Estima-se que pelo menos 37% da população brasileira sinta dor de forma crônica, segundo a Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED). A classificação leva em conta dores que persistem ou recorrem por mais de três meses e as causas estão na maioria das vezes relacionadas a doenças crônicas, como doenças osteodiscodegenerativas, transtornos neurológicos e câncer. O tratamento costuma ser realizado com fármacos, fisioterapia e psicoterapia, mas outros adjuvantes frequentemente precisam ser considerados. A utilização da Cannabis medicinal no manejo da dor crônica tem sido amplamente estudada e há vários benefícios dos derivados canabinoides para essa condição.
Quais as evidências do uso de Cannabis na dor crônica?
Antes de tudo, é importante saber mais sobre o Sistema Endocanabinoide. O SE é um sistema regulatório vital, presente nos seres humanos e em todos os animais vertebrados, que está envolvido em quase todos os nossos processos fisiológicos e patológicos.
A interação dos receptores endocanabinoides com seus principais ligantes, regula e modula o estresse, as emoções, a digestão, as funções cardiovasculares, o sistema imunológico, processos inflamatórios e também, a dor.
Essa interação pode ser estimulada por compostos químicos presentes na Cannabis — os fitocanabinoides e os terpenos da planta podem auxiliar no equilíbrio de tônus funcional desse sistema. Por isso, a Cannabis medicinal pode ser uma aliada importante no manejo da dor crônica.
Uma revisão publicada em julho de 2021 conclui que há evidências substanciais em estudos pré-clínicos de que os canabinoides são uma promessa relevante para o desenvolvimento de medicamentos analgésicos. Os autores também destacam que são necessários mais estudos para compreender melhor a farmacologia e o potencial terapêutico de outros fitocanabinoides, além dos principais THC e CBD — e, como outros elementos químicos da planta interagem com ambos na analgesia.
>> Confira em Cannabinoids, the endocannabinoid system, and pain: a review of preclinical studies
Essa pesquisa de 2020, ilustra bem esse potencial. Os autores avaliaram o uso de Cannabis medicinal em pacientes com dor crônica, em uso regular de opioides. Durante pelo menos 3 meses, mais de 500 pacientes utilizaram Cannabis em combinação aos medicamentos opioides previamente prescritos para tratar a dor crônica. Em relação aos opioides:
- 40,4% dos respondentes interromperam o uso;
- 45,2% relataram alguma diminuição na utilização;
- 3,3% não realizou mudanças no uso da substância;
- 1,1% aumentou a ingestão.
A maioria relatou melhora na capacidade funcional (80%) e na qualidade de vida (87%). Quase metade (48,2%) descreveu uma redução de 40 a 100% da dor.
Resultados de um estudo observacional e longitudinal, também de 2021, apontam que a exposição ao THC está relacionada à melhora da dor, enquanto o CBD se associa a uma melhora do humor — consequentemente, diminuindo as sensações desagradáveis associadas à dor. Foram avaliados aspectos como dor, estado clínico, padrão de sono, qualidade de vida e uso de fármacos convencionais em pacientes com dor crônica, que utilizaram também a Cannabis medicinal no tratamento.
Cannabis e enxaqueca
Nove em cada 10 pacientes com enxaqueca podem ter alívio da dor ao inalar Cannabis. O achado é de um estudo no qual os pesquisadores acompanharam os efeitos da planta inalada em 699 pessoas com enxaqueca, durante 32 meses. 94% dos pacientes relataram alívio dos sintomas em até duas horas após a inalação. Notou-se que as variedades de Cannabis com teor de THC igual ou superior a 10% foram mais eficazes no alívio da dor.
>> Saiba mais: Alleviative effects of Cannabis flower on migraine and headache
Outros estudos também demonstram o potencial promissor do uso de derivados canabinoides em pacientes portadores de enxaqueca. Resultados preliminares de um estudo realizado em 2020 apontam que 86% dos pacientes que sofriam de dores de cabeça relataram melhora em seus sintomas após o uso de óleo de CBD em um tratamento de 30 dias.
A partir de dados de um aplicativo de Cannabis medicinal utilizado por pacientes para rastrear os sintomas antes e depois do uso da planta, pesquisadores registraram que há reduções significativas nos sinais de enxaqueca e dores de cabeça após o uso da planta. A Cannabis inalada diminuiu em aproximadamente 50% a intensidade da dor associada à enxaqueca.
>> Leia em: Short- and Long-Term Effects of Cannabis on Headache and Migraine
Cannabis e fibromialgia
Pesquisadores israelenses estudaram a associação entre Cannabis e dor crônica em pacientes de dois centros médicos especializados no tratamento da fibromialgia. Após 10 a 11 meses de tratamento com Cannabis, 100% dos respondentes tiveram melhora nos sintomas da doença em todos os quesitos do questionário, com melhores resultados nos que eram relativos à dor. Pelo menos 50% deles reportaram terem suspendido o uso de outros fármacos após o início da cannabis medicinal. Efeitos adversos foram relatados por 30% dos pacientes, mas todos considerados leves — dores de cabeça, náuseas, fome excessiva, boca seca e sonolência.
