Canabidiol no manejo da Depressão: Potencial terapêutico e evidências científicas

Publicado em 26/09/24 | Atualizado em 02/12/24 Leitura: 13 minutos

Cannabis como Medicamento

A depressão é um transtorno mental prevalente e incapacitante, afetando milhões de pessoas em todo o mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é uma das principais causas de incapacidade global. Os tratamentos convencionais, como antidepressivos e psicoterapia, são eficazes em muitos casos, mas apresentam limitações, como efeitos colaterais e respostas inadequadas em uma parcela significativa dos pacientes. Isso tem motivado a busca por novas abordagens terapêuticas. O canabidiol (CBD), um composto extraído da planta Cannabis sativa, tem emergido como uma opção potencialmente promissora no manejo da depressão, com estudos sugerindo que pode atuar em diversos mecanismos neurobiológicos envolvidos na patologia depressiva. Nesse post, iremos explorar qual o papel do CBD no manejo terapêutico da depressão.

Depressão

A depressão, ou transtorno depressivo maior (TDM), é uma condição psiquiátrica de alta prevalência e impacto global, caracterizada por alterações de humor significativas que afetam a qualidade de vida dos pacientes. Classificada como um transtorno do humor, o TDM envolve tanto o aumento do afeto negativo quanto a redução do afeto positivo, resultando em uma ampla gama de sintomas psicológicos e somáticos. A condição é responsável por consideráveis limitações funcionais e sociais, sendo uma das principais causas de incapacidade no mundo.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) o transtorno depressivo maior é definido pela presença de, pelo menos, cinco dos seguintes sintomas, durante um período mínimo de duas semanas, com um deles sendo obrigatoriamente humor deprimido ou perda de interesse ou prazer (anedonia). Esses sintomas incluem: humor deprimido, anedonia, alterações de peso, distúrbios do sono, agitação ou retardo psicomotor, fadiga, sentimentos de inutilidade ou culpa, dificuldade de concentração e pensamentos suicidas.¹

Esses sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Além disso, os sintomas não podem ser atribuídos a efeitos fisiológicos de substâncias ou outra condição médica, como hipotireoidismo.¹

Somaticamente, os pacientes podem experimentar alterações no apetite, ganho ou perda de peso não intencional, fadiga crônica, distúrbios gastrointestinais (como constipação), alterações no ciclo menstrual e distúrbios do sono. Estes últimos podem incluir tanto a insônia, marcada pela dificuldade de iniciar ou manter o sono, quanto a hipersonia, onde o paciente dorme por longos períodos, mas sem sentir-se restaurado.¹

O manejo terapêutico do TDM envolve uma abordagem multimodal, combinando intervenções psicossociais, mudanças no estilo de vida e farmacoterapia. Entre as intervenções não farmacológicas, a psicoterapia cognitivo-comportamental (TCC) é amplamente utilizada para abordar pensamentos disfuncionais e comportamentos que perpetuam o quadro depressivo. A prática regular de exercícios físicos também é recomendada como coadjuvante no tratamento, devido à sua capacidade de melhorar o humor e reduzir a ansiedade.

Os antidepressivos são a base da terapia farmacológica para o TDM, sendo prescritos para regular os desequilíbrios neuroquímicos envolvidos na fisiopatologia da depressão. Entre as classes mais comuns de antidepressivos estão:

  • Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina (ISRS): Como fluoxetina, citalopram e sertralina, atuam aumentando a disponibilidade de serotonina na fenda sináptica, um neurotransmissor associado à regulação do humor. Estes medicamentos são frequentemente a primeira linha de tratamento devido ao seu perfil de segurança relativamente favorável.

 

  • Inibidores da Recaptação de Serotonina e Noradrenalina (ISRSN): Como duloxetina e venlafaxina, que agem tanto sobre a serotonina quanto sobre a noradrenalina, sendo indicados para casos mais graves de depressão ou para aqueles que não respondem adequadamente aos ISRS.

