O Transtorno por Uso de Opioides (TUO) é uma condição grave de saúde pública que afeta milhões de indivíduos em todo o mundo, sendo caracterizada pelo uso compulsivo e descontrolado de opioides, como morfina, heroína e analgésicos opioides prescritos, incluindo oxicodona e fentanil. Esse transtorno está fortemente associado a altas taxas de dependência, episódios frequentes de overdose e significativa mortalidade, desafiando as abordagens terapêuticas atuais, que muitas vezes falham em oferecer uma solução de longo prazo para a abstinência e recuperação.
A crise global dos opioides, exacerbada pelo uso indevido de opioides prescritos e pela crescente disponibilidade de opioides sintéticos potentes, continua a exigir novas abordagens terapêuticas. Nesse contexto, a cannabis tem emergido nos últimos anos como uma alternativa potencialmente eficaz e segura, tanto no manejo da dor, quanto como coadjuvante no tratamento da dependência de opioides. Suas propriedades analgésicas e moduladoras do sistema endocanabinoide, combinadas a um perfil de segurança relativamente superior em comparação com os opioides tradicionais, fazem dela uma candidata promissora para ser incorporada como parte de estratégias terapêuticas multimodais no tratamento do TUO. No post de hoje iremos explorar como a Cannabis pode ser usada no tratamento do transtorno por uso de opioides.
Crise dos Opioides
A crise dos opioides teve início no final dos anos 1990, com o uso generalizado de opioides prescritos, como oxicodona e fentanil, o que levou a uma epidemia de dependência e overdoses, especialmente nos Estados Unidos. Esse problema foi amplificado por campanhas de marketing agressivas das indústrias farmacêuticas, que minimizaram os riscos de dependência, resultando em um aumento significativo de prescrições. Como consequência, o transtorno por uso de substâncias (TUS) e, particularmente, o transtorno por uso de opioides atingiu proporções alarmantes, gerando impactos devastadores na saúde pública.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde e Uso de Drogas (National Survey of Drug Use and Health, NSDUH) de 2021, mais de 46 milhões de pessoas nos EUA com 12 anos ou mais (uma em cada sete) apresentaram TUS no ano anterior.¹ A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 500.000 pessoas morrem anualmente por causas relacionadas ao TUS, incluindo overdoses e complicações associadas ao uso prolongado de opioides.²
Nos últimos anos, o agravamento dessa crise está ligado ao uso disseminado de fentanil, um opioide sintético extremamente potente. Nos EUA, o fentanil tem sido responsável por um número crescente de overdoses fatais, frequentemente misturado a outras drogas, como cocaína, sem o conhecimento dos usuários. No Brasil, embora o cenário de abuso de opioides seja menos prevalente que nos EUA, alguns casos recentes foram identificados pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Universidade Estadual de Campinas revelaram a presença de fentanil no sangue de usuários que desconheciam seu consumo, indicando que a substância foi misturada a drogas ilícitas, como cocaína e canabinoides sintéticos.³
Os tratamentos convencionais para o TUO incluem a terapia com agonistas opioides, como metadona e buprenorfina, que têm como objetivo substituir o opioide de abuso, aliviando os sintomas de abstinência e reduzindo o risco de overdose. No entanto, essas terapias enfrentam desafios, como o risco de manutenção da dependência, a necessidade de acompanhamento médico rigoroso e o estigma social associado ao seu uso. Nesse cenário, a Cannabis tem emergido como uma potencial alternativa terapêutica. Suas propriedades analgésicas e seu perfil de segurança favorável a tornam uma opção promissora para o manejo da dor e dos sintomas de abstinência, além de potencialmente reduzir a necessidade de opioides em tratamentos prolongados.
Papel da Cannabis no tratamento do TUO
A cannabis tem atraído crescente interesse como uma abordagem terapêutica adjuvante no manejo da dor crônica e no tratamento do transtorno por uso de opioides. Sua relevância reside na interação complexa de seus principais componentes, como o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC), com o sistema endocanabinoide e os receptores opioides do sistema nervoso central. Essas interações sugerem um potencial para reduzir a dependência de opioides e aliviar os sintomas de abstinência, oferecendo uma alternativa segura e eficaz para o manejo da dor e do TUO.
