Quimiovariantes de Cannabis: uma introdução às diversas variedades

Publicado em 20/08/24 | Atualizado em 26/08/24 Leitura: 11 minutos

Canabinoides

A planta de Cannabis é notavelmente versátil, sendo utilizada para diversos fins como medicinais e industriais. Uma das características mais interessantes desta planta é a diversidade química encontrada em suas diferentes variedades, ou “quimiovariantes”.  A Cannabis é uma planta da família Cannabaceae, tem se destacado no campo da medicina devido à sua ampla gama de aplicações terapêuticas. Originária da Eurásia, a Cannabis tem sido cultivada por diversas culturas ao longo da história, principalmente por suas propriedades medicinais. Atualmente, a ciência moderna continua a explorar os complexos mecanismos de ação de seus principais compostos, os fitocanabinoides, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Este texto oferece uma introdução abrangente às quimiovariantes de Cannabis, explorando suas propriedades, usos e a importância dessa diversidade no contexto médico e farmacológico.

Quimiovariantes

O termo “quimiovariante” refere-se a uma subcategoria dentro de uma espécie de planta que possui um perfil químico distinto, especialmente em relação à produção de compostos bioativos. No contexto da Cannabis, as quimiovariantes são definidas pelos diferentes perfis de canabinoides e terpenos que produzem. Esses perfis químicos únicos são cruciais para determinar os efeitos terapêuticos e os potenciais usos medicinais das diferentes variedades da planta.

Canabinoides: Os principais componentes bioativos

Os canabinoides são compostos químicos que interagem com o sistema endocanabinoide humano, modulando uma variedade de processos fisiológicos. Os dois canabinoides mais conhecidos e estudados são:

  • Tetraidrocanabinol (THC): Principal composto psicotrópico da Cannabis, responsável pelos efeitos eufóricos da planta. Além disso, o THC possui propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e antieméticas, sendo útil no tratamento de dor crônica, náusea e vômitos associados à quimioterapia.

 

  • Canabidiol (CBD): Um composto não psicotrópico que tem ganhado popularidade por suas propriedades ansiolíticas, antiepilépticas, anti-inflamatórias e neuroprotetoras. O CBD é frequentemente utilizado para tratar condições como ansiedade, epilepsia e inflamações diversas

 

Além do THC e CBD, existem outros canabinoides importantes, como o CBG (cannabigerol), o CBN (canabinol) e o CBC (canabicromeno), entre outros, cada um com suas próprias propriedades terapêuticas.

A diversidade genética da Cannabis, combinada com as diferentes condições ambientais em que a planta é cultivada, resulta em uma vasta gama de quimiovariantes. Esta diversidade é benéfica, pois permite a seleção de quimiovariantes específicas para tratar uma variedade de condições médicas. Por exemplo, pacientes com dor crônica podem se beneficiar de quimiovariantes ricas em THC, enquanto aqueles que sofrem de ansiedade podem preferir quimiovariantes ricas em CBD.

Classificação das Quimiovariantes

Para entender melhor as aplicações terapêuticas da Cannabis, é essencial conhecer suas quimiovariantes, ou subcategorias químicas, que são definidas pelos diferentes perfis de canabinoides. Essas variações químicas resultam em diferentes efeitos terapêuticos, tornando a personalização do tratamento uma possibilidade real para os pacientes.

Quimiovariante Tipo I: Predominantemente Rica em THC

As quimiovariantes Tipo I são caracterizadas por altos níveis de THC  e baixos níveis de CBD. Essas quimiovariantes são especialmente relevantes no contexto medicinal devido às propriedades terapêuticas do THC, que possui efeitos analgésicos, antieméticos e estimulantes do apetite.

Efeitos Terapêuticos

  • Analgésicos: A quimiovariante Tipo I é caracterizada por sua alta concentração de THC, reconhecido amplamente como um potente analgésico. O THC exerce sua ação principalmente nos receptores canabinoides do sistema nervoso central¹, modulando a percepção da dor e proporcionando alívio significativo em casos de dor crônica, como em pacientes com câncer ou doenças reumáticas. Além disso, o THC interage com os receptores vaniloides TRPV1, que desempenham um papel crucial na sensibilidade à dor e na regulação da resposta inflamatória, ampliando ainda mais seus efeitos moduladores sobre a percepção da dor.²  Estudos clínicos corroboram a eficácia do THC na redução da dor neuropática e inflamatória, oferecendo uma alternativa valiosa para pacientes que não obtêm alívio com tratamentos convencionais. Esta propriedade analgésica do THC torna as quimiovariantes Tipo I particularmente úteis no manejo da dor crônica, proporcionando uma opção terapêutica eficaz e direcionada para pacientes que enfrentam desafios significativos com a dor persistente.