 

  • Antidepressivos Noradrenérgicos e Específicos Serotoninérgicos (ANES): Como a mirtazapina, que pode ser indicada para pacientes que apresentam insônia significativa, devido ao seu efeito sedativo.

 

Embora eficazes, os antidepressivos não estão isentos de efeitos colaterais. Os pacientes podem experimentar sonolência excessiva, cefaleia, disfunção sexual, indigestão, diarreia, constipação intestinal, insônia e, em alguns casos, hiponatremia. Além disso, o uso prolongado de antidepressivos pode induzir dependência química, exigindo uma redução gradual da dose para evitar sintomas de abstinência.²

Nos últimos anos, tem havido crescente interesse no uso de psicodélicos como uma opção terapêutica no tratamento da depressão resistente. Substâncias como psilocibina, cetamina e MDMA têm mostrado potencial na modulação da neurotransmissão serotoninérgica, especialmente por meio da ativação dos receptores de serotonina 5-HT2A. Esses compostos têm demonstrado efeitos rápidos e duradouros em estudos clínicos com pacientes que não respondem aos tratamentos tradicionais. Apesar dos avanços, essas terapias ainda requerem mais estudos para entender plenamente seus mecanismos e segurança a longo prazo.²

O canabidiol, um componente não psicotrópico da planta Cannabis sativa, também tem sido explorado como uma opção terapêutica para a depressão. Evidências iniciais sugerem que o CBD pode exercer efeitos antidepressivos por meio da modulação do sistema endocanabinoide (SEC) e interação com receptores serotoninérgicos.² O uso do CBD como terapia adjuvante para depressão demonstra ser promissor, especialmente em pacientes que apresentam respostas inadequadas aos tratamentos convencionais ou que são muito sensíveis aos efeitos colaterais dos antidepressivos tradicionais.

Sistema endocanabinoide e Depressão

O sistema endocanabinoide (SEC) desempenha um papel crucial na regulação de diversos processos neurofisiológicos, incluindo o controle do humor e das respostas ao estresse, elementos-chave na etiologia da depressão. Embora a depressão e a ansiedade sejam condições distintas, seus substratos neurobiológicos frequentemente se sobrepõem, refletindo uma interconexão entre os mecanismos regulatórios do SEC em ambos os transtornos.² 

O receptor CB1, em particular, tem uma função central na mediação de respostas emocionais e cognitivas adequadas, sendo um dos principais moduladores do equilíbrio neuroquímico. Além disso, estudos clínicos e pré-clínicos têm demonstrado alterações significativas nos níveis de endocanabinoides, como a anandamida e o 2-AG, em indivíduos com depressão. 

Em mulheres não medicadas com depressão, os níveis séricos basais de anandamida e 2-AG estão consistentemente reduzidos, sugerindo uma possível disfunção na sinalização do SEC. Essas observações reforçam a hipótese de que o déficit no tônus endocanabinoide pode estar associado à fisiopatologia da depressão. Por outro lado, maiores concentrações de anandamida circulante foram correlacionadas com melhor humor e menor gravidade dos sintomas depressivos.³

O exercício físico, conhecido por seus benefícios no manejo da depressão, também exerce influência direta sobre o SEC, elevando os níveis de endocanabinoides e promovendo melhora dos sintomas depressivos. No entanto, é importante destacar que o contexto ambiental pode modificar essas interações.4 Pacientes com histórico de trauma na infância podem, paradoxalmente, apresentar maior vulnerabilidade à depressão mesmo com níveis elevados de anandamida, evidenciando a complexa relação entre o SEC e os fatores ambientais.5

Embora o receptor CB1 seja mais amplamente estudado em relação à regulação do humor, o receptor CB2 também tem mostrado importância na modulação emocional. A superexpressão dos receptores CB2 em modelos animais demonstrou efeitos protetores contra comportamentos associados à depressão, indicando que esse receptor pode ser um alvo terapêutico relevante. Estudos sugerem que a sinalização disfuncional do receptor CB2, quando combinada com a hipofunção da enzima FAAH, que degrada a anandamida, pode predispor indivíduos a transtornos de humor, especialmente em contextos de trauma infantil.6