>> Confira o estudo: Medical Cannabis for the Treatment of Fibromyalgia
Extratos de Cannabis com concentração maior de THC podem reduzir a dor e melhorar consideravelmente a qualidade de vida de pessoas com fibromialgia. Isso é o que comprova um estudo clínico controlado, randomizado e duplo cego de outubro de 2020. A pesquisa foi conduzida por médicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 8 semanas de tratamento, o grupo que usou Cannabis medicinal teve diminuição da severidade da fibromialgia de 75 para 30, enquanto os pacientes que receberam placebo registraram redução de 70 para 61 — escala de 0 a 100 do escore Fibromyalgia Impact Questionnaire (FIQ).
Um ponto interessante do estudo é que ele utilizou uma “preparação artesanal”. Dessa forma, os autores concluem também que os fitocanabinoides, além de eficientes, podem ser uma terapia de baixo custo.
>> Confira o estudo Ingestion of a THC-Rich Cannabis Oil in People with Fibromyalgia: A Randomized, Double-Blind, Placebo-Controlled Clinical Trial
Cannabis e dor neuropática
Pesquisas estimam que o componente neuropático possa estar presente em cerca de 35% de todas as síndromes dolorosas. O paciente apresenta uma sensação de formigamento, queimadura ou hipersensibilidade ao toque ou ao frio.
Em estudos pré-clínicos com roedores, foi observado que a ativação de receptores endocanabinoides foi capaz de reduzir a dor inflamatória neuropática crônica. Outras pesquisas em modelos animais mostraram que, após o tratamento com CBD por 7 dias, houve normalização da neurotransmissão serotonérgica (5-HT), redução da alodinia mecânica e diminuição do comportamento de ansiedade.
>> Saiba mais em A Review of Scientific Evidence for THC:CBD Oromucosal Spray (Nabiximols) in the Management of Chronic Pain
Neste ensaio clínico randomizado e duplo-cego, ao administrar o tratamento com THC e CBD por 4 semanas, em 125 pacientes com dor neuropática de origem periférica, pesquisadores perceberam uma redução significativa no escore de dor. Também, observaram melhoras significativas em outros parâmetros, como os escores de dor neuropática (Neuropahtic Pain Score), índice de incapacidade funcional da dor (Pain Disability Index) e impressão global de mudança do paciente (Patient’s Global Impression of Change). Os efeitos adversos relatados foram principalmente sedativos ou gastrointestinais.
Um grupo composto por médicos especialistas em dor, médicos psiquiatras, cientistas e pacientes se reuniu para avaliar a relação entre benefício e segurança de 12 tratamentos farmacológicos para o manejo de dor neuropática crônica, incluindo medicamentos à base de Cannabis. O resultado, publicado em 2021, indica que os medicamentos à base de Cannabis alcançaram a pontuação mais alta, ficando à frente de medicações frequentemente prescritas a esses pacientes como duloxetina, gabapentinoides, amitriptilina, tramadol, ibuprofeno, entre outras.
>> Leia o estudo completo: A Multicriteria Decision Analysis Comparing Pharmacotherapy for Chronic Neuropathic Pain, Including Cannabinoids and Cannabis-Based Medical Products
Dor oncológica e Cannabis
Na análise “Os oncologistas devem recomendar cannabis?”, o autor destaca a recomendação de prescrever um medicamento à base de Cannabis na refratariedade do uso de outros fármacos para pacientes que desenvolveram neuropatia periférica induzida por quimioterápicos.
Vale ressaltar que a Cannabis medicinal apresenta sinergia de atuação com opioides, normalmente prescritos para o controle da dor associada ao câncer. Boa parte dos pacientes com dor crônica, que faz uso regular de opioides e inicia o tratamento com os derivados da planta, consegue prevenir o desenvolvimento da tolerância aos opioides, evitando o aumento progressivo de dosagem desses fármacos.
>> Leia mais: Should Oncologists Recommend Cannabis?
Além da dor crônica, outros sintomas são relatados com frequência pelos pacientes de diversos tipos de câncer. São eles a fadiga, a insônia e a inapetência. Também não são raros os quadros de ansiedade, depressão, náuseas e vômitos, consequências naturais dos protocolos de radio e quimioterapia.
Todos esses sintomas associados ao câncer e aos efeitos colaterais advindos do seu tratamento podem ser melhorados com o uso da Cannabis medicinal enquanto adjuvante terapêutico no contexto oncológico. É o que demonstram os resultados promissores de pesquisas que reforçam o potencial da planta nesse contexto.
>> Veja em Opportunities for cannabis in supportive care in cancer, publicado em 2019.
