O glaucoma é uma das principais causas de cegueira irreversível no mundo, afetando mais de 70 milhões de pessoas globalmente. Caracterizado por neuropatia óptica progressiva, o glaucoma está frequentemente associado ao aumento da pressão intraocular, sendo este o único fator de risco modificável. Embora as terapias convencionais, como colírios hipotensores, laser e cirurgias, sejam amplamente utilizadas, a busca por novas abordagens terapêuticas tem ganhado destaque, especialmente no campo dos canabinoides.
A relação entre o sistema endocanabinoide e o controle da PIO trouxe à tona a possibilidade de utilizar compostos derivados da cannabis como coadjuvantes no manejo do glaucoma. No post de hoje vamos explorar os mecanismos fisiopatológicos do glaucoma, o papel do SEC e as evidências científicas sobre o uso de canabinoides nessa patologia.
Glaucoma
O glaucoma é uma neuropatia óptica crônica, considerada uma das principais causas de cegueira irreversível no mundo. Caracteriza-se por danos progressivos ao nervo óptico, frequentemente associados ao aumento da pressão intraocular (PIO), embora também possa ocorrer em indivíduos com PIO normal, como no caso do glaucoma de pressão normal. A condição é classificada em primária ou secundária, dependendo de sua etiologia, e subdividida em glaucoma de ângulo aberto ou ângulo fechado, conforme a anatomia da câmara anterior do olho. O tipo mais prevalente, o glaucoma primário de ângulo aberto, é frequentemente assintomático em estágios iniciais, dificultando o diagnóstico precoce.¹
A elevação da PIO no glaucoma resulta de um desequilíbrio entre a produção e a drenagem do humor aquoso, causando compressão mecânica e isquemia do nervo óptico. Esses processos desencadeiam estresse oxidativo, danos teciduais mediados pela ativação imunológica e apoptose das células ganglionares da retina, levando à perda progressiva do campo visual. O glaucoma é frequentemente chamado de “ladrão silencioso da visão”, pois os sintomas são geralmente imperceptíveis até os estágios avançados, quando o comprometimento periférico do campo visual já progrediu para a perda central da visão. ¹
O diagnóstico baseia-se em exames como a tonometria, para medir a PIO, fundoscopia para avaliar o nervo óptico, perimetria para mapear o campo visual e tomografia de coerência óptica (OCT) para análise estrutural. O manejo da doença visa reduzir a PIO para retardar sua progressão, utilizando uma combinação de abordagens que incluem farmacoterapia com colírios (análogos de prostaglandinas, betabloqueadores, agonistas adrenérgicos e inibidores da anidrase carbônica), tratamentos a laser, como trabeculoplastia e iridotomia, e intervenções cirúrgicas, incluindo trabeculectomia, implantes valvulares ou procedimentos minimamente invasivos, conhecidos como MIGS.¹
O glaucoma é uma patologia ocular de alta prevalência e impacto global, especialmente em populações idosas e de maior risco. Sua progressão silenciosa e irreversível reforça a importância do diagnóstico precoce e do manejo clínico adequado, com o objetivo principal de controlar a PIO e retardar a degeneração do nervo óptico. Apesar dos avanços nas terapias convencionais, o glaucoma ainda representa um desafio clínico. Nesse contexto, os tratamentos à base de cannabis têm emergido como uma alternativa promissora, demonstrando potencial para redução da PIO e efeitos neuroprotetores, ampliando as perspectivas terapêuticas para essa patologia.
