O lúpus eritematoso sistêmico (LES), é uma condição autoimune crônica que afeta múltiplos órgãos e sistemas, causando inflamação generalizada e danos teciduais. Embora as terapias tradicionais, como corticosteroides e imunossupressores, sejam amplamente utilizadas, elas frequentemente apresentam efeitos colaterais significativos. Nesse contexto, os canabinoides surgem como uma alternativa promissora, com propriedades anti-inflamatórias, imunomoduladoras e analgésicas. No post de hoje, vamos abordar o potencial terapêutico dos canabinoides no manejo do lúpus, considerando suas ações no sistema endocanabinoide (SEC), os avanços científicos, limitações e perspectivas futuras.
Lúpus Eritematoso Sistêmico
O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença autoimune crônica em que o sistema imunológico ataca tecidos e órgãos saudáveis, resultando em inflamação sistêmica e danos multissistêmicos. Essa condição afeta principalmente mulheres em idade fértil, com uma proporção de 9:1 em relação aos homens. Embora a etiologia exata do LES não seja completamente compreendida, sabe-se que a doença resulta de uma interação complexa entre fatores genéticos, ambientais, hormonais e imunológicos. Entre os fatores predisponentes estão alterações genéticas, como polimorfismos nos genes HLA-DR2 e HLA-DR3, além de influências ambientais, como exposição à radiação ultravioleta e infecções virais, particularmente o vírus Epstein-Barr.¹ Fatores hormonais, como a influência dos estrogênios, também desempenham papel significativo, enquanto alterações imunológicas, como defeitos na apoptose celular, contribuem para a produção de autoanticorpos.
O LES apresenta manifestações clínicas amplas e variáveis, que podem ir de casos leves a formas graves e potencialmente fatais. Entre os sintomas mais comuns estão fadiga, febre baixa, perda de peso, erupções cutâneas, como a característica em “asa de borboleta” no rosto, fotossensibilidade, artrite não deformante, nefropatia lúpica com proteinúria e hematúria, além de complicações cardiovasculares, como pericardite e aterosclerose precoce.² Outros sintomas incluem anemia hemolítica, trombocitopenia, convulsões e psicose. Devido à diversidade de manifestações, o diagnóstico do LES pode ser desafiador e é baseado em uma combinação de critérios clínicos e exames laboratoriais. Testes como a pesquisa de anticorpos antinucleares (ANA), anti-dsDNA e anti-Smith, além da avaliação da função renal e de marcadores inflamatórios, como PCR e VHS, são cruciais para confirmar o diagnóstico.²
O tratamento do LES visa controlar a inflamação, aliviar os sintomas e prevenir complicações. Terapias de base incluem o uso de hidroxicloroquina, corticosteroides e imunossupressores, como ciclofosfamida e micofenolato mofetil. Para casos mais graves ou refratários, tratamentos biológicos, como o belimumabe, têm se mostrado eficazes. Além disso, o manejo do LES exige um acompanhamento multidisciplinar, envolvendo reumatologistas, nefrologistas e outros especialistas, dependendo das manifestações específicas do paciente. Apesar dos avanços terapêuticos, complicações crônicas ainda representam desafios no manejo da doença.
O crescente interesse por abordagens terapêuticas complementares, como o uso de canabinoides, tem despertado atenção no contexto do LES. A capacidade dos canabinoides de interagir com o sistema endocanabinoide, regulando a inflamação e a dor, oferece novas perspectivas para o manejo de sintomas crônicos. Embora mais estudos sejam necessários, as propriedades imunomoduladoras e anti-inflamatórias dos canabinoides podem ser particularmente benéficas em doenças autoimunes como o LES, ampliando as opções terapêuticas disponíveis para pacientes que convivem com essa condição debilitante.
Sistema Endocanabinoide e o Lúpus
O SEC é composto por três elementos principais: receptores canabinoides, ligantes endógenos e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses ligantes. Os dois principais receptores do SEC, CB1 e CB2, têm papeis distintos na fisiologia humana. Enquanto o receptor CB1 é predominantemente expresso no sistema nervoso central, o receptor CB2 é amplamente encontrado em células do sistema imunológico, como linfócitos B, células T, monócitos e macrófagos. Essa distribuição do receptor CB2 torna-o um alvo fundamental na regulação da resposta imune.
