THCV: Efeitos terapêuticos e aplicações clínicas potenciais

Publicado em 27/12/25 | Atualizado em 27/12/25 | Leitura: 11 minutos

CanabinoidesTetrahidrocanabivarina (THCV)

A Δ9-tetraidrocanabivarina (THCV) é um fitocanabinoide de ocorrência natural, derivado da planta Cannabis sativa. Embora quimicamente semelhante ao Δ9-tetraidrocanabinol (THC), o THCV se distingue crucialmente por ser não psicotrópico em doses terapêuticas, o que lhe confere uma vantagem significativa como agente terapêutico.

O interesse crescente no THCV está ligado à sua capacidade de modular o Sistema Endocanabinoide (SEC) para influenciar processos metabólicos e neurológicos essenciais. No post de hoje, vamos explorar o perfil farmacológico único do THCV e suas promissoras aplicações clínicas no manejo de distúrbios clínicos.

THCV

A Delta-9-tetrahidrocanabivarina (THCV) é um fitocanabinoide naturalmente presente em algumas variedades de Cannabis sativa L.. Diferente do Δ9-THC, a THCV não apresenta efeitos psicotrópicos, característica que amplia seu potencial terapêutico — especialmente no manejo de distúrbios metabólicos, como obesidade e diabetes tipo 2.

O Sistema Endocanabinoide e o Metabolismo Energético

Os efeitos do THCV são mediados pela modulação do Sistema Endocanabinoide (SEC), um sistema neuromodulatório essencial para a manutenção da homeostase corporal

O SEC é composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), moléculas sinalizadoras endógenas (endocanabinoides como anandamida e 2-AG) e enzimas de síntese e degradação. Ele atua como um regulador central de diversos processos fisiológicos, incluindo¹:

  • Balanço energético e gasto calórico
  • Metabolismo da glicose e da insulina
  • Armazenamento de gordura
  • Comportamento alimentar e recompensa

 

A superativação crônica do SEC, especialmente via receptores CB1, tem sido associada à obesidade, resistência à insulina e diabetes tipo 2, tornando esse sistema um alvo farmacológico estratégico para terapias metabólicas.²

Mecanismo de ação duplo do THCV

O THCV apresenta um mecanismo de ação dual e seletivo sobre os principais receptores canabinoides, o que lhe confere um perfil metabólico oposto ao do THC. Enquanto o Δ9-THC atua como agonista do CB1, estimulando apetite e armazenamento de energia, o THCV modula esses efeitos de forma bidirecional

1. Antagonismo no Receptor CB1

  • Localização e Função:  Os receptores CB1 estão amplamente distribuídos no Sistema Nervoso Central (SNC) e em tecidos periféricos, como fígado, músculo esquelético e tecido adiposo. Sua ativação estimula o aumento do apetite, o acúmulo de gordura e a redução da sensibilidade à insulina
  • Ação do THCV: Esse fitocanabinoide atua como antagonista neutro do CB1, bloqueando esses efeitos. Essa ação resulta em³:
    • Supressão do apetite (efeito hipofágico)
    • Melhora da sensibilidade à insulina
    • Redução do armazenamento de gordura

 

  • Segurança farmacológica: Diferentemente de antagonistas sintéticos como o rimonabanto, que funcionavam como agonistas inversos e foram descontinuados por efeitos psiquiátricos adversos, o THCV não altera significativamente o humor — sendo considerado um bloqueador mais seguro e fisiológico da sinalização CB1.²

2. Agonismo Parcial no Receptor CB2

  • Localização e Função: Os receptores CB2 estão predominantemente presentes em tecidos periféricos — especialmente no sistema imunológico, pâncreas, fígado e tecido adiposo. Sua ativação está associada à redução da inflamação e melhora da sensibilidade à insulina
  • Ação do THCV: Essa molécula atua como agonista parcial do CB2, promovendo:4,5
    • Efeitos anti-inflamatórios periféricos
    • Melhor regulação da glicose
    • Potencial aumento do gasto energético

 

Essa dupla modulação — antagonismo em CB1 e agonismo parcial em CB2 — constitui o núcleo de seus efeitos metabólicos benéficos, equilibrando o controle de apetite, glicemia e inflamação sistêmica.

Mecanismo de ação e potencial terapêutico do THCV. Fonte Mendoza S. The role of tetrahydrocannabivarin (THCV) in metabolic disorders: A promising cannabinoid for diabetes and weight management. AIMS Neurosci. 2025 Mar 12;12(1):32-43.
Mecanismo de ação e potencial terapêutico do THCV. Fonte Mendoza S. The role of tetrahydrocannabivarin (THCV) in metabolic disorders: A promising cannabinoid for diabetes and weight management. AIMS Neurosci. 2025 Mar 12;12(1):32-43.

