Entendendo a psicotoxicidade do Δ9-THC: mecanismos subjacentes

Publicado em 28/08/24 | Atualizado em 11/09/24 Leitura: 10 minutos

Efeitos adversosTetrahidrocanabinol (THC)

O Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) é o principal componente psicotrópico da planta Cannabis sativa e tem ganhado destaque significativo na medicina devido aos seus diversos benefícios terapêuticos. Este canabinoide demonstra eficácia no tratamento de várias condições clínicas, incluindo dor crônica, espasticidade muscular, náuseas e vômitos associados à quimioterapia, e anorexia em pacientes com HIV/AIDS.¹ O potencial do Δ9-THC para aliviar sintomas debilitantes e melhorar a qualidade de vida dos pacientes é amplamente reconhecido.

No entanto, junto aos benefícios terapêuticos, o Δ9-THC também pode apresentar um perfil de efeitos adversos, entre esses a psicotoxicidade. A psicotoxicidade refere-se aos efeitos adversos no sistema nervoso central que podem resultar em comprometimento cognitivo, alterações no humor, psicose e outros distúrbios psiquiátricos. Esses efeitos variam de acordo com a dose, a frequência de uso e a suscetibilidade individual, mas compreender os mecanismos subjacentes à psicotoxicidade do Δ9-THC é crucial para maximizar benefícios terapêuticos e minimizar potenciais efeitos adversos associados ao uso medicinal dessa molécula. No post de hoje, vamos explorar a psicotoxicidade do THC e seus mecanismos subjacentes.

Psicoatividade vs Psicotomimetismo vs Psicotoxicidade

A distinção entre psicoatividade, psicotomimetismo e psicotoxicidade é fundamental para entender os diversos efeitos do Δ9-THC no sistema nervoso central.

Psicoatividade

A psicoatividade refere-se a qualquer efeito de uma substância que altera a percepção, o humor, o comportamento, a consciência ou a cognição, atravessando a barreira hematoencefálica e interagindo com o sistema nervoso central. Substâncias psicoativas são amplamente utilizadas na medicina e incluem analgésicos que alteram a percepção da dor, antidepressivos que modulam o humor, ansiolíticos como benzodiazepínicos que reduzem a ansiedade, e o próprio canabidiol (CBD), conhecido por seus efeitos calmantes e ansiolíticos. A psicoatividade, nesse contexto, não implica necessariamente em efeitos eufóricos ou inebriantes, mas sim, em alterações funcionais no cérebro que podem ser terapêuticas.

Psicotomimetismo

O psicotomimetismo descreve efeitos específicos de uma substância que imitam sintomas psicóticos, como alucinações, ilusões e delírios. Substâncias psicotomiméticas são aquelas que, ao serem consumidas, podem induzir estados semelhantes a condições psicóticas. O Δ9-THC, o principal componente psicoativo da cannabis, pode exibir efeitos psicotomiméticos em doses elevadas ou em indivíduos predispostos. Além da cannabis, muitas drogas de abuso, grandes quantidades de álcool, e determinados medicamentos frequentemente prescritos, como derivados opioides e alguns antidepressivos, também podem apresentar propriedades psicotomiméticas. Esses efeitos são de particular interesse clínico porque podem causar sintomas que mimetizam desordens psiquiátricas graves.

Psicotoxicidade

A psicotoxicidade, por outro lado, refere-se aos efeitos adversos de uma substância no sistema nervoso central, resultando em comprometimento cognitivo, alterações de humor, psicose e outros distúrbios psiquiátricos. No contexto do Δ9-THC, a psicotoxicidade pode se manifestar como ansiedade intensa, agitação psicomotora, paranoia, e, em casos extremos, sintomas psicóticos ou crises convulsivas. É importante notar que a psicotoxicidade é dependente da dose, da susceptibilidade de cada indivíduo em relação ao Δ9-THC, e das condições internas (mindset) e externas (setting) associadas ao momento do uso da substância.