O Sistema Endocanabinoide e o Glaucoma
O sistema endocanabinoide (SEC) é uma rede de moléculas e receptores que desempenha um papel crucial na homeostase do organismo, regulando uma série de funções fisiológicas, como dor, apetite, humor, memória e até a resposta inflamatória. Composto por endocanabinoides, receptores canabinoides (CB1 e CB2) e enzimas responsáveis pela sua síntese e degradação, o SEC tem se mostrado uma parte essencial no controle de diversos processos biológicos, incluindo aqueles relacionados à pressão intraocular (PIO), uma das principais preocupações no contexto do glaucoma.²
Os receptores canabinoides, como o CB1, e outros associados ao sistema endocanabinoide, como o GPR18, estão amplamente distribuídos nas diversas estruturas oculares, incluindo a retina, a malha trabecular e o corpo ciliar, que são fundamentais na regulação da pressão intraocular. Estudos têm mostrado que os endocanabinoides estão presentes nessas e em outras regiões oculares, como a íris, o plexo coroide e a malha trabecular, em humanos e em várias espécies animais, evidenciando a importância do SEC para o funcionamento fisiológico do olho.³
A modulação da PIO ocorre principalmente no corpo ciliar, onde os receptores CB1 são altamente expressos. A ativação desses receptores no corpo ciliar desempenha um papel fundamental na regulação da produção e drenagem do humor aquoso, fluido responsável pela manutenção da pressão ocular. Estudos pré-clínicos e clínicos têm demonstrado que a ativação dos receptores CB1 e CB2, seja por endocanabinoides ou por canabinoides exógenos, pode reduzir a produção do humor aquoso e facilitar sua drenagem através da malha trabecular, o que leva a uma diminuição da PIO. Essa modulação da PIO é crucial no controle do glaucoma, uma vez que o aumento da pressão ocular é um dos principais fatores associados ao dano glaucomatoso.4,5,6
Além de desempenhar um papel na regulação da pressão intraocular, o sistema endocanabinoide também exerce efeitos neuroprotetores importantes no glaucoma. A degeneração das células ganglionares da retina (CGRs), que são responsáveis pela transmissão dos sinais visuais ao cérebro, é impulsionada por processos como excitotoxicidade, estresse oxidativo e inflamação. A ativação dos receptores canabinoides, demonstrou reduzir esses mecanismos de dano celular, aliviando a excitotoxicidade, atenuando o estresse oxidativo e modulando as respostas inflamatórias.7 Tais efeitos podem ser cruciais para a preservação da função das CGRs e para retardar a progressão do glaucoma, ajudando a evitar a perda adicional de visão nos pacientes afetados.
Portanto, a interação entre o SEC e o glaucoma sugere que a modulação dos receptores canabinoides pode não apenas controlar a pressão ocular, mas também desempenhar um papel importante na proteção das células da retina contra os danos progressivos associados à doença.
Para entender mais sobre os efeitos da cannabis sobre o Sistema Nervoso acesse: Efeitos da Cannabis na Excitabilidade Cerebral – WeCann Academy
Evidências Científicas
O potencial terapêutico da cannabis no tratamento do glaucoma remonta a registros históricos milenares. Um exemplo notável é encontrado no Papiro Egípcio Ramesseum III, datado de 1700 a.C., que descreve o uso de cânhamo como parte de um tratamento ocular. Essa antiga prescrição pode ser interpretada como uma das primeiras referências ao uso de cannabis para condições que hoje se assemelham ao glaucoma, destacando o uso tradicional da planta na oftalmologia antes mesmo do surgimento da medicina moderna.8
A investigação científica do uso de canabinoides para o glaucoma começou a ganhar força na década de 1970, quando os primeiros estudos clínicos modernos foram conduzidos. Cooler e Gregg (1977) realizaram um ensaio clínico randomizado e duplo-cego nos Estados Unidos, administrando Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) intravenoso em doses de 0,022 mg/kg e 0,044 mg/kg. Os resultados mostraram uma redução máxima de 51% na pressão intraocular (PIO), com uma média de redução de 37% em comparação ao placebo. Esses achados reforçaram a eficácia hipotensora do THC, mas também evidenciaram efeitos adversos sistêmicos, como aumento significativo da frequência cardíaca (entre 22% e 65%), o que levantou preocupações sobre a segurança da aplicação intravenosa de THC e suas aplicações clínicas.9