 

  • Antieméticos: A capacidade do THC de reduzir náuseas e vômitos é particularmente benéfica para pacientes submetidos a tratamentos quimioterápicos. O THC exerce seus efeitos antieméticos ao atuar nos receptores CB1 localizados no tronco encefálico, uma área responsável pelo controle dos reflexos de vômito. Isso permite uma redução eficaz desses sintomas. Pesquisas indicam que o THC é tão eficaz quanto, ou até mais eficaz do que, outros antieméticos, especialmente quando utilizado em combinação com agentes como a proclorperazina.4 Em oncologia, o uso do THC para tratar náuseas e vômitos associados à quimioterapia  tem se mostrado eficaz, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes durante o tratamento. Desde o final da década de 1980, medicamentos à base de THC, como dronabinol e nabilona, têm sido aprovados pela FDA para o tratamento de náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia.

 

  • Estimulantes do Apetite: Talvez um dos efeitos mais conhecidos e documentados do THC seja como estimulante do apetite. Isso pode beneficiar pacientes com condições que levam à perda de apetite e peso, como HIV/AIDS ou câncer. Para pacientes com anorexia ou caquexia associada a doenças graves, o THC pode estimular o apetite e ajudar na manutenção do peso corporal, sendo uma opção terapêutica importante em cuidados paliativos.

 

Quimiovariante Tipo II: Equilíbrio entre THC e CBD

As quimiovariantes Tipo II são caracterizadas por níveis equilibrados de THC e CBD. Estas quimiovariantes são particularmente importantes no contexto medicinal devido à interação entre o THC e o CBD, que pode proporcionar uma gama de efeitos terapêuticos equilibrados com um menor risco de efeitos adversos.

Efeitos Terapêuticos

  • A quimiovariante Tipo II se destaca por equilibrar THC e CBD, proporcionando uma combinação única de efeitos terapêuticos que podem ser comparáveis aos das quimiovariantes Tipo I, mas com uma redução significativa nos potenciais efeitos adversos do THC. Este equilíbrio torna as quimiovariantes Tipo II especialmente interessantes para o alívio da dor crônica, tratamento da espasticidade e manejo de distúrbios do sono. Além disso, estas quimiovariantes são eficazes no controle de náuseas e vômitos, tornando-se uma opção terapêutica importante para os pacientes que apresentam efeitos colaterais do THC com as quimiovariantes tipo I. A presença de CBD ajuda a moderar os efeitos psicotrópicos do THC, promovendo um perfil terapêutico mais seguro e bem tolerado, o que amplia suas aplicações médicas e potencializa seus benefícios em variadas condições clínicas.

 

Quimiovariante Tipo III: Predominantemente rica em CBD

As quimiovariantes Tipo III são caracterizadas por altos níveis de CBD e baixos níveis de THC. Essas quimiovariantes são de particular interesse no contexto medicinal devido às propriedades terapêuticas do CBD, que oferece diversos benefícios sem os efeitos psicotrópicos do THC.

Efeitos Terapêuticos

  • Analgésicos: As quimiovariantes Tipo III são valorizadas por sua alta concentração de CBD, reconhecido por suas propriedades analgésicas e anti-inflamatórias. O CBD atua de maneira complexa no sistema endocanabinoide, modulando a percepção da dor e oferecendo alívio em diferentes casos de dor crônica. Além disso, o CBD interage com receptores vaniloides, como TRPV1, que são fundamentais na regulação da sensibilidade à dor e na resposta inflamatória.  Um estudo, publicado no Journal of Clinical Medicine5, em 2019, acompanhou 367 pacientes com fibromialgia que foram tratados com Cannabis medicinal por um período de seis meses. Os resultados deste estudo mostraram que o Canabidiol pode ser uma opção eficaz e segura, destacando-se por suas baixas taxas de dependência e ausência de efeitos adversos graves. Quando comparado com os opioides, que são frequentemente associados a altos riscos de dependência e efeitos colaterais severos, o Canabidiol se apresenta como uma alternativa viável e promissora para o manejo da dor crônica em pacientes com fibromialgia.

 

  • Anticonvulsivantes: Uma das aplicações mais bem documentadas do CBD é no tratamento de convulsões. O CBD tem mostrado eficácia significativa no manejo de epilepsia refratária, especialmente em síndromes como Dravet e Lennox-Gastaut. Sua ação modula a excitabilidade neuronal e reduz a frequência e a severidade das crises, proporcionando uma melhoria na qualidade de vida dos pacientes. Em um estudo multicêntrico envolvendo pacientes com Síndrome de Lennox-Gastaut, o CBD demonstrou uma redução significativa na ocorrência de convulsões ao longo de um período de tratamento de 14 semanas6. Essas descobertas sugerem que o CBD pode representar uma opção terapêutica eficaz e bem tolerada para pacientes com epilepsia refratária, preenchendo uma lacuna importante no arsenal terapêutico disponível para essa condição neurológica desafiadora.

