Cannabis no tratamento da Esclerose Múltipla

Publicado em 11/09/24 | Atualizado em 19/09/24 Leitura: 13 minutos

Neurológicas

A esclerose múltipla (EM) é uma doença autoimune e neurodegenerativa que afeta o sistema nervoso central, caracterizada por uma resposta imunológica anormal que resulta na desmielinização e degeneração axonal. Esta condição crônica e progressiva pode levar a uma ampla gama de sintomas debilitantes, como espasticidade, fadiga, cãibras, dor, parestesias, tremores, distúrbios do sono, disfunção da bexiga urinária, déficits visuais, entre outros.¹  A EM afeta milhões de pessoas em todo o mundo, sendo mais prevalente em adultos jovens e em mulheres. Dada a complexidade da doença, o manejo da EM exige uma abordagem multidisciplinar, que inclui o uso de medicamentos imunomoduladores e sintomáticos. Nos últimos anos, a cannabis medicinal tem emergido como uma opção terapêutica promissora para o tratamento de vários sintomas da EM, oferecendo alívio para aqueles que não respondem adequadamente às terapias convencionais.

Esclerose Múltipla

A Esclerose Múltipla é uma doença complexa que envolve vários mecanismos patogênicos, resultando em danos significativos ao sistema nervoso central (SNC). As características patológicas da EM incluem a presença de placas no SNC, desmielinização, gliose e inflamação. As placas são compostas por células inflamatórias, linfócitos, axônios desmielinizados, redução de oligodendrócitos e aumento na proliferação de astrócitos, o que leva à gliose.² Esse processo, predominantemente localizado na substância branca, mas também presente na substância cinzenta, resulta em cicatrizes fibrosas no SNC, uma resposta secundária ao dano neuronal que pode durar semanas ou meses após a lesão inicial.

A gliose, uma característica marcante das placas da EM, envolve a proliferação de células gliais nas áreas afetadas, contribuindo para a formação de cicatrizes. Esse processo inflamatório é central na patogênese da EM, levando a um ciclo contínuo de dano tecidual e resposta imune. Além disso, existem diferentes formas clínicas de EM, sendo as principais a forma remitente-recorrente (EMRR), a forma progressiva secundária (EMSP) e a forma progressiva primária (EMPP). A EMRR é a mais comum e caracteriza-se por períodos de surtos seguidos de remissões, enquanto a EMSP e a EMPP envolvem uma progressão contínua dos sintomas sem períodos de remissão claros.³

O diagnóstico da EM é baseado em critérios clínicos, ressonância magnética (RM), e análise do líquido cefalorraquidiano (LCR), que revelam a presença de lesões no SNC e marcadores inflamatórios. Atualmente, não existe cura para a EM, e o tratamento visa controlar os surtos, retardar a progressão da doença e aliviar os sintomas.

O tratamento da EM é dividido em duas categorias principais: terapias que modificam o curso da doença e terapias sintomáticas. As terapias modificadoras da doença (TMDs) têm como objetivo principal controlar a resposta imunológica e reduzir a inflamação, particularmente durante as fases de recidiva da EM. Essas terapias demonstraram eficácia na redução da frequência de recidivas, no retardo do acúmulo de lesões detectáveis por ressonância magnética e, em alguns casos, na melhoria modesta da incapacidade. Entre as TMDs, destacam-se os interferons beta, o acetato de glatirâmero e anticorpos monoclonais, como Ocrevus® e Tysabri®, que têm desempenhado um papel importante no manejo da doença.4

Por outro lado, os tratamentos sintomáticos, apesar de essenciais para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, apresentam limitações significativas devido à sua toxicidade. O uso prolongado de analgésicos para controle da dor, por exemplo, pode levar a efeitos adversos hepáticos e ao risco de overdose, especialmente em casos de dor intensa, destacando a importância de um manejo cuidadoso e equilibrado da terapia.

Nos últimos anos, o interesse pelo uso de derivados canabinoides no tratamento da EM tem crescido, especialmente no manejo da espasticidade e da dor. Estudos clínicos e pré-clínicos sugerem que os canabinoides podem oferecer benefícios terapêuticos significativos, tanto pela modulação da resposta inflamatória quanto pela neuroproteção.

