reduzindo o desejo pela substância.4

Formulação e aplicações da cannabis medicinal
Formulação e aplicações da cannabis medicinal

Proibicionismo  e as Descobertas-Chave

A popularidade da cannabis entre minorias socialmente discriminadas no início do século XX levou a uma visão preconceituosa por parte da elite moralista, que culminou na restrição federal nos EUA em 1937 (Marihuana Tax Act) e sua retirada da Farmacopeia em 1942.4

Em 1961, a ONU classificou amplamente as drogas como substâncias prejudiciais, sem diferenciar adequadamente entre usos recreativos e medicinais. Essa abordagem restritiva acabou suprimindo o uso terapêutico da cannabis e afastando pacientes, clínicos e pesquisadores de seu potencial medicinal.4

Apesar do forte proibicionismo, a ciência continuou a avançar:

  1. Isolamento dos Canabinoides: Em 1963 e 1964, o Prof. Dr. Raphael Mechoulam, na Universidade Hebraica de Jerusalém, isolou o canabidiol (CBD) e, posteriormente, o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC).²
  2. Primeiro Estudo Clínico com CBD (Brasil): O grupo do Prof. Dr. Elisaldo Carlini (UNIFESP) realizou, em 1980/1981, o primeiro estudo duplo-cego sobre o uso do canabidiol isolado em pacientes epilépticos refratários, comprovando sua eficácia no controle de crises convulsivas.²
  3. Descoberta do Sistema Endocanabinoide (SEC): A elucidação do SEC ocorreu entre 1999 e 2000, após a descoberta dos canabinoides endógenos (endocanabinoides) — como a anandamida e o 2-araquidonilglicerol (2-AG) — e dos receptores CB1 e CB2.²

 

Principais perspectivas históricas da Cannabis Medicinal.
Principais perspectivas históricas da Cannabis Medicinal.

O papel central do Sistema Endocanabinoide

A descoberta do SEC é fundamental para compreender o potencial terapêutico da Cannabis Sativa. Esse sistema, presente em todos os vertebrados, é caracterizado como o Guardião da Homeostase, definido por funções centrais como “sono, regulação do humor e imunidade”.¹

O SEC é composto pelos receptores CB1 (abundante no Sistema Nervoso Central e responsável pelos efeitos psicotrópicos do THC) e CB2 (principalmente associado à função imunológica e encontrado sobre-ativado em contextos patológicos).¹

A presença do SEC em todos os sistemas anatômicos — sistema nervoso, órgãos internos, tecidos conjuntivos e células imunológicas — explica a ampla gama de aplicações potenciais da planta na modulação de processos fisiopatológicos. Dispor de uma ferramenta farmacológica capaz de modular tantas funções é, inegavelmente, uma oportunidade terapêutica singular.

Para saber mais sobre o sistema endocanabinoide, acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide? – WeCann Academy

Conclusão

A trajetória da cannabis como agente terapêutico evidencia que seu uso clínico não é uma inovação recente, mas um retorno às origens da própria medicina. Dos registros milenares na China e no Egito às descrições clássicas de Dioscórides, a planta ocupou durante séculos um papel legítimo na prática médica, sendo reconhecida por suas propriedades analgésicas, anti-inflamatórias, antiespasmódicas e neuromoduladoras.

O século XX marcou um ponto de inflexão, com políticas proibicionistas que interromperam seu desenvolvimento científico e afastaram o olhar clínico de uma ferramenta historicamente valiosa. No entanto, as descobertas de Mechoulam, os estudos pioneiros conduzidos no Brasil e, sobretudo, a elucidação do Sistema Endocanabinoide permitiram restabelecer a cannabis no centro da discussão biomédica contemporânea.

Hoje, com o crescimento exponencial das pesquisas e a consolidação do SEC como um dos principais eixos regulatórios da homeostase, torna-se evidente que não estamos apenas reintroduzindo uma planta milenar, mas reconectando a medicina moderna a um conhecimento que a ciência finalmente consegue explicar com profundidade.

Reconhecer esse caminho histórico-científico é essencial para que profissionais da saúde adotem uma abordagem científica e tecnicamente embasada. A cannabis medicinal, quando compreendida sob a ótica do SEC, deixa de ser um tema controverso e torna-se uma oportunidade terapêutica robusta.

Assim, resgatar o passado não é olhar para trás, mas ampliar as possibilidades de cuidado que a medicina pode oferecer daqui em diante.

Descubra como o Tratado de Medicina Endocanabinoide pode transformar sua prática clínica.

O crescente interesse pela cannabis medicinal reflete um movimento global de resgate científico e clínico de um conhecimento que, por séculos, fez parte das bases da medicina. Na contemporaneidade, compreender a farmacologia da Cannabis Sativa e o funcionamento do Sistema Endocanabinoide tornou-se uma competência essencial para médicos que desejam atuar com rigor técnico frente aos desafios da prática clínica moderna.

Esse resgate não se trata apenas de revisitar o passado, mas de integrar evidências recentes à compreensão histórica de uma planta que sempre exerceu papel terapêutico relevante. A elucidação do SEC, a validação de canabinoides em ensaios clínicos e o avanço das pesquisas translacionais recolocam a cannabis no centro das discussões sobre modulação neuroimune, dor crônica, distúrbios do humor, sono e outras condições prevalentes.

Nesse contexto, a WeCann se apresenta como uma parceira estratégica para a comunidade médica ao fornecer formação científica, atualização contínua e suporte técnico para a incorporação segura e embasada das terapias canabinoides. Entre seus recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, um compêndio contemporâneo que sintetiza o estado da arte do conhecimento — desde os fundamentos histórico-científicos até a aplicabilidade clínica baseada em evidências.

Para o profissional que deseja atuar de forma ética, centrada no paciente e alinhada às melhores práticas clínicas, dominar esse corpo de conhecimento é mais do que um diferencial: é um passo essencial para integrar, com segurança e precisão, terapias à base de cannabis medicinal.

Referências

  1. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Pierro Neto PA, Pierro LMC, Fernandes ST. Cannabis: 12,000 years of experiences and prejudices. BrJP [Internet]. 2023;6:80–4. Available from: https://doi.org/10.5935/2595-0118.20230055-en
  3. O’Shaughnessy WB. On the Preparations of the Indian Hemp, or Gunjah. Prov Med J Retrosp Med Sci. 1843;5(123):363-9.
  4. Crocq, Marc-Antoine. “History of cannabis and the endocannabinoid system
.” Dialogues in clinical neuroscience vol. 22,3 (2020): 223-228. doi:10.31887/DCNS.2020.22.3/mcrocq

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