A função moduladora do SEC nas respostas ao estresse é, portanto, um fator determinante na vulnerabilidade ao desenvolvimento de transtornos depressivos. A interrupção da sinalização do SEC, especialmente na amígdala, região cerebral central para o processamento emocional, resulta em aumento da ansiedade e da depressão em modelos animais. A elevação seletiva de anandamida, por outro lado, tem sido associada a uma melhora no processamento do medo, mediada pelos receptores CB1 em neurônios glutamatérgicos.7

A enzima FAAH, responsável pela degradação da anandamida, também desempenha um papel importante na regulação do estresse. Estudos genéticos mostram que uma mutação comum no gene FAAH (C385A; rs324420) resulta em hipofunção da enzima, levando a níveis aumentados de endocanabinoides. Curiosamente, portadores dessa mutação que foram expostos a traumas na infância tendem a apresentar maior risco de desenvolver depressão, sugerindo mais uma vez, uma interação complexa entre o SEC, fatores genéticos e experiências de vida.8

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Evidências Científicas

As evidências científicas sobre o uso de cannabis no tratamento da depressão são um campo de estudo crescente, com uma diversidade de resultados que destacam tanto os potenciais benefícios quanto as limitações dos tratamentos à base de cannabis. Os derivados canabinoides têm sido mais frequentemente avaliados em ensaios clínicos nos quais o controle dos sintomas depressivos é um objetivo secundário, sendo que esses estudos enfocam predominantemente outras patologias. Alguns estudos que avaliaram compostos como o dronabinol, nabilona e o canabidiol isolado não conseguiram superar o placebo ou medicamentos ativos no tratamento da depressão. A exceção foi o uso do nabiximols, um extrato que combina CBD e THC, o qual apresentou evidências moderadas de melhora dos sintomas depressivos.9

Por outro lado, estudos observacionais recentes têm demonstrado que o uso medicinal da cannabis é amplamente adotado por indivíduos que sofrem de depressão, com muitos desses pacientes relatando uma melhora subjetiva significativa nos sintomas depressivos após o uso de produtos à base de cannabis. Esses estudos sugerem que os pacientes tendem a preferir extratos integrais da planta, que contêm uma ampla gama de canabinoides, terpenos e outros compostos, em detrimento dos canabinoides isolados, para a obtenção de resultados antidepressivos mais consistentes.10,11,12

O canabidiol, um dos canabinoides mais amplamente estudados, mostrou efeitos promissores em modelos animais de depressão, como o teste de natação forçada (FST). Estudos indicam que o efeito antidepressivo do CBD depende de seus efeitos sobre o sistema serotoninérgico, especialmente através da ativação dos receptores 5-HT1A. O pré-tratamento com antagonistas desses receptores bloqueia os efeitos antidepressivos do CBD, sugerindo que os níveis de serotonina são críticos para sua ação antidepressiva.13

Além disso, estudos demonstram que a combinação de doses baixas de CBD com antidepressivos serotoninérgicos, como a fluoxetina (FLX), resultou em efeitos sinérgicos no FST, ao passo que a combinação com antidepressivos noradrenérgicos, como a desipramina (DES), não produziu os mesmos efeitos. Esses resultados indicam que o CBD pode facilitar a ação de antidepressivos serotoninérgicos, possivelmente permitindo o uso de doses menores, o que pode reduzir os efeitos colaterais associados a essas medicações.13

Esses dados fornecem uma visão sobre os efeitos do canabidiol no manejo da depressão e os mecanismos subjacentes aos seus potenciais efeitos antidepressivos. Contudo, são necessários mais ensaios clínicos controlados para estabelecer a segurança e eficácia do uso do canabidiol em pacientes com depressão.

