A Δ9-tetraidrocanabivarina (THCV) é um fitocanabinoide de ocorrência natural, derivado da planta Cannabis sativa. Embora quimicamente semelhante ao Δ9-tetraidrocanabinol (THC), o THCV se distingue crucialmente por ser não psicotrópico em doses terapêuticas, o que lhe confere uma vantagem significativa como agente terapêutico.
O interesse crescente no THCV está ligado à sua capacidade de modular o Sistema Endocanabinoide (SEC) para influenciar processos metabólicos e neurológicos essenciais. No post de hoje, vamos explorar o perfil farmacológico único do THCV e suas promissoras aplicações clínicas no manejo de distúrbios clínicos.
THCV
A Delta-9-tetrahidrocanabivarina (THCV) é um fitocanabinoide naturalmente presente em algumas variedades de Cannabis sativa L.. Diferente do Δ9-THC, a THCV não apresenta efeitos psicotrópicos, característica que amplia seu potencial terapêutico — especialmente no manejo de distúrbios metabólicos, como obesidade e diabetes tipo 2.
O Sistema Endocanabinoide e o Metabolismo Energético
Os efeitos do THCV são mediados pela modulação do Sistema Endocanabinoide (SEC), um sistema neuromodulatório essencial para a manutenção da homeostase corporal.¹
O SEC é composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), moléculas sinalizadoras endógenas (endocanabinoides como anandamida e 2-AG) e enzimas de síntese e degradação. Ele atua como um regulador central de diversos processos fisiológicos, incluindo¹:
- Balanço energético e gasto calórico
- Metabolismo da glicose e da insulina
- Armazenamento de gordura
- Comportamento alimentar e recompensa
A superativação crônica do SEC, especialmente via receptores CB1, tem sido associada à obesidade, resistência à insulina e diabetes tipo 2, tornando esse sistema um alvo farmacológico estratégico para terapias metabólicas.²
Mecanismo de ação duplo do THCV
O THCV apresenta um mecanismo de ação dual e seletivo sobre os principais receptores canabinoides, o que lhe confere um perfil metabólico oposto ao do THC. Enquanto o Δ9-THC atua como agonista do CB1, estimulando apetite e armazenamento de energia, o THCV modula esses efeitos de forma bidirecional.³
1. Antagonismo no Receptor CB1
- Localização e Função: Os receptores CB1 estão amplamente distribuídos no Sistema Nervoso Central (SNC) e em tecidos periféricos, como fígado, músculo esquelético e tecido adiposo. Sua ativação estimula o aumento do apetite, o acúmulo de gordura e a redução da sensibilidade à insulina.¹
- Ação do THCV: Esse fitocanabinoide atua como antagonista neutro do CB1, bloqueando esses efeitos. Essa ação resulta em³:
- Supressão do apetite (efeito hipofágico)
- Melhora da sensibilidade à insulina
- Redução do armazenamento de gordura
- Segurança farmacológica: Diferentemente de antagonistas sintéticos como o rimonabanto, que funcionavam como agonistas inversos e foram descontinuados por efeitos psiquiátricos adversos, o THCV não altera significativamente o humor — sendo considerado um bloqueador mais seguro e fisiológico da sinalização CB1.²
2. Agonismo Parcial no Receptor CB2
- Localização e Função: Os receptores CB2 estão predominantemente presentes em tecidos periféricos — especialmente no sistema imunológico, pâncreas, fígado e tecido adiposo. Sua ativação está associada à redução da inflamação e melhora da sensibilidade à insulina.¹
- Ação do THCV: Essa molécula atua como agonista parcial do CB2, promovendo:4,5
- Efeitos anti-inflamatórios periféricos
- Melhor regulação da glicose
- Potencial aumento do gasto energético
Essa dupla modulação — antagonismo em CB1 e agonismo parcial em CB2 — constitui o núcleo de seus efeitos metabólicos benéficos, equilibrando o controle de apetite, glicemia e inflamação sistêmica.

Para saber mais sobre o Sistema Endocanabinoide, acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide? – WeCann Academy
Além do SEC
Além de sua ação clássica nos receptores canabinoides, a THCV interage com outros alvos moleculares de interesse clínico:
- GPR55: Pode atuar como modulador desse receptor acoplado à proteína G, implicado na regulação da glicose e na sinalização inflamatória.6
- Canais TRP (Transient Receptor Potential): A THCV pode ativar ou inibir canais TRPV1 e TRPA1, influenciando vias de nocicepção, termorregulação e metabolismo energético.6
Essas interações sugerem que a THCV atua de forma multimodal, com potencial de sinergia metabólica e neuroprotetora.
