Por muito tempo, a Cannabis sativa foi vista sob um olhar limitado — associada apenas aos seus efeitos psicoativos. Contudo, nas últimas décadas, o avanço das pesquisas bioquímicas e clínicas reposicionou essa planta como uma das fontes naturais mais complexas e promissoras da farmacologia moderna.
Entre seus inúmeros compostos bioativos, os fitocanabinoides surgem como protagonistas, revelando um diálogo sofisticado com o sistema endocanabinoide humano — um dos principais reguladores da homeostase. No post de hoje, vamos explorar os diversos fitocanabinoides e como podem ser usados na prática clínica.
O que são fitocanabinoides?
Os canabinoides são compostos químicos capazes de interagir com o sistema endocanabinoide (SEC) — uma complexa rede fisiológica envolvida na regulação da homeostase, que influencia funções como humor, sono, apetite, resposta imunológica e percepção da dor. Essas substâncias podem ser endógenas (endocanabinoides, como anandamida e 2-AG), sintéticas (produzidas em laboratório) ou naturais, quando derivadas da planta Cannabis sativa.¹
Os fitocanabinoides, portanto, constituem a classe de canabinoides de origem vegetal, sintetizados nos tricomas glandulares da Cannabis sativa. São moléculas altamente lipofílicas, com estrutura química capaz de se ligar e modular os receptores endocanabinoides humanos — principalmente CB1 e CB2 — além de interagir com diversos outros alvos moleculares, como TRPV1, PPARγ e 5-HT1A.¹
Até o momento, mais de 140 fitocanabinoides já foram identificados, embora apenas uma parte deles tenha sido amplamente caracterizada do ponto de vista farmacológico e clínico. Entre os compostos mais estudados estão o Δ9-tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) — principais representantes dos componentes psicotrópico e não psicotrópico, respectivamente — além de canabigerol (CBG), canabicromeno (CBC), canabinol (CBN) e tetraidrocanabivarina (THCV), cada um com propriedades farmacológicas, mecanismos de ação e perfis de segurança específicos¹.

O interesse médico por essas moléculas cresceu de forma exponencial após a caracterização do SEC, compreendido hoje como um dos principais sistemas de regulação fisiológica do organismo. Nesse contexto, os fitocanabinoides atuam como moduladores exógenos do sistema, capazes de reforçar, ajustar ou restaurar processos homeostáticos alterados — uma base conceitual que sustenta o uso terapêutico da cannabis em múltiplas condições clínicas.
Quimiotipos e variabilidade química da Cannabis sativa
A Cannabis sativa apresenta diferentes quimiotipos, definidos de acordo com a predominância de determinados fitocanabinoides. Esses perfis químicos são fundamentais para compreender os efeitos clínicos e o potencial terapêutico de cada extrato ou formulação. De forma simplificada:
- Quimiotipo I: rico em THC — com propriedades psicoativas e terapêuticas (analgesia, relaxamento muscular, antiemética).
- Quimiotipo II: equilíbrio entre THC e CBD — promove efeitos terapêuticos amplos com menor risco de efeitos psicotrópicos.
- Quimiotipo III: rico em CBD — utilizado em condições como epilepsia, ansiedade e inflamações.
- Quimiotipo IV e V: dominância de CBG ou ausência significativa de canabinoides, respectivamente.

Para saber mais sobre as quimiovariantes da cannabis, acesse: O que são quimiovariantes da Cannabis?
Além dos fitocanabinoides, a planta contém terpenos e flavonoides, que contribuem para o chamado efeito comitiva (entourage effect) — uma sinergia entre compostos que potencializa a resposta terapêutica e reduz efeitos adversos.
Para saber mais sobre o efeito entourage, acesse: Efeito entourage: por que é melhor utilizar extratos completos da Cannabis
Principais Fitocanabinoides
Os fitocanabinoides representam uma classe diversificada de moléculas bioativas, cada uma com perfis farmacológicos e potenciais terapêuticos singulares. Embora compartilhem a capacidade de modular o sistema endocanabinoide, suas interações com diferentes receptores e vias de sinalização determinam efeitos clínicos distintos. Conheça os principais compostos de relevância médica e científica.
Δ9-tetraidrocanabinol (THC)
O Δ9-tetraidrocanabinol (THC) é o principal fitocanabinoide psicotrópico da Cannabis sativa, atuando como agonista parcial dos receptores CB1 e CB2. Sua afinidade predominante pelo CB1 — localizado em regiões cerebrais como hipocampo, córtex pré-frontal e gânglios da base — explica seus efeitos analgésicos, antieméticos, relaxantes musculares e orexigênicos, além dos efeitos psicotrópicos característicos¹.