O mindset de um indivíduo é o estado mental e o conjunto de atitudes mentais que influencia diretamente seus comportamentos e pensamentos. Esse mindset, aliado às condições ambientais externas (setting), pode ter um impacto significativo nos efeitos psicoativos, sejam eles positivos ou negativos, da cannabis e do THC. Assim, a mesma dose de uma quimiovariante específica de cannabis pode produzir efeitos psicológicos completamente diferentes, dependendo do mindset e o setting do indivíduo.²

Existem várias estratégias terapêuticas desenvolvidas para minimizar os efeitos psicotóxicos do THC. Uma abordagem eficaz é a titulação lenta e progressiva da dose de THC. Esse método envolve iniciar com uma dose muito baixa de THC e aumentá-la gradualmente até alcançar o efeito terapêutico desejado, minimizando os riscos de psicotoxicidade.³ Além disso, a coadministração de CBD tem mostrado ser bastante eficaz na atenuação dos efeitos adversos do THC. O CBD, por suas propriedades moduladoras, pode contrabalançar os efeitos psicoativos negativos do THC, proporcionando um uso mais seguro da cannabis medicinal.

Saiba mais dos benefícios clínicos associados ao uso do THC : THC: Benefícios e usos medicinais (wecann.academy)

Estudos comparativos evidenciaram a importância da proporção de THC e CBD na redução da psicotoxicidade. Um estudo específico comparou a incidência de efeitos psicotóxicos entre Marinol® (THC sintético) e Sativex® (nabiximols, um extrato de cannabis contendo proporções semelhantes de THC e CBD). Os resultados mostraram que a dose média de extrato de cannabis necessária para causar psicotoxicidade era mais que o dobro da dose de THC sintético para induzir os mesmos efeitos adversos.³ Vários outros ensaios clínicos corroboram que a combinação de tetrahidrocanabinol com outros canabinoides diminui significativamente os potenciais efeitos psicotóxicos do THC, especialmente quando administrados por via oral, evidenciando a eficácia dessa abordagem no manejo clínico.4

Mecanismos de psicotoxicidade do Δ9-THC

Para entender a psicotoxicidade do Δ9-THC, é importante primeiro revisar sua farmacocinética e farmacodinâmica. Quando inalado, o Δ9-THC é rapidamente absorvido pelos pulmões e entra na circulação sistêmica, atingindo o cérebro em poucos minutos. Quando ingerido, sua absorção é significativamente mais lenta e alcança concentrações séricas muitísismo mais baixas.

O Δ9-THC exerce seus efeitos primariamente ao se ligar aos receptores canabinoides do tipo 1 (CB1) localizados predominantemente no cérebro. A ativação desses receptores modula a liberação de vários neurotransmissores, incluindo dopamina, ácido gama-aminobutírico (GABA) e glutamato, alterando a função sináptica e a comunicação neuronal.

A interação do Δ9-THC com os receptores CB1 afeta diversos sistemas de neurotransmissão. O Δ9-THC aumenta a liberação de dopamina no núcleo accumbens, uma área do cérebro associada à recompensa e ao prazer. Na maioria dos casos a ativação dos receptores CB1 leva a uma diminuição na liberação dos neurotransmissores, com exceção da dopamina.5 Esse aumento na dopamina é similar ao observado com outras substâncias de abuso e está associado ao risco de desenvolvimento de dependência e sintomas psicóticos, como alucinações e delírios.

Fatores de risco e vulnerabilidade

A compreensão dos fatores de risco e vulnerabilidade é essencial para mitigar os efeitos potencialmente psicotóxicos do Δ9-THC. Diversos elementos podem influenciar a suscetibilidade individual aos efeitos adversos, incluindo genética, idade de início de uso e padrões de consumo.

Genética

A suscetibilidade aos efeitos psicotóxicos do Δ9-THC pode variar consideravelmente entre os indivíduos, dependendo de fatores genéticos. Polimorfismos em genes relacionados ao sistema endocanabinoide têm sido identificados como fatores críticos que podem modificar a resposta ao Δ9-THC e aumentar o risco de efeitos adversos. A variabilidade genética pode influenciar a forma como o THC é metabolizado e a intensidade dos efeitos psicoativos experimentados.

Por exemplo, um estudo genético que analisou os efeitos da cannabis sobre sintomas de ansiedade em 1.424 adolescentes ao longo de cinco anos revelou que o uso de cannabis estava associado a um aumento nos sintomas de ansiedade apenas em indivíduos portadores do alelo curto do gene 5-HTTLPR. Este comportamento não foi observado na população geral, destacando como variantes genéticas específicas podem tornar certos indivíduos mais suscetíveis aos efeitos adversos do THC, como aumento de sintomas ansiosos.6 Este estudo exemplifica como a predisposição genética pode influenciar a resposta individual à cannabis, destacando a importância de considerar a genética ao avaliar o risco de psicotoxicidade associado ao Δ9-THC.