Uma metáfora funcional
Do ponto de vista fisiológico, a ação da THCV pode ser comparada a um freio e um acelerador seletivos dentro do sistema endocanabinoide:
- Freio (CB1): bloqueia os sinais que promovem o armazenamento de gordura e o aumento do apetite.
- Acelerador (CB2): estimula vias anti-inflamatórias e melhora a eficiência metabólica.
Esse equilíbrio confere à THCV um papel singular no restabelecimento da homeostase metabólica, tornando-a uma promissora ferramenta terapêutica para o manejo de distúrbios como obesidade, resistência insulínica e síndrome metabólica.
Potencial terapêutico do THCV
O THCV comporta-se predominantemente como um antagonista do receptor CB1 e agonista parcial do receptor CB2. Essa dualidade o posiciona como um candidato terapêutico relevante em condições metabólicas e neuropsiquiátricas, especialmente por modular o sistema endocanabinoide de forma a restaurar a homeostase metabólica e neurológica sem induzir euforia.
No contexto metabólico, o antagonismo ao receptor CB1 exerce um papel crucial na modulação do apetite, da sensibilidade à insulina e do equilíbrio energético. Estudos pré-clínicos e clínicos sugerem que o THCV pode atuar como um regulador metabólico capaz de melhorar o controle glicêmico, otimizar a função das células β pancreáticas e modular adipocinas envolvidas na homeostase energética.³
Em um estudo clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo conduzido por Jadoon e colaboradores (2016), envolvendo 62 pacientes com diabetes tipo 2 não tratados com insulina, a administração de 10 mg/dia de THCV por 13 semanas promoveu uma redução significativa na glicemia de jejum (diferença estimada de -1,2 mmol/L; p < 0,05), acompanhada de uma melhora expressiva na função das células β pancreáticas, conforme o índice HOMA2 β-cell function (+44,5 pontos; p < 0,01). Além disso, observou-se aumento dos níveis séricos de adiponectina e apolipoproteína A, ambos marcadores associados à melhora da sensibilidade à insulina e do metabolismo lipídico.7
Embora a redução do apetite tenha sido discreta e não estatisticamente significativa, o estudo destacou que o THCV foi bem tolerado, com eventos adversos leves e transitórios, sem alteração significativa no peso corporal. Esses achados sustentam a hipótese de que o THCV atua mais na otimização metabólica do que na simples supressão do apetite — um efeito distinto dos antagonistas CB1 clássicos, como o rimonabanto, cujo uso foi limitado por efeitos adversos neuropsiquiátricos.7
Os dados pré-clínicos fortalecem ainda mais essa evidência. Em modelos animais de obesidade induzida pela dieta (DIO) e em camundongos geneticamente obesos (ob/ob), o THCV demonstrou reduzir a intolerância à glicose, aumentar a utilização energética e melhorar a sinalização da insulina em tecidos periféricos resistentes.8
Em doses de 3 a 12,5 mg/kg, o composto promoveu efeitos hipofágicos, preveniu o acúmulo de gordura hepática e melhorou o metabolismo lipídico. Curiosamente, em modelos de peixe-zebra e camundongos obesos, o THCV também preveniu a hepatosteatose e reduziu o acúmulo de lipídios in vitro, sugerindo uma ação multifatorial sobre vias metabólicas e inflamatórias associadas à resistência insulínica.8
Além do papel metabólico, o THCV tem despertado crescente interesse em contextos neuropsiquiátricos, incluindo esquizofrenia e disfunções cognitivas. Evidências experimentais sugerem que seus efeitos podem estar parcialmente relacionados à modulação serotoninérgica, especialmente pela potencialização da atividade dos receptores 5-HT1A, envolvidos na regulação da ansiedade e do comportamento social.
