Eficácia dos Canabinoides no tratamento de distúrbios do sono

Publicado em 18/07/24 | Atualizado em 26/08/24 Leitura: 7 minutos

CanabinoidesCannabis como Medicamento

A insônia e outros distúrbios do sono representam um problema significativo de saúde pública, afetando milhões de pessoas em todo o mundo. Caracterizada por dificuldades em iniciar ou manter o sono, a insônia é um fator de risco para o desenvolvimento de várias condições de saúde mental e física, incluindo ansiedade, depressão, transtorno bipolar, abuso de substâncias, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo II, dores crônicas, traumatismos, asma e doença do refluxo gastroesofágico. Os tratamentos convencionais, embora eficazes a curto prazo, apresentam altas taxas de efeitos adversos, como sonolência excessiva, comprometimento das funções mentais e motoras, dependência, tolerância e síndrome de abstinência, que comprometem o uso prolongado. Esses medicamentos também podem causar alterações na arquitetura do sono e piorar a apneia obstrutiva do sono. Neste post, exploraremos como os canabinoides podem ser úteis no tratamento de distúrbios do sono, oferecendo uma alternativa potencialmente mais segura e eficaz.

O Sistema Endocanabinoide na Insônia e Distúrbios do Sono

Os canabinoides afetam processos fisiológicos com ritmos circadianos, como o ciclo sono-vigília, temperatura corporal, secreções endócrinas do eixo hipotálamo-pituitário-adrenal (HPA), apetite, aprendizado, memória e atividade locomotora. O sistema endocanabinoide (SEC) está associado à indução do sono e à promoção do sono REM, relacionado à consolidação da memória, e ao sono não REM, de ondas lentas (SWS), relacionado à restauração de energia e regulação hormonal e imunológica.

Neurônios produtores de orexina (ORX), localizados no hipotálamo, são cruciais para a regulação do ciclo sono-vigília. Embora esses neurônios não expressem diretamente receptores CB1, sua atividade é finamente modulada por uma rede complexa de circuitos neuronais que utilizam uma variedade de neurotransmissores, modulados pelo endocanabinoide 2-AG. Entre esses neurotransmissores estão a dopamina, que é conhecida por seu papel na motivação e recompensa; a noradrenalina, que está envolvida na resposta ao estresse e na vigília; a serotonina, que regula o humor e o sono; o ácido gama-aminobutírico (GABA), que é o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central; a acetilcolina, que desempenha um papel na excitação e na plasticidade sináptica; o glutamato, que é o principal neurotransmissor excitatório; e a histamina, que regula o ciclo sono-vigília e a resposta imunológica.¹

A atividade dos neurônios de orexina é, portanto, indiretamente influenciada pela interação desses neurotransmissores. Quando os receptores de orexina são ativados pela própria orexina, ocorre a produção pós-sináptica do endocanabinoide 2-AG. Este endocanabinoide atua como um modulador retrógrado, influenciando a liberação desses neurotransmissores nas sinapses, ajustando assim a atividade dos neurônios de orexina. Essa modulação retrógada pelo 2-AG é essencial para a manutenção do equilíbrio entre os estados de sono e vigília, demonstrando a complexidade e a importância do sistema endocanabinoide na regulação do sono.¹

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Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

Este mecanismo de ação indica que, apesar da ausência de receptores CB1 diretamente nos neurônios de orexina, o sistema endocanabinoide exerce uma influência significativa sobre a regulação do sono através de caminhos indiretos, destacando seu potencial como alvo terapêutico para o tratamento de distúrbios do sono.

Além disso, a ativação dos receptores CB1 por agonistas como o THC induz o sono, enquanto antagonistas desses receptores exercem efeitos opostos. Estudos em animais mostraram que antagonistas dos receptores CB1 aumentam o tempo de vigília e diminuem o tempo de sono REM e não REM, enquanto a administração de anandamida diminui o estado de vigília e aumenta o sono REM e não REM.

Evidências Clínicas

As propriedades hipnogênicas da cannabis são reconhecidas há séculos. Estudos modernos aplicando registros eletroencefalográficos ao THC mostraram efeitos nos parâmetros do sono há quase 50 anos. Atualmente, existem quase 80 estudos científicos modernos examinando a ação dos componentes do SEC e derivados canabinoides no contexto dos distúrbios do sono, com 24 estudos conduzidos em humanos, incluindo 13 ensaios clínicos randomizados (ECRs) duplo-cegos.

A análise post-hoc de ensaios clínicos com nabiximols (Sativex®) em várias condições clínicas, incluindo dor neuropática associada ao câncer, artrite reumatoide e esclerose múltipla, mostrou uma melhora acentuada nos parâmetros subjetivos do sono com um perfil razoável de eventos adversos. Uma meta-análise de AminiLari et al. (2022) incluiu 39 ECRs com 5.100 pacientes com dor crônica tratados com diferentes formulações de cannabis medicinal, mostrando melhora na qualidade subjetiva do sono em comparação ao placebo.²

Schloss et al. (2021) demonstraram que uma única dose noturna de cannabis medicinal contendo THC melhorou significativamente o bem-estar funcional e a qualidade do sono em pacientes com glioma de alto grau.³ É importante notar que em alguns ensaios clínicos, particularmente aqueles utilizando CBD predominante, o impacto sobre a qualidade do sono pode ser decorrente de um efeito indireto das propriedades analgésicas, ansiolíticas, anti-inflamatórias e antiespasmódicas desse fitocanabinoide.

Além disso, um estudo observacional realizado com pacientes do Cadastro de Cannabis Medicinal do Reino Unido, envolvendo 2.833 participantes, revelou uma melhora significativa na qualidade do sono, avaliada pela Escala de Qualidade do Sono de Item Único (Single-item Sleep Quality Scale, SQS), após acompanhamentos de 1, 3, 6 e 12 meses.4 Esses achados destacam o potencial dos canabinoides como uma intervenção terapêutica promissora para a insônia e outros distúrbios do sono, oferecendo uma alternativa aos tratamentos convencionais, que muitas vezes estão associados a efeitos adversos significativos e alto risco de dependência e tolerância.

Conclusão

Os canabinoides emergem como uma intervenção terapêutica promissora para o tratamento de distúrbios do sono, com evidências clínicas substanciais apoiando seu perfil de segurança e eficácia. Estudos demonstram que tanto THC quanto CBD podem melhorar a qualidade do sono, aliviando sintomas de insônia e outros distúrbios relacionados. Nesse contexto, é crucial que os médicos se mantenham atualizados sobre os avanços no uso terapêutico da cannabis medicinal para oferecerem a melhor abordagem terapêutica aos seus pacientes. A WeCann desempenha um papel fundamental ao fornecer conteúdos técnicos de qualidade sobre cannabis medicinal para médicos, baseados em alto rigor científico. Dessa maneira, a WeCann contribui para a incorporação segura da cannabis na prática clínica, e promove uma abordagem mais assertiva e personalizada para os pacientes com distúrbios do sono.

Referências 

  1. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. AminiLari, M. et al. Medical cannabis and cannabinoids for impaired sleep: a systematic review and meta-analysis of randomized clinical trials. Sleep 45, zsab234 (2022).
  3. Schloss,J. et al., A Phase 2 Randomised Clinical Trial Assessing the Tolerability of Two Different Ratios of Medicinal Cannabis in Patients With High Grade Gliomas. Front. Oncol. 11, 649555 (2021).
  4. Olsson, F. et al,. An observational study of safety and clinical outcome measures across patient groups in the United Kingdom Medical Cannabis Registry. Expert Rev, Clin. Pharmacol. 16, 257-266 (2023).
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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