Do ponto de vista farmacológico, o THC modula a liberação de neurotransmissores como GABA, dopamina e glutamato, reduzindo a excitabilidade neuronal e interferindo na percepção da dor. A ativação de CB2, presente em células imunes, também confere efeitos anti-inflamatórios e imunomoduladores.²
Clinicamente, é utilizado em dor neuropática crônica, espasticidade por esclerose múltipla, náuseas induzidas por quimioterapia e anorexia associada ao câncer ou HIV.³ Contudo, sua ação sobre CB1 pode causar taquicardia, euforia, prejuízo cognitivo transitório e ansiedade, especialmente em doses elevadas ou em indivíduos susceptíveis.¹
Para saber mais sobre o uso de THC no tratamento da dor neuropática, acesse: THC no tratamento da Dor Neuropática – WeCann Academy
Canabidiol (CBD)
O canabidiol (CBD) é o principal fitocanabinoide não psicotrópico da Cannabis sativa, com ampla relevância terapêutica. Atua como modulador indireto do sistema endocanabinoide, inibindo a degradação da anandamida (via FAAH) e modulando receptores 5-HT1A, TRPV1 e PPARγ¹. Essa farmacologia multifatorial explica seus efeitos ansiolíticos, anticonvulsivantes, antipsicóticos e anti-inflamatórios.4,5
Clinicamente, o CBD apresenta eficácia comprovada em epilepsias refratárias (síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut), além de benefícios crescentes em transtornos de ansiedade, TEPT e distúrbios do sono.6,7 Seu perfil de segurança é favorável, sem indução de dependência ou efeitos psicomiméticos relevantes.
Para saber mais sobre as aplicações terapêuticas do canabidiol, acesse: Canabidiol (CBD): Uso e benefícios – WeCann Academy
Canabigerol (CBG)
O canabigerol é o precursor biossintético do THC e do CBD, sendo por isso conhecido como o “canabinoide-mãe”. Apresenta baixa afinidade por CB1 e CB2, mas exerce importante modulação em canais TRPA1, TRPV1 e receptores PPAR, além de aumentar a disponibilidade de anandamida.¹
Estudos pré-clínicos indicam propriedades neuroprotetoras, anti-inflamatórias e ansiolíticas, com potenciais aplicações em doença inflamatória intestinal, glaucoma e doenças neurodegenerativas.8 O CBG também apresenta atividade antibacteriana, inclusive contra Staphylococcus aureus resistente à meticilina.9
Para saber mais sobre o potencial terapêutico do canabigerol, acesse: Canabigerol (CBG): o canabinoide mãe – WeCann Academy
Canabicromeno (CBC)
O canabicromeno é um fitocanabinoide não psicotrópico menos conhecido em comparação ao THC e ao CBD, mas com um perfil terapêutico de crescente interesse clínico. Plantas com altos teores de CBC surgem geralmente da seleção de genes recessivos obtidos por múltiplos cruzamentos entre diferentes quimiovariantes de Cannabis sativa.
Do ponto de vista farmacológico, o CBC atua predominantemente sobre os receptores TRPV1 e TRPA1, modulando vias nociceptivas e inflamatórias, além de apresentar afinidade moderada por CB2, o que reforça seus efeitos anti-inflamatórios e analgésicos.10,11 Outro mecanismo relevante é sua capacidade de inibir a reabsorção da anandamida, prolongando a ação desse endocanabinoide e contribuindo para a regulação do humor e o alívio da dor.
Evidências experimentais também sugerem que o CBC estimula a neurogênese, favorecendo o crescimento de novas células neuronais — um achado de grande interesse em condições neurodegenerativas e psiquiátricas.12
Esse conjunto de propriedades coloca o CBC como um candidato promissor para futuras pesquisas e aplicações clínicas, especialmente em dor crônica, inflamação e distúrbios do humor, reforçando o valor terapêutico das formulações de espectro completo que integram múltiplos fitocanabinoides.
Para saber mais sobre as propriedades terapêuticas do canabicromeno, acesse: Canabicromeno (CBC): propriedades medicinais – Documentos Google
Canabinol (CBN)
O canabinol é um fitocanabinoide secundário originado da degradação oxidativa do Δ9-tetraidrocanabinol. Esse processo ocorre naturalmente durante o envelhecimento da planta ou pela exposição do THC ao ar, luz e calor, resultando em uma molécula quimicamente distinta, porém ainda farmacologicamente ativa.13
Embora apresente afinidade moderada por CB1 e CB2, sua potência psicoativa é significativamente menor que a do THC, o que o torna mais seguro para uso clínico. O CBN destaca-se por suas propriedades ansiolíticas, sedativas e analgésicas, sendo considerado um modulador do ciclo sono-vigília.13
Estudos sugerem que sua ação sobre canais TRP e receptores CB2 contribui para a melhora da qualidade do sono e redução da ansiedade, especialmente quando utilizado em associação com o THC — combinação que potencializa o efeito comitiva e prolonga o tempo total de sono.¹
Além disso, o CBN demonstra atividade anti-inflamatória significativa, com redução de marcadores inflamatórios e melhora sintomática em modelos de dor crônica e inflamação persistente.14 Essa convergência de efeitos — analgésico, sedativo e anti-inflamatório — reforça o potencial do CBN como agente terapêutico emergente em distúrbios do sono, dor crônica e condições inflamatórias.