Em um estudo conduzido por Cascio et al. (2014), utilizando um modelo animal de esquizofrenia induzido por fenciclidina (PCP), o THCV (2 mg/kg, i.p.) mostrou eficácia comparável à clozapina (2,5 mg/kg) na redução de sintomas positivos, como hiperlocomoção e comportamentos estereotipados, bem como na restauração de parâmetros cognitivos e sociais.6
Em humanos, dados preliminares também apontam para um perfil neuroprotetor e modulador cognitivo. Um ensaio clínico conduzido por Englund et al. (2015) avaliou a segurança e os efeitos agudos do THCV em voluntários saudáveis, com administração oral de 10 mg por cinco dias. O composto apresentou excelente tolerabilidade e reduziu significativamente o aumento da frequência cardíaca e o prejuízo cognitivo induzido pelo THC, sugerindo uma possível ação antagônica protetora em relação aos efeitos psicoativos do Δ9-THC. Além disso, observou-se um sinal preliminar de melhora da atenção sustentada, indicando potencial cognitivo positivo em doses baixas.9
Conclusão
O THCV se posiciona como um fitocanabinoide de grande interesse terapêutico, principalmente devido à sua capacidade de modular o sistema endocanabinoide de forma seletiva e não psicotrópica. Sua ação dual, combinando antagonismo do receptor CB1 e agonismo parcial do CB2, permite uma regulação refinada de processos metabólicos e neurológicos, promovendo supressão do apetite, melhora da sensibilidade à insulina, controle glicêmico mais eficiente e efeitos anti-inflamatórios periféricos.
Estudos cientificos demonstram que o THCV pode ser útil no manejo de distúrbios metabólicos como obesidade e diabetes tipo 2, além de apresentar potencial em condições neuropsiquiátricas, incluindo esquizofrenia e déficits cognitivos. Os dados disponíveis indicam que o composto é bem tolerado, sem efeitos adversos graves associados, reforçando sua segurança e viabilidade clínica.
Apesar do caráter promissor, ainda são necessários ensaios clínicos robustos, de longo prazo e com maior número de participantes para consolidar sua eficácia, estabelecer protocolos de dosagem ideais e compreender plenamente seu espectro terapêutico. De forma geral, o THCV surge como um modulador fisiológico inteligente, capaz de restaurar a homeostase metabólica e neurológica de maneira equilibrada, abrindo perspectivas promissoras para futuras aplicações clínicas baseadas em canabinoides.
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Para os médicos que desejam aprofundar seu entendimento sobre a modulação do apetite, do metabolismo e do equilíbrio energético, compreender a ação do THCV sobre o Sistema Endocanabinoide (SEC) tornou-se uma competência clínica relevante. A interação do THCV com os receptores CB1 e CB2 exemplifica um eixo regulatório central entre os sinais metabólicos periféricos e os circuitos neurais de recompensa, oferecendo novas perspectivas terapêuticas para o manejo de distúrbios metabólicos, inflamatórios e neuropsiquiátricos.
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Referências
- MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
- Haghdoost M, Peters EN, Roberts M, et al. (2025) Tetrahydrocannabivarin is Not Tetrahydrocannabinol. Cannabis https://doi.org/10.1089/can.2024.0051
- Mendoza S. The role of tetrahydrocannabivarin (THCV) in metabolic disorders: A promising cannabinoid for diabetes and weight management. AIMS Neurosci. 2025 Mar 12;12(1):32-43. doi: 10.3934/Neuroscience.2025003. PMID: 40270953; PMCID: PMC12011981.
- Tudge L, Williams C, Cowen PJ, et al. (2014) Neural effects of cannabinoid CB1 neutral antagonist tetrahydrocannabivarin on food reward and aversion in healthy volunteers. Int J Neuropsychopharmacol 18: pyu094. https://doi.org/10.1093/ijnp/pyu094
- Stella N (2023) THC and CBD: Similarities and differences between siblings. Neuron 111: 302 327. https://doi.org/10.1016/j.neuron.2022.12.022
- Cascio, M.G., Zamberletti, E., Marini, P., Parolaro, D. and Pertwee, R.G. (2015), THCV, 5-HT1A and schizophrenia. Br J Pharmacol, 172: 1305-1318. https://doi.org/10.1111/bph.13000
- Horv´ath B, Mukhopadhyay P, Hask´ oG, Pacher P. The endocannabinoid system and plant-derived cannabinoids in diabetes and di abetic complications. Am J Pathol 2012;180: 432–442
- Silvestri C, Paris D, Martella A, et al. (2015) Two non-psychoactive cannabinoids reduce intracellular lipid levels and inhibit hepatosteatosis. J Hepatol 62: 1382–1390. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.01.001
- Englund A, Atakan Z, Kralj A, et al. (2016) The effect of five day dosing with THCV on THC induced cognitive, psychological and physiological effects in healthy male human volunteers: A placebo-controlled, double-blind, crossover pilot trial. J Psychopharmacol 30: 140–151. https://doi.org/10.1177/0269881115615104