 

  • Ansiolítico: O CBD também é conhecido por suas propriedades ansiolíticas. Ele atua sobre os receptores de serotonina (5-HT1A), ajudando a regular o humor e reduzir a ansiedade. Em 2019, Shannon e colaboradores publicaram uma série de casos envolvendo 103 pacientes adultos, examinando os impactos do CBD nos sintomas de ansiedade e nos distúrbios do sono. Os resultados revelaram uma redução significativa nos escores de ansiedade, com uma diminuição de 79,2% já no primeiro mês, e esses níveis mantiveram-se baixos ao longo de todo o estudo.7

 

Diagrama da distribuição de fitocansbinoides por quimiovariantes específicas
Diagrama da distribuição de fitocansbinoides por quimiovariantes específicas (Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.)

 

Além das quimiovariantes tipo I, II e III, estudos posteriores identificaram variantes adicionais. Em 1987, Fournier et al. descobriram a quimiovariante IV, que se destaca pela predominância de Canabigerol (CBG).8 Já em 2004, Mandolino e Carboni propuseram a quimiovariante V, que inclui variedades sem nenhum canabinoide detectável.9 A compreensão das proporções ideais de THC e CBD é essencial para uma prescrição precisa e assertiva de cannabis medicinal.

Conclusão

As quimiovariantes de Cannabis representam um campo promissor dentro da medicina moderna. A diversidade química da planta permite uma abordagem personalizada no tratamento de diversas condições médicas, desde a dor crônica até a ansiedade e epilepsia. Com o avanço contínuo das pesquisas na área, novas quimiovariantes e aplicações terapêuticas continuarão a ser descobertas, ampliando ainda mais o potencial desta planta. Nesse sentido, é fundamental que os médicos se mantenham atualizados e busquem sempre referências de fontes confiáveis. Nesse contexto, a WeCann é uma valiosa aliada, oferecendo informações sobre cannabis medicinal sempre respaldadas por evidências científicas. É dessa forma que os médicos podem oferecer o melhor cuidado possível aos seus pacientes, aproveitando ao máximo as potencialidades terapêuticas da cannabis.

Referências

  1. Pertwee RG. The diverse CB1 and CB2 receptor pharmacology of three plant cannabinoids: delta9-tetrahydrocannabinol, cannabidiol and delta9-tetrahydrocannabivarin. Br J Pharmacol. 2008 Jan;153(2):199-215. doi: 10.1038/sj.bjp.0707442. Epub 2007 Sep 10. PMID: 17828291; PMCID: PMC2219532.
  2. De Petrocellis L, Di Marzo V. Non-CB1, non-CB2 receptors for endocannabinoids, plant cannabinoids, and synthetic cannabimimetics: focus on G-protein-coupled receptors and transient receptor potential channels. J Neuroimmune Pharmacol. 2010 Mar;5(1):103-21. doi: 10.1007/s11481-009-9177-z. Epub 2009 Oct 22. PMID: 19847654.
  3. Richardson JD, Kilo S, Hargreaves KM. Cannabinoids reduce hyperalgesia and inflammation via interaction with peripheral CB1 receptors. Pain. 1998 Mar;75(1):111-119. doi: 10.1016/S0304-3959(97)00213-3. PMID: 9539680.
  4. Tramèr MR, Carroll D, Campbell FA, Reynolds DJ, Moore RA, McQuay HJ. Cannabinoids for control of chemotherapy induced nausea and vomiting: quantitative systematic review. BMJ. 2001 Jul 7;323(7303):16-21. doi: 10.1136/bmj.323.7303.16. PMID: 11440936; PMCID: PMC34325.
  5. Sagy I, Bar-Lev Schleider L, Abu-Shakra M, Novack V. Safety and Efficacy of Medical Cannabis in Fibromyalgia. J Clin Med. 2019 Jun 5;8(6):807. doi: 10.3390/jcm8060807. PMID: 31195754; PMCID: PMC6616435.
  6. Devinsky O, Patel AD, Cross JH, Villanueva V, Wirrell EC, Privitera M, Greenwood SM, Roberts C, Checketts D, VanLandingham KE, Zuberi SM; GWPCARE3 Study Group. Effect of Cannabidiol on Drop Seizures in the Lennox-Gastaut Syndrome. N Engl J Med. 2018 May 17;378(20):1888-1897. doi: 10.1056/NEJMoa1714631. PMID: 29768152.
  7. Shannon, S, Cannabidiol in Anxiety and Sleep: A Large Case Series. Perm., J. 23, (2019)
  8. Fournier, G., Richez-Dumanois, C., Duvezin, J., & Mathieu, J. P. (1987). Identification of a new chemotype in Cannabis sativa: cannabigerol-dominant plants, biogenetic and agronomic prospects. Planta Medica, 53(3), 277-280.
  9. Mandolino, G., & Carboni, A. (2004). Potential of marker-assisted selection in hemp genetic improvement. Euphytica, 140(1-2), 107-120.
  10. MONTAGNER,Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. Wecann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
Esse texto foi elaborado pelo time de experts da WeCann, baseado nas evidências científicas partilhadas nas referências e, amparado na ampla experiência prescritiva dos profissionais.

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