Via de administração e Dose

A via de administração e a dose de Δ9-THC são determinantes críticos na avaliação do risco de psicotoxicidade. O de doses elevadas de THC através da via inalada está associado a uma maior probabilidade de desenvolvimento de dependência, psicose e outros efeitos psiquiátricos adversos. Doses elevadas de THC intensificam os efeitos psicoativos e potencialmente adversos, facilitando a ocorrência de sintomas psicóticos, como alucinações e delírios.  Por outro lado, a administração oral de THC em doses baixas tem mostrado ser uma abordagem eficaz para minimizar esses riscos.7

Além disso, uma revisão de escopo revelou que as vias de administração, como óleos e soluções orais, cápsulas e sprays oromucosos, são frequentemente mencionadas em estudos sobre cannabis medicinal. Essas vias são amplamente utilizadas em países com regulamentação específica, como a Austrália e o Canadá, e têm sido observadas em diversas pesquisas como as mais compradas em dispensários. Essa variedade de métodos administrativos reflete a necessidade de um uso bem informado, considerando a via de administração como um fator fundamental para a segurança e eficácia da cannabis medicinal.7

Em suma, com a identificação e compreensão desses fatores de risco e vulnerabilidade, é possível desenvolver estratégias mais eficazes para prevenir e tratar potenciais efeitos adversos do Δ9-THC. Isso inclui, portanto, a consideração de abordagens personalizadas que levem em conta a genética individual, estratégias prescritivas focadas em baixas doses de THC via oral, preferencialmente, associadas ao CBD, a educação dos pacientes e familiares sobre os potenciais efeitos adversos e a monitorização clínica cuidadosa.

Conclusão

Compreender a psicotoxicidade do Δ9-THC é crucial para otimizar seu uso terapêutico e minimizar riscos. Embora o Δ9-THC ofereça benefícios significativos no tratamento de condições como dor crônica e náuseas associadas à quimioterapia, seus efeitos psicomiméticos podem provocar efeitos adversos como comprometimento cognitivo e psicose. A psicotoxicidade é modulada por fatores como dose e susceptibilidade genética, sendo essencial adaptar a abordagem terapêutica para cada paciente. Estratégias como a titulação lenta e progressiva da dose, associada ao uso de CBD, têm se mostrado eficazes na redução dos efeitos adversos. A consideração de fatores genéticos e a gestão cuidadosa do consumo são fundamentais para garantir um uso seguro e eficaz do Δ9-THC, maximizando seus benefícios enquanto minimiza os riscos associados. 

É de fundamental importância que os médicos se atualizem continuamente sobre o uso da cannabis medicinal e outros tópicos relacionados, para que possam oferecer a melhor abordagem terapêutica para seus pacientes. Nesse contexto, a WeCann, referência internacional em educação médica na área, disponibiliza recursos e informações tecnicamente qualificadas e atualizadas sobre cannabis medicinal, auxiliando os médicos no processo de tomada de decisão clínica e na implementação de terapias personalizadas e seguras, promovendo um atendimento de excelência, sempre alinhado com as mais recentes evidências científicas.

Referências

  1. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Childs, E, Lutz, J. A. & de Wit, H. Dose-related effects of delta-9-THC on emotional responses to acute psychosocial stress. Drug Alcobol Depend. 177 136-144 (2017).
  3. MacCallum, C. A. & Russo, E. B. Practical Considerations in medical cannabis administration and dosing. Eur.J. Intern. Med., 49, 12-19 (2018).
  4. Russo, E. B. Taming THC: potential cannabis synerg) and phytocannabinoid-terpenoid entourage effects: Phytocannabinoid-terpenoid entourage effects. Br.J. Pharmacol. 163, 1344-1364 (2011).
  5. Covey, D. P., Mateo, Y., Sulzer, D., Cheer, J. F & Lovinger, D. M. Endocannabinoid modulation of dopamine neurotransmission. Neuropharmacolog) 124, 52-61 (2017).
  6. Twomey CD. Association of cannabis use with the development of elevated anxiety symptoms in the general population: a meta-analysis. J Epidemiol Community Health 2017;71(8):811-6. 
  7. Vinette B, Côté J, El-Akhras A, Mrad H, Chicoine G, Bilodeau K. Routes of administration, reasons for use, and approved indications of medical cannabis in oncology: a scoping review. BMC Cancer. 2022 Mar 24;22(1):319. doi: 10.1186/s12885-022-09378-7. PMID: 35331185; PMCID: PMC8953058.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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