A ativação dos receptores CB2 tem sido associada a efeitos imunomoduladores significativos. No contexto do LES, a estimulação desses receptores pode reduzir a produção de citocinas pró-inflamatórias, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e a interleucina-6 (IL-6), ao mesmo tempo em que promove um equilíbrio na resposta entre células T efetoras e regulatórias. Essa interação pode limitar a inflamação sistêmica característica da doença e reduzir o dano tecidual associado.³
Além disso, os receptores CB2 participam da modulação da atividade das células apresentadoras de antígenos, como os macrófagos e as células dendríticas. Essa interação regula a apresentação de autoantígenos ao sistema imunológico, um processo essencial na patogênese do LES. Dessa forma, o CB2 atua como um mediador na restauração da auto tolerância imunológica, um fator-chave na prevenção de ataques autoimunes.³
Além dos receptores CB1 e CB2, o SEC inclui uma variedade de receptores não convencionais, como os canais iônicos da família TRPV (potencial receptor transitório vaniloide) e os receptores nucleares PPARs (receptores ativados por proliferadores de peroxissoma). Esses receptores também desempenham papeis relevantes na regulação imunológica.
Os canais TRPV, especialmente o TRPV1, são altamente expressos em células do sistema imunológico, como macrófagos e células T. A ativação do TRPV1 pela anandamida (AEA), um endocanabinoide, pode regular a liberação de citocinas e a proliferação celular.4 No LES, essa interação pode contribuir para a redução da inflamação e para a modulação da resposta autoimune.
Os receptores nucleares PPARs, particularmente as isoformas PPAR-α e PPAR-γ, são ativados por endocanabinoides e fitocanabinoides, como o CBD. Eles regulam a expressão de genes envolvidos em processos inflamatórios e metabólicos.4 No LES, os PPARs podem atenuar a atividade inflamatória ao modular a secreção de citocinas e favorecer a homeostase celular.
Evidências Científicas
Estudos recentes têm destacado o potencial terapêutico dos canabinoides no manejo de doenças autoimunes, como o lúpus eritematoso sistêmico. Algumas pesquisas corroboram com o papel imunossupressor de derivados canabinoides, como o CBD, destacando sua capacidade de modular o sistema imunológico, reduzindo a atividade exacerbada de células T e B responsáveis pela agressão autoimune.
Uma revisão publicada em 2020 enfatizou o efeito anti-inflamatório do CBD, que ocorre por meio da interação com receptores do sistema endocanabinoide e outros alvos moleculares, como os receptores ativados por proliferadores de peroxissomos (PPARs) e o receptor acoplado à proteína G GPR55. Essa modulação reduz a liberação de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1β, IL-6, TNF-α e IFN-γ, fatores cruciais na perpetuação do estado inflamatório crônico observado no LES.5
Além de sua atividade imunomoduladora, o CBD demonstra benefícios em sintomas comuns do lúpus, como dores articulares e musculares. Um estudo de 2022 investigou o uso do CBD no tratamento da artrite, condição que compartilha características inflamatórias com o LES. Os resultados mostraram melhorias significativas na redução da dor, na função física e na qualidade do sono, sugerindo que o CBD pode ser uma alternativa promissora para o manejo da dor em pacientes com lúpus.6
Um estudo clínico realizado em 2022 investigou o uso do lenabasum, um modulador do receptor CB2, em 101 pacientes com lúpus eritematoso sistêmico . Durante 12 semanas, os participantes receberam o fármaco ou um placebo, e os resultados indicaram que o lenabasum foi seguro e bem tolerado pela maioria dos pacientes. No entanto, sua eficácia em reduzir os níveis de dor, um dos principais sintomas do LES, foi limitada, não mostrando melhorias clinicamente significativas. Apesar disso, a segurança do lenabasum pode abrir caminho para investigações adicionais sobre sua aplicação em outras manifestações da doença.7
Para entender mais do papel da cannabis na dor crônica acesse: Cannabis no manejo da Dor Crônica – WeCann Academy
Conclusão
O uso de canabinoides no manejo do LES ainda é um campo emergente, repleto de promessas e desafios. Estudos clínicos e pré-clínicos sugerem que compostos como o CBD e o lenabasum possuem propriedades imunomoduladoras e anti-inflamatórias que podem ser benéficas para pacientes com LES, aliviando sintomas como dor e inflamação crônica. No entanto, as evidências científicas também destacam a complexidade dessas intervenções, com resultados variáveis dependendo do composto utilizado, da dosagem e do contexto clínico.
Dado o caráter multifacetado do LES e as limitações das terapias tradicionais, os canabinoides representam uma via promissora para abordagens complementares ou até mesmo alternativas. Entretanto, são necessários mais estudos controlados e robustos para definir com precisão os potenciais benefícios, riscos e mecanismos envolvidos no uso de canabinoides para o tratamento do LES.
Nesse contexto, é crucial que os médicos se mantenham atualizados sobre os avanços no tratamento do lúpus eritematoso sistêmico e as potenciais aplicações da cannabis medicinal, garantindo a melhor assistência aos seus pacientes. Iniciativas como a WeCann desempenham um papel essencial ao disseminar informações atualizadas e fundamentadas em evidências científicas, capacitando os profissionais de saúde a incorporar essas abordagens terapêuticas de forma segura e eficaz, com foco na melhoria da qualidade de vida dos pacientes.
Referências
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