Conclusão

O canabidiol emerge como uma ferramenta terapêutica promissora no manejo da depressão, principalmente devido a sua ação moduladora sobre o sistema endocanabinoide e os receptores serotoninérgicos. Embora os estudos pré-clínicos e observacionais ofereçam resultados animadores, ainda há importantes lacunas a serem preenchidas no que diz respeito à eficácia em longo prazo e à definição de protocolos de tratamento padronizados. A necessidade de mais ensaios clínicos controlados é evidente para validar o CBD como uma opção terapêutica eficaz, especialmente em casos de depressão resistente aos tratamentos convencionais.

Nesse contexto, é fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem informações de fontes confiáveis sobre o uso da cannabis medicinal. A WeCann se destaca como referência internacional de educação nessa área, compartilhando informações sobre cannabis medicinal sempre com respaldo em evidências científicas, e apoiando a comunidade médica na tomada de decisões responsáveis e fundamentadas em evidências. Através de conteúdos técnicos de alta qualidade, como o Tratado de Medicina Endocanabinoide, a WeCann ajuda os profissionais a aprofundar seus conhecimentos e a utilizar as terapêuticas à base de cannabis de forma segura e eficaz.

Referências

  1. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
  2. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  3. Hill,M., Miller, G. Ho, W.-S., Gorzalka,B.& Hllrd, C. Serum Endocannabinoid Content is Altered in Females with Depressive Disorders: A Preliminary Report. Pharmacopsycbiatry 41, 48-53 (2008).
  4. Heyman, E. et al. Intense exercise increases circulating endocannabinoid and BDNF levels in humans- Possible implications for reward and depression Psychoneuroendocrinology 37, 844-851 (2012).
  5. Lazary, J., Eszlari, N., Juhasz, G. & Bagdy, G. Genctically reduced FAAH activity may be a risk for the development of anxicty and depression in persons with repetitive childhood trauma. Eur. Neuropsychopbarmacol. 26, 1020-1028 (2016).
  6. Lazary, J., Eszlari, N., Juhasz, G. & Bagdy, G. A functional variant of CB2 receptor gene interacts with childhood trauma and FAA H gene on anxious and depressive phenotypes. J. Afect. Disord. 257, 716-722 (2019).
  7. Hill, M.N., Hillard, C.J. & McEwen, B.S. Alterations in Corticolimbic Dendritic Morphology and Emotional Behavior in Cannabinoid CB1 Receptor- Deficient Mice Parallel the Effects of Chronic Stress Cereb. Cortex 21, 2056-2064 (2011).
  8. Habib, A. M. et al. Microdeletion in a FAAH pseudogene identified in a patient with high anandamide concentrations and pain insensitivity, Br.J. Anaesth, 123, c249-e253 (2019).
  9. Bilbao, A. & Spanagel, R. Medical cannabinoids: a pharmacology-based systematic review and meta- analysis for all relevant medical indications. BMC Med. 20, 259 (2022).
  10. Kuhathasan, N., Minuzzi, L., MacKillop, J. & Frey, B. N. An investigation of cannabis use for insomnia in depression and anxiety in a naturalistic sample BMC Psychiatry 22, 303 (2022).
  11. Mangoo, S. et al. Assessment of clinical outcomes of medicinal cannabis therapy for depression: analysis from the UK Medical Cannabis Registry. Expert Rev, Neurother: 22, 995-1008 (2022).
  12. Li, X. et al. The Effectiveness of Cannabis Flower for Immediate Relief from Symptoms of Depression Yale.J. Biol. Med. 93, 251-264 (2020).
  13. Amanda J. Sales, Carlos C. Crestani, Francisco S. Guimarães, Sâmia R.L. Joca, Antidepressant-like effect induced by Cannabidiol is dependent on brain serotonin levels, Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry, Volume 86, 2018, Pages 255-261, ISSN 0278-5846, https://doi.org/10.1016/j.pnpbp.2018.06.002. 

 

Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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