Para saber mais sobre o potencial terapêutico do canabinol, acesse: Canabinol (CBN): usos e efeitos – WeCann Academy
Tetraidrocanabivarina (THCV)
A Δ9-tetrahidrocanabivarina é um fitocanabinoide estruturalmente semelhante ao Δ9-tetraidrocanabinol, mas derivado da descarboxilação de sua forma ácida precursora, o Δ9-THCVA. Diferente do THC, a THCV não apresenta efeito psicoativo significativo, o que a torna especialmente interessante do ponto de vista terapêutico.
Sua farmacodinâmica revela uma dupla ação dependente da dose: em concentrações baixas, atua como antagonista parcial dos receptores CB1, reduzindo o apetite e modulando o metabolismo energético; em doses mais altas, pode exercer efeito agonista, modulando respostas neurocomportamentais e inflamatórias.15 Essa característica faz da THCV um composto promissor no tratamento da obesidade e do diabetes mellitus tipo 2, com estudos demonstrando melhora na sensibilidade à insulina, redução do apetite e aumento do gasto energético.15
Além de seu papel metabólico, a THCV apresenta atividade anticonvulsivante, com potencial benefício em epilepsias refratárias e distúrbios convulsivos, possivelmente por sua modulação de canais iônicos e interação indireta com receptores CB2 e TRPV1.16 Também foram descritas propriedades antioxidantes e analgésicas, sugerindo um espectro terapêutico mais amplo que abrange condições neuroinflamatórias e dolorosas.
Assim, a Δ9-THCV se posicona como um fitocanabinoide multifuncional, cujo perfil farmacológico — metabólico, neuromodulador e anti-inflamatório — exemplifica o potencial clínico da diversificação dos canabinoides naturais na medicina contemporânea.
Para saber mais sobre o potencial terapêutico do THCV, acesse: Canabinoides combate à Obesidade e à Síndrome Metabólica – WeCann Academy
Conclusão
O avanço da pesquisa em fitocanabinoides marca uma verdadeira mudança de paradigma na medicina contemporânea. De compostos historicamente estigmatizados, essas moléculas vêm se consolidando como agentes farmacológicos de alto valor clínico, capazes de modular de forma seletiva e multifatorial o sistema endocanabinoide — eixo central da regulação da homeostase fisiológica.
A diversidade química da Cannabis sativa traduz-se em uma ampla gama de possibilidades terapêuticas, que vão desde o controle da dor crônica, inflamações e distúrbios metabólicos, até transtornos psiquiátricos, neurológicos e do sono. O fato de atuarem de modo pleiotrópico — interagindo com receptores canabinoides, canais iônicos e sistemas neurotransmissores — confere aos fitocanabinoides um perfil terapêutico integrado, frequentemente com menos efeitos adversos do que diversas abordagens farmacológicas tradicionais.
Em um contexto clínico em que fármacos convencionais como ansiolíticos, anticonvulsivantes e analgésicos opioides apresentam efeitos colaterais importantes e risco de dependência, os fitocanabinoides surgem como alternativas seguras e fisiologicamente compatíveis. Sua capacidade de restaurar a comunicação entre sistemas neuroendócrinos e imunológicos os posiciona como agentes moduladores, e não apenas sintomáticos.
Ainda que muitos de seus mecanismos e interações permaneçam em investigação, o corpo crescente de evidências clínicas e pré-clínicas sustenta que os fitocanabinoides representam uma nova classe terapêutica, com potencial de complementar e, em alguns casos, substituir tratamentos convencionais em uma medicina cada vez mais integrativa e personalizada.
Assim, o caminho que se abre diante da Cannabis sativa e de seus fitocanabinoides é o da ciência aplicada à prática clínica, ampliando as fronteiras da farmacologia e oferecendo aos pacientes novas perspectivas de equilíbrio, eficácia e segurança terapêutica.
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Para os médicos que atuam na vanguarda da medicina integrativa e personalizada, compreender os mecanismos de ação dos fitocanabinoides tornou-se uma competência clínica indispensável. Essa compreensão permite empregar tais compostos de forma racional e baseada em evidências, ampliando o arsenal terapêutico disponível para o manejo de diversas condições clínicas.
Ao dominar essa área emergente, o profissional se capacita a oferecer aos pacientes intervenções seguras, individualizadas e eficazes, promovendo não apenas o controle sintomático, mas também a restauração de processos fisiológicos fundamentais à homeostase e à qualidade de vida.
Neste cenário, a WeCann surge como uma aliada estratégica da comunidade médica, oferecendo formação baseada em evidências e ferramentas práticas para integrar o conhecimento sobre cannabis medicinal à prática clínica. Entre esses recursos, destaca-se o Tratado de Medicina Endocanabinoide, como um manual abrangente e atualizado, de referência internacional, que aborda todo o conhecimento necessário para a incorporação das terapêuticas à base de cannabis na prática.
Se você é um profissional da saúde que busca atuar de forma ética, baseada em evidências e centrada no paciente, o acesso ao Tratado de Medicina Endocanabinoide é um passo decisivo para transformar sua abordagem terapêutica.
Referências
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