Embora os tratamentos atuais tenham melhorado significativamente a qualidade de vida dos pacientes com EM, pesquisas na área continuam a buscar terapias mais eficazes que possam não apenas controlar os sintomas, mas também, prevenir ou reverter a progressão da doença. O desenvolvimento de novas terapêuticas, incluindo aquelas baseadas em canabinoides, representa uma área promissora na busca por melhores resultados para os pacientes com Esclerose Múltipla.

Sistema Endocanabinoide na Esclerose Múltipla

O sistema endocanabinoide (SEC) é uma rede sofisticada de receptores, ligantes endógenos (endocanabinoides) e enzimas que desempenham um papel crucial na regulação de diversas funções fisiológicas, incluindo a modulação da inflamação, dor, espasticidade e neuroproteção. Na Esclerose Múltipla (EM), o SEC está intimamente envolvido nos processos inflamatórios e neurodegenerativos, sendo considerado uma via promissora para intervenções terapêuticas.¹

Os principais receptores do sistema endocanabinoide, CB1 e CB2, estão amplamente distribuídos tanto no sistema nervoso central quanto no periférico. O receptor CB1 é predominantemente expresso nos neurônios e está associado aos efeitos psicoativos da cannabis, além de desempenhar um papel fundamental na modulação da dor e da espasticidade. O receptor CB2, por sua vez, é encontrado principalmente em células do sistema imunológico, onde regula respostas inflamatórias diversas.

Estudos pré-clínicos em modelos animais de EM têm revelado o potencial terapêutico dos canabinoides em retardar a progressão da doença. Esses compostos exercem efeitos imunomoduladores, prevenindo a infiltração de células imunológicas no sistema nervoso central e atenuando a resposta inflamatória crônica. Além disso, apresentam propriedades neuroprotetoras, como a redução da excitotoxicidade neuronal, prevenção da perda axonal e morte celular, além de favorecer a sobrevivência de oligodendrócitos e promover a remielinização.5

Principais ações terapêuticas dos derivados canabinoides que retardam a progressão da EM.
Principais ações terapêuticas dos derivados canabinoides que retardam a progressão da EM. Fonte: MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.

Os derivados canabinoides demonstram efeitos neuroprotetores significativos na EM, principalmente devido a sua capacidade de regular a excitabilidade neuronal no SNC, resultando em proteção contra danos neuronais. O receptor CB1, por exemplo, modula a liberação de neurotransmissores e limita o estado excitatório dos neurônios, contribuindo para a neuroproteção.6 A ativação dos receptores CB2 tem mostrado reduzir a secreção de TNF-α e radicais livres oxidativos, o que é essencial para o controle da inflamação no SNC e mitigação do estresse oxidativo. O canabidiol, em particular, possui propriedades antioxidantes notáveis, que ajudam a reduzir o estresse oxidativo e a peroxidação lipídica. Além disso, o CBD reduziu os fatores de apoptose celular induzida, como fragmentação do DNA e ativação da caspase-3. Essas descobertas destacam os potenciais efeitos neuroprotetores do CBD contra danos oxidativos comuns em condições neurodegenerativas.7

A interação dos canabinoides com o SEC pode ocorrer de forma direta, através da regulação de canais iônicos axonais, e de forma indireta, promovendo a sobrevivência e remielinização de oligodendrócitos em axônios desmielinizados. A expressão dos receptores CB1 e CB2 no tronco cerebral, uma área crítica onde convergem as vias motoras e sensoriais, desempenha um papel crucial nos efeitos potencialmente benéficos dos canabinoides, especialmente em relação ao controle do tônus muscular e das funções autonômicas no contexto da EM.8

Evidências Científicas

A exploração de terapias baseadas em cannabis para o tratamento da esclerose múltipla tem gerado um volume substancial de pesquisas, com mais de 100 estudos conduzidos até o momento. Dentre esses, aproximadamente 50 são ensaios clínicos, incluindo cerca de 20 ensaios clínicos randomizados duplo-cegos, que investigam a influência do sistema endocanabinoide e dos derivados canabinoides na esclerose múltipla. Esses estudos têm fornecido informações valiosas e qualificadas sobre a eficácia e segurança dos canabinoides, destacando seu potencial tanto para o controle dos sintomas quanto para a possível modulação da progressão da doença.