Para saber mais sobre o Sistema Endocanabinoide, acesse: O que é o Sistema Endocanabinoide? – WeCann Academy

Além do SEC 

Além de sua ação clássica nos receptores canabinoides, a THCV interage com outros alvos moleculares de interesse clínico:

  • GPR55: Pode atuar como modulador desse receptor acoplado à proteína G, implicado na regulação da glicose e na sinalização inflamatória.6
  • Canais TRP (Transient Receptor Potential): A THCV pode ativar ou inibir canais TRPV1 e TRPA1, influenciando vias de nocicepção, termorregulação e metabolismo energético.6

Essas interações sugerem que a THCV atua de forma multimodal, com potencial de sinergia metabólica e neuroprotetora.

Uma metáfora funcional

Do ponto de vista fisiológico, a ação da THCV pode ser comparada a um freio e um acelerador seletivos dentro do sistema endocanabinoide:

  • Freio (CB1): bloqueia os sinais que promovem o armazenamento de gordura e o aumento do apetite.
  • Acelerador (CB2): estimula vias anti-inflamatórias e melhora a eficiência metabólica.

 

Esse equilíbrio confere à THCV um papel singular no restabelecimento da homeostase metabólica, tornando-a uma promissora ferramenta terapêutica para o manejo de distúrbios como obesidade, resistência insulínica e síndrome metabólica.

Potencial terapêutico do THCV

O THCV comporta-se predominantemente como um antagonista do receptor CB1 e agonista parcial do receptor CB2. Essa dualidade o posiciona como um candidato terapêutico relevante em condições metabólicas e neuropsiquiátricas, especialmente por modular o sistema endocanabinoide de forma a restaurar a homeostase metabólica e neurológica sem induzir euforia.

No contexto metabólico, o antagonismo ao receptor CB1 exerce um papel crucial na modulação do apetite, da sensibilidade à insulina e do equilíbrio energético. Estudos pré-clínicos e clínicos sugerem que o THCV pode atuar como um regulador metabólico capaz de melhorar o controle glicêmico, otimizar a função das células β pancreáticas e modular adipocinas envolvidas na homeostase energética.³

Em um estudo clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo conduzido por Jadoon e colaboradores (2016), envolvendo 62 pacientes com diabetes tipo 2 não tratados com insulina, a administração de 10 mg/dia de THCV por 13 semanas promoveu uma redução significativa na glicemia de jejum (diferença estimada de -1,2 mmol/L; p < 0,05), acompanhada de uma melhora expressiva na função das células β pancreáticas, conforme o índice HOMA2 β-cell function (+44,5 pontos; p < 0,01). Além disso, observou-se aumento dos níveis séricos de adiponectina e apolipoproteína A, ambos marcadores associados à melhora da sensibilidade à insulina e do metabolismo lipídico.7

Embora a redução do apetite tenha sido discreta e não estatisticamente significativa, o estudo destacou que o THCV foi bem tolerado, com eventos adversos leves e transitórios, sem alteração significativa no peso corporal. Esses achados sustentam a hipótese de que o THCV atua mais na otimização metabólica do que na simples supressão do apetite — um efeito distinto dos antagonistas CB1 clássicos, como o rimonabanto, cujo uso foi limitado por efeitos adversos neuropsiquiátricos.7

Os dados pré-clínicos fortalecem ainda mais essa evidência. Em modelos animais de obesidade induzida pela dieta (DIO) e em camundongos geneticamente obesos (ob/ob), o THCV demonstrou reduzir a intolerância à glicose, aumentar a utilização energética e melhorar a sinalização da insulina em tecidos periféricos resistentes.8

Em doses de 3 a 12,5 mg/kg, o composto promoveu efeitos hipofágicos, preveniu o acúmulo de gordura hepática e melhorou o metabolismo lipídico. Curiosamente, em modelos de peixe-zebra e camundongos obesos, o THCV também preveniu a hepatosteatose e reduziu o acúmulo de lipídios in vitro, sugerindo uma ação multifatorial sobre vias metabólicas e inflamatórias associadas à resistência insulínica.8

Além do papel metabólico, o THCV tem despertado crescente interesse em contextos neuropsiquiátricos, incluindo esquizofrenia e disfunções cognitivas. Evidências experimentais sugerem que seus efeitos podem estar parcialmente relacionados à modulação serotoninérgica, especialmente pela potencialização da atividade dos receptores 5-HT1A, envolvidos na regulação da ansiedade e do comportamento social. 