Quer mais dados? Que tal os resultados desse estudo publicado em 2018, que avaliou um grupo de 2.970 pacientes com câncer tratados com cannabis medicinal entre 2015 e 2017? Após seis meses de acompanhamento com a terapêutica canábica, os pacientes responderam da seguinte maneira:
- 95,9% deles relataram uma melhora geral em seu quadro,
- 3,7% não relataram nenhuma mudança e
- 0,3% relataram piora em sua condição médica.
Para se aprofundar no potencial dos derivados canabinoides no contexto oncológico, leia nosso artigo sobre Cannabis como adjuvante terapêutico no paciente com câncer
Dor pélvica e Cannabis
As propriedades analgésicas e antiinflamatórias dos fitocanabinoides também surgem como uma alternativa segura e eficaz no alívio de dores frequentes e intensas, predominantes na região pélvica. Os medicamentos à base de Cannabis podem trazer benefícios no tratamento da dor pélvica crônica, especialmente quando associada à endometriose. Para ler mais sobre esse tema, confira o nosso post sobre Cannabis medicinal para mulheres.
Um estudo de 2020 mostrou que 20% dos pacientes que participaram da pesquisa relataram usar a planta para aliviar o quadro de dor pélvica crônica, especialmente os sintomas de dor, espasmos musculares, irritabilidade, sintomas de ansiedade e depressão, transtorno do sono e redução da libido.
>> Veja em Use of Cannabis for Self-Management of Chronic Pelvic Pain
Essas são apenas algumas das evidências existentes em relação ao potencial terapêutico da Cannabis no manejo da dor crônica. Em 2017, a publicação The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA, concluiu que existe nível de evidência científico conclusivo e substancial para o uso de canabinoides na dor crônica.
Se você quer saber mais sobre o assunto e incorporar essa valiosa ferramenta terapêutica na sua prática, conheça a Certificação Internacional em Medicina Endocanabinoide da WeCann Academy.
Referências
Abrams DI. Should Oncologists Recommend Cannabis?. Curr Treat Options Oncol. 2019;20(7):59. Published 2019 Jun 3. doi:10.1007/s11864-019-0659-9
ALBUQUERQUE, Flávia. Dor crônica afeta pelo menos 37% dos brasileiros. Agência Brasil, 2018. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2018-09/dor-cronica-afeta-pelo-menos-37-dos-brasileiros>. Acesso em: 26 de julho de 2021.
Carolina Chaves, MD, Paulo Cesar T Bittencourt, MD, MSc, Andreia Pelegrini, PhD, Ingestion of a THC-Rich Cannabis Oil in People with Fibromyalgia: A Randomized, Double-Blind, Placebo-Controlled Clinical Trial, Pain Medicine, Volume 21, Issue 10, October 2020, Pages 2212–2218, https://doi.org/10.1093/pm/pnaa303
Cuttler C, Spradlin A, Cleveland MJ, Craft RM. Short- and Long-Term Effects of Cannabis on Headache and Migraine. J Pain. 2020;21(5-6):722-730. doi:10.1016/j.jpain.2019.11.001
Finn DP, Haroutounian S, Hohmann AG, Krane E, Soliman N, Rice ASC. Cannabinoids, the endocannabinoid system, and pain: a review of preclinical studies. Pain. 2021;162(Suppl 1):S5-S25. doi:10.1097/j.pain.0000000000002268
Gruber SA, Smith RT, Dahlgren MK, Lambros AM, Sagar KA. No pain, all gain? Interim analyses from a longitudinal, observational study examining the impact of medical cannabis treatment on chronic pain and related symptoms. Exp Clin Psychopharmacol. 2021;29(2):147-156. doi:10.1037/pha0000435
Habib G, Artul S. Medical Cannabis for the Treatment of Fibromyalgia. J Clin Rheumatol. 2018;24(5):255-258. doi:10.1097/RHU.0000000000000702
HERRINGTON, A.J. Study Finds CBD Is An Effective Treatment For Migraine. Forbes, 2021. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/ajherrington/2021/02/17/study-finds-cbd-is-an-effective-treatment-for-migraine/?sh=af081d57ddc0>. Acesso em: 11 de agosto de 2021.
Sarah S. Stith, Jegason P. Diviant, Franco Brockelman, Keenan Keeling, Branden Hall, Storri Lucern, Jacob M. Vigil, Alleviative effects of Cannabis flower on migraine and headache, Journal of Integrative Medicine, Volume 18, Issue 5, 2020, Pages 416-424, ISSN 2095-4964, https://doi.org/10.1016/j.joim.2020.07.004.
Takakuwa KM, Sulak D. A Survey on the Effect That Medical Cannabis Has on Prescription Opioid Medication Usage for the Treatment of Chronic Pain at Three Medical Cannabis Practice Sites. Cureus. 2020;12(12):e11848. Published 2020 Dec 2. doi:10.7759/cureus.11848