Em 1988, um ensaio clínico randomizado duplo-cego e cruzado nos EUA forneceu a primeira evidência direta do impacto clínico dos canabinoides na EM. O estudo incluiu 13 pacientes com EM e espasticidade, que receberam doses de THC variando de 2,5 a 15 mg/dia. Os resultados mostraram uma melhora significativa na espasticidade, em comparação com o placebo, evidenciando o potencial dos canabinoides na gestão dessa condição debilitante.9

Em 2010, a Agência Europeia de Medicamentos aprovou o nabiximols, um medicamento à base de cannabis, como tratamento de segunda linha para espasticidade associada à EM em diversos países, incluindo Brasil, Canadá, Israel, Colômbia, Chile e Nova Zelândia. Este avanço foi respaldado por uma série de estudos que demonstraram a eficácia do nabiximols na redução da espasticidade e na melhora da qualidade de vida dos pacientes.10

Nabiximols, conhecido comercialmente como Sativex®, é um spray bucal que combina THC e CBD na proporção 1:1. Os Nabiximols têm mostrado eficácia na redução da espasticidade, dor, e melhoria da qualidade de vida dos pacientes com EM. Estudos clínicos demonstraram que o tratamento pode resultar em uma diminuição significativa na espasticidade e em sintomas associados, como dor e distúrbios do sono. Em um estudo multicêntrico de fase III, a administração de Nabiximols foi associada a uma redução de 51% na espasticidade da EM.11

Estudos recentes demonstram que os nabiximols oferecem benefícios significativos no tratamento da disfunção urinária em pacientes com Esclerose Múltipla. Em uma coorte de pacientes com disfunção vesical, houve uma redução de 35% nos sintomas relacionados à bexiga após seis meses de tratamento, como evidenciado pelos escores do IPSS (Índice Internacional de Sintomas Prostáticos). Os dados urodinâmicos também indicaram uma melhora marcante na hiperatividade do músculo detrusor, com uma diminuição de até 50% na pressão do detrusor em pacientes com bexiga hipercontrátil. Essa melhora foi acompanhada por uma redução nos sintomas de urgência urinária, frequência e noctúria, indicando que os nabiximols são eficazes não apenas no controle da espasticidade muscular, mas também na disfunção urinária em pessoas com EM, mesmo naquelas que não haviam sido tratadas previamente para problemas urinários. Esses resultados reforçam o potencial dos canabinoides como uma opção terapêutica importante para melhorar a qualidade de vida de pacientes com EM e disfunção vesical.12

Além do nabiximols, outras pesquisas revelaram que óleos de cannabis medicinal — tanto ricos em THC, ricos em CBD, quanto combinações de THC e CBD — demonstraram eficácia na redução da dor, inflamação, espasticidade e distúrbios do sono em pacientes com EM. Esses tratamentos mostraram-se seguros e bem tolerados, ampliando as opções terapêuticas para a gestão dos sintomas da EM.13

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Conclusão

A pesquisa sobre o uso de cannabis no tratamento da esclerose múltipla  tem avançado significativamente, revelando um potencial promissor para essas terapias na gestão da doença. Os estudos realizados, destacam a capacidade dos canabinoides em controlar sintomas debilitantes como espasticidade, dor e distúrbios do sono, além de sugerirem benefícios na modulação da progressão da doença. A aprovação de medicamentos como o nabiximols e os resultados positivos de diversos estudos reforçam a eficácia dos canabinoides, especialmente na melhora da qualidade de vida dos pacientes. 

Embora a necessidade de pesquisas adicionais persista para aprofundar o conhecimento e otimizar a aplicação desses tratamentos, a crescente evidência científica valida a cannabis como uma opção terapêutica relevante e segura para a esclerose múltipla. É essencial que os médicos se atualizem constantemente sobre o tema para oferecer as melhores opções terapêuticas aos seus pacientes. Nesse contexto, a WeCann, referência internacional em educação médica na área, disponibiliza recursos e informações tecnicamente qualificadas e atualizadas sobre cannabis medicinal, auxiliando os médicos no processo de tomada de decisão clínica e na implementação de terapias personalizadas e seguras, promovendo um atendimento de excelência, sempre alinhado com as mais recentes evidências científicas.

Referências

  1. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
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Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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