Em um estudo conduzido por Cascio et al. (2014), utilizando um modelo animal de esquizofrenia induzido por fenciclidina (PCP), o THCV (2 mg/kg, i.p.) mostrou eficácia comparável à clozapina (2,5 mg/kg) na redução de sintomas positivos, como hiperlocomoção e comportamentos estereotipados, bem como na restauração de parâmetros cognitivos e sociais.6

Em humanos, dados preliminares também apontam para um perfil neuroprotetor e modulador cognitivo. Um ensaio clínico conduzido por Englund et al. (2015) avaliou a segurança e os efeitos agudos do THCV em voluntários saudáveis, com administração oral de 10 mg por cinco dias. O composto apresentou excelente tolerabilidade e reduziu significativamente o aumento da frequência cardíaca e o prejuízo cognitivo induzido pelo THC, sugerindo uma possível ação antagônica protetora em relação aos efeitos psicoativos do Δ9-THC. Além disso, observou-se um sinal preliminar de melhora da atenção sustentada, indicando potencial cognitivo positivo em doses baixas.9

Conclusão

O THCV se posiciona como um fitocanabinoide de grande interesse terapêutico, principalmente devido à sua capacidade de modular o sistema endocanabinoide de forma seletiva e não psicotrópica. Sua ação dual, combinando antagonismo do receptor CB1 e agonismo parcial do CB2, permite uma regulação refinada de processos metabólicos e neurológicos, promovendo supressão do apetite, melhora da sensibilidade à insulina, controle glicêmico mais eficiente e efeitos anti-inflamatórios periféricos. 

Estudos cientificos demonstram que o THCV pode ser útil no manejo de distúrbios metabólicos como obesidade e diabetes tipo 2, além de apresentar potencial em condições neuropsiquiátricas, incluindo esquizofrenia e déficits cognitivos. Os dados disponíveis indicam que o composto é bem tolerado, sem efeitos adversos graves associados, reforçando sua segurança e viabilidade clínica. 

Apesar do caráter promissor, ainda são necessários ensaios clínicos robustos, de longo prazo e com maior número de participantes para consolidar sua eficácia, estabelecer protocolos de dosagem ideais e compreender plenamente seu espectro terapêutico. De forma geral, o THCV surge como um modulador fisiológico inteligente, capaz de restaurar a homeostase metabólica e neurológica de maneira equilibrada, abrindo perspectivas promissoras para futuras aplicações clínicas baseadas em canabinoides.

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Para os médicos que desejam aprofundar seu entendimento sobre a modulação do apetite, do metabolismo e do equilíbrio energético, compreender a ação do THCV sobre o Sistema Endocanabinoide (SEC) tornou-se uma competência clínica relevante. A interação do THCV com os receptores CB1 e CB2 exemplifica um eixo regulatório central entre os sinais metabólicos periféricos e os circuitos neurais de recompensa, oferecendo novas perspectivas terapêuticas para o manejo de distúrbios metabólicos, inflamatórios e neuropsiquiátricos.

Neste cenário, a WeCann surge como uma aliada estratégica da comunidade médica, oferecendo formação baseada em evidências e ferramentas práticas para integrar o conhecimento sobre cannabis medicinal à prática clínica. Entre esses recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, como um manual abrangente e atualizado, de referência internacional, que aborda todo o conhecimento necessário para a incorporação das terapêuticas à base de cannabis na prática.

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Referências

  1. MONTAGNER, Patrícia; DE SALAS-QUIROGA, Adán. Tratado de Medicina Endocanabinoide.1. ed. WeCann Endocannabinoid Global Academy, 2023.
  2. Haghdoost M, Peters EN, Roberts M, et al. (2025) Tetrahydrocannabivarin is Not Tetrahydrocannabinol. Cannabis https://doi.org/10.1089/can.2024.0051  
  3. Mendoza S. The role of tetrahydrocannabivarin (THCV) in metabolic disorders: A promising cannabinoid for diabetes and weight management. AIMS Neurosci. 2025 Mar 12;12(1):32-43. doi: 10.3934/Neuroscience.2025003. PMID: 40270953; PMCID: PMC12011981.
  4. Tudge L, Williams C, Cowen PJ, et al. (2014) Neural effects of cannabinoid CB1 neutral antagonist tetrahydrocannabivarin on food reward and aversion in healthy volunteers. Int J Neuropsychopharmacol 18: pyu094. https://doi.org/10.1093/ijnp/pyu094
  5. Stella N (2023) THC and CBD: Similarities and differences between siblings. Neuron 111: 302 327. https://doi.org/10.1016/j.neuron.2022.12.022 
  6. Cascio, M.G., Zamberletti, E., Marini, P., Parolaro, D. and Pertwee, R.G. (2015), THCV, 5-HT1A and schizophrenia. Br J Pharmacol, 172: 1305-1318. https://doi.org/10.1111/bph.13000
  7. Horv´ath B, Mukhopadhyay P, Hask´ oG, Pacher P. The endocannabinoid system and plant-derived cannabinoids in diabetes and di abetic complications. Am J Pathol 2012;180: 432–442
  8. Silvestri C, Paris D, Martella A, et al. (2015) Two non-psychoactive cannabinoids reduce intracellular lipid levels and inhibit hepatosteatosis. J Hepatol 62: 1382–1390. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.01.001 
  9. Englund A, Atakan Z, Kralj A, et al. (2016) The effect of five day dosing with THCV on THC induced cognitive, psychological and physiological effects in healthy male human volunteers: A placebo-controlled, double-blind, crossover pilot trial. J Psychopharmacol 30: 140–151. https://doi.org/10.1177/0269881115615104 

 

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