A analgesia eficaz proporcionada pelos opioides tem historicamente consolidado seu papel no tratamento da dor aguda e crônica. No entanto, os canabinoides, como o THC e o CBD, também apresentam propriedades analgésicas significativas. A interação entre opioides e canabinoides resulta em um efeito sinérgico que pode amplificar os efeitos de analgesia, potencialmente permitindo a redução das doses de opioides necessárias para alcançar o controle da dor, minimizando, assim, o risco de dependência e efeitos adversos associados.
O THC, o principal constituinte psicotrópico da cannabis, interage predominantemente com os receptores CB1, localizados no sistema nervoso central, e CB2, que se encontram nas células imunes. Essas interações modulam diretamente a nocicepção e a resposta inflamatória. Por outro lado, o CBD exerce seus efeitos analgésicos e ansiolíticos por meio de mecanismos indiretos, como a modulação de receptores serotoninérgicos (5-HT1A), além de atuar no receptor TRPV1 (receptor vaniloide), que está envolvido na regulação da dor e da inflamação. A coadministração de canabinoides com opioides pode, portanto, não apenas potencializar a analgesia, mas também reduzir as doses de opioides requeridas, promovendo um perfil de segurança mais favorável para pacientes com dor crônica.
Além disso, a interação entre canabinoides e opioides tem despertado crescente interesse devido à sinergia terapêutica observada entre essas substâncias. O canabidiol e o tetraidrocanabinol podem atuar como moduladores alostéricos nos receptores opioides μ e Δ. Essa modulação alostérica permite que os canabinoides potencializem os efeitos analgésicos dos opioides enquanto reduzem o risco de toxicidade associado ao uso prolongado ou em altas doses dessas substâncias. Além disso, os canabinoides possuem mecanismos analgésicos próprios, que incluem a ativação de receptores canabinoides no sistema nervoso central e periférico, bem como a regulação de vias inflamatórias e neuromoduladoras. Essa ação combinada não apenas melhora o controle da dor, mas também pode reduzir a necessidade de altas doses de opioides, diminuindo os riscos de dependência e os efeitos adversos associados.
Para saber mais do papel da Cannabis no tratamento da Dor Crônica acesse: Cannabis no manejo da Dor Crônica – WeCann Academy
Pacientes com TUO frequentemente enfrentam sintomas de abstinência incapacitantes, como ansiedade, insônia, náuseas e dores musculares difusas, que podem agravar a progressão do transtorno e dificultar a adesão ao tratamento. O CBD, em particular, tem demonstrado propriedades ansiolíticas, anticonvulsivantes e antipsicóticas, o que o torna uma intervenção promissora para o manejo desses sintomas.4
Evidências Científicas
Um ECR duplo-cego conduzido por Bisaga et al. (2015), com 60 indivíduos diagnosticados com TUO. Desses, 40 receberam dronabinol, uma formulação oral sintética de THC (30 mg/dia) e 20 receberam placebo, durante oito semanas. Os resultados mostraram que o grupo que recebeu dronabinol experimentou uma gravidade de abstinência significativamente menor em comparação ao grupo placebo. Contudo, a análise post hoc revelou que, independentemente do grupo de tratamento, os participantes que consumiram cannabis durante o estudo tinham maior probabilidade de concluir o tratamento e relataram menores índices de insônia e ansiedade.5
Em um estudo mais recente, Hurd et al. (2019) realizaram um ensaio clínico randomizado duplo-cego que investigou os efeitos do canabidiol em doses de 400 mg ou 800 mg por dia, tanto em um regime de tratamento de curto prazo (três dias consecutivos), quanto em um acompanhamento prolongado (sete dias após a administração). Os resultados demonstraram uma redução significativa na fissura e na ansiedade em indivíduos abstinentes de opioides quando comparados ao grupo placebo.6
Além dessas melhorias, o tratamento com CBD também levou à diminuição de reações fisiológicas induzidas por estímulos, incluindo a frequência cardíaca e os níveis de cortisol na saliva. Um aspecto particularmente interessante foi a duração dos efeitos terapêuticos, já que, uma semana após a última dose de CBD, as medidas ainda apresentavam diferenças estatisticamente significativas em relação ao placebo. Esses achados reforçam o potencial do CBD como uma opção terapêutica promissora para o tratamento do transtorno por uso de opioides.6