Merritt et al. (1980) ampliaram esse trabalho em um estudo clínico envolvendo 18 pacientes com glaucoma. Neste experimento, os participantes inalaram cannabis contendo 900 mg de material vegetal com cerca de 2% de THC. A redução da PIO foi observada em 31 olhos afetados, com o efeito ocorrendo entre 60 a 90 minutos após a inalação. Apesar dos benefícios na PIO, os autores também registraram efeitos adversos sistêmicos, como hipotensão arterial, que poderiam ser prejudiciais para certos indivíduos. Isso motivou a exploração de métodos de administração local, menos propensos a causar efeitos colaterais sistêmicos.10
Em 1981, Merritt et al. realizaram um estudo subsequente utilizando soluções tópicas contendo THC em concentrações de 0,05% e 0,1%, aplicadas diretamente no olho de pacientes com glaucoma primário de ângulo aberto. Embora essas formulações tivessem mostrado eficácia em modelos animais, não apresentaram redução significativa da PIO em humanos, sugerindo que as vias de administração tópica requerem formulações mais adequadas para atingir os alvos terapêuticos oculares.11
Décadas depois, estudos modernos investigaram formulações sublinguais e compostos derivados de canabinoides. Um estudo piloto duplo-cego cruzado testou extratos sublinguais contendo combinações de THC (5 mg) e canabidiol (CBD) em diferentes doses (20 mg e 40 mg). Os resultados indicaram que o THC, na dose mais baixa, reduziu a PIO significativamente por um período limitado de 2 a 4 horas, enquanto o CBD não demonstrou eficácia na redução da PIO. Curiosamente, doses mais altas de CBD (40 mg) provocaram um aumento transitório da PIO, destacando a necessidade de ajustes precisos na formulação e dosagem para otimizar os benefícios terapêuticos.12
Pesquisas mais recentes exploraram novos compostos relacionados ao sistema endocanabinoide. Rossi et al. (2020) conduziram um estudo com a administração diária de 600 mg de palmitoiletanolamida (PEA) como adjuvante ao tratamento padrão em 40 pacientes com glaucoma. A PEA mostrou-se eficaz na redução da PIO e promoveu melhora na qualidade de vida dos pacientes, reforçando seu potencial como uma opção complementar segura e eficaz.13
Embora as evidências científicas sejam promissoras, é necessário conduzir ECRs mais robustos, metodologicamente rigorosos e com maior número de participantes. Isso permitirá validar a eficácia clínica dos canabinoides e desenvolver estratégias de administração que maximizem os benefícios terapêuticos enquanto minimizam os efeitos adversos. A integração desses compostos no tratamento do glaucoma representa uma abordagem inovadora e potencialmente transformadora na oftalmologia moderna.
Conclusão
A exploração dos canabinoides como opção terapêutica para o glaucoma representa uma área promissora e inovadora na oftalmologia. Apesar das limitações das terapias convencionais e dos desafios associados ao uso clínico dos canabinoides, os avanços nas pesquisas têm evidenciado seu potencial na redução da pressão intraocular e na proteção neurocelular, abrindo novas possibilidades para o manejo dessa patologia. Estudos pré-clínicos e clínicos destacam tanto os benefícios quanto os desafios e limitações no uso de diferentes vias de administração e formulações, sinalizando a necessidade de maior investigação científica para validar a segurança e eficácia dessas abordagens.
Nesse cenário, a WeCann surge como uma aliada essencial para a comunidade médica, oferecendo suporte na tomada de decisões terapêuticas informadas e fundamentadas em evidências científicas robustas. Por meio de materiais técnicos, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a instituição capacita a comunidade médica a compreender com profundidade o potencial dos canabinoides no manejo de patologias complexas, incluindo o glaucoma. Essa abordagem permite que médicos ampliem seu entendimento sobre a aplicação segura e eficaz das terapias à base de cannabis, integrando-as ao cuidado de pacientes de forma ética e responsável.
Referências
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