De Aquino et al. (2023) publicaram recentemente os resultados de um ensaio clínico randomizado duplo-cego que investigou os efeitos agudos do dronabinol, administrado em doses de 10 ou 20 mg, em 25 indivíduos sob tratamento com metadona para o TUO. O estudo avaliou diversos parâmetros, incluindo a sensibilidade à dor, tanto de forma experimental quanto auto-relatada, o potencial de abuso, a performance cognitiva e os efeitos fisiológicos associados ao tratamento. Os achados indicaram que o dronabinol é seguro e bem tolerado, sem apresentar interações com qualquer dose de metadona. Curiosamente, as medidas de sensibilidade à dor auto-relatadas mostraram que a dose de 10 mg de dronabinol proporcionou alívio superior ao observado com a dose de 20 mg, enquanto as demais avaliações não revelaram diferenças significativas entre as doses.7
Um estudo de coorte realizado em Israel, com 3.000 pacientes oncológicos que sofriam de dor crônica, evidenciou o impacto significativo da cannabis medicinal no manejo da dor e na redução do uso de opioides. Mais de 36% dos pacientes que iniciaram a terapia com cannabis relataram uma diminuição ou completa interrupção do uso de opioides, destacando o potencial dos canabinoides em minimizar a dependência desses analgésicos potentes, frequentemente associados a diversos efeitos adversos.9
Conclusão
A cannabis surge como uma alternativa promissora no tratamento do transtorno por uso de opioides, apresentando propriedades terapêuticas que podem complementar as abordagens convencionais. A evidência crescente, proveniente de ensaios clínicos randomizados, indica que tanto o CBD quanto o THC oferecem alívio significativo dos sintomas de abstinência, ansiedade e dor, com um perfil de segurança superior ao dos opioides tradicionais.
Esses dados reforçam a necessidade de uma reavaliação das estratégias de tratamento do TUO, incorporando a cannabis como uma opção viável e eficaz. A busca por soluções inovadoras é essencial para enfrentar a crise global dos opioides, e a cannabis se destaca como uma aliada importante na promoção de uma abordagem mais segura e eficaz para o manejo dessa condição desafiadora.
Nesse cenário, é crucial que os médicos busquem se manter atualizados através de fontes confiáveis sobre o uso da cannabis medicinal, considerando o impacto significativo dessa planta na qualidade de vida dos pacientes. A WeCann se destaca como uma referência internacional em educação nesse campo, oferecendo informações sobre cannabis medicinal sustentadas por evidências científicas e, auxiliando a comunidade médica na tomada de decisões informadas e responsáveis. Por meio de conteúdos técnicos de alta qualidade, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a WeCann capacita os médicos a aprofundar seus conhecimentos e a aplicar as terapêuticas à base de cannabis de forma segura e eficaz, promovendo assim, o bem-estar e a saúde dos pacientes.
Referências
- Administration (SAMHSA), S. A. and M. H. S. National Survey on Drug Use and Health (NSDUH). Table241 B- Alcobol Use Lifetime Past Year Past Mon. Pers. Aged 12 Older Demogr: Charact. Percent. 2014 2015 (2015).
- Organization, W. H. The public bealth dimension of the world drug problem: bow WHO works to prevent drug use, reduce barm and improve safe access to medicines. (2019).
- FENTANIL: desviado do sistema hospitalar, opioide poderosíssimo já é encontrado nas ruas brasileiras, misturado a outras drogas. The Conversation, 8 ago. 2023. Disponível em: https://theconversation.com/fentanil-desviado-do-sistema-hospitalar-opioide-poderosissimo-ja-e-encontrado-nas-ruas-brasileiras-misturado-a-outras-drogas-219667. Acesso em: 27 set. 2024.
- MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina EndocanabTranstorno por Uso de Opioidesinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Bisaga, A. et al. The effects of dronabinol during detoxification and the initiation of treatment with extended release naltrexone. Drug Alcobol Depend. 154, 38-45 (2015).
- Hurd, Y. L. et al. Cannabidiol for the Reduction of Cue-Induced Craving and Anxiety in Drug Abstinent Individuals With Heroin Use Disorder: A Double-Blind Randomized Placebo-Controlled Trial. Am.J. Psycbiatry 176, 91 1-922 (2019)
- De Aquino,J. P. et al. Delta-9-tetrahydrocannabinol modulates pain sensitivity among persons receiving opioid agonist therapy for opioid use disorder: A within-subject, randomized, placebo-controlled laboratory study. Addict. Biol. 28, e13317 (2023).
- Bar-Lev Schleider, L. et al. Prospective analysis of safety and efficacy of medical cannabis in large unselected population of patients with cancer. Eur; J. Intern. Med. 49, 37-43 (2018).