Desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou os procedimentos necessários para a fabricação e comercialização de produtos à base de Cannabis no Brasil no final de 2019, o interesse da comunidade médica no estudo dessa classe de medicamentos cresceu de forma expressiva.
Embora o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC) sejam os fitocanabinoides mais conhecidos e explorados até o momento, já sabemos que existem cerca de 150 canabinoides entre os mais de 550 compostos químicos da planta Cannabis.
Neste conteúdo, falaremos das principais propriedades terapêuticas dessas substâncias e mostraremos por que você, médico (a) deve incorporá-las em seu arsenal terapêutico, para alcançar melhor controle de sintomas e mais qualidade de vida e bem-estar para seus pacientes.
Principais canabinoides e suas interações com o SEC
As descobertas científicas em torno do Sistema Endocanabinoide (SEC) intensificaram novos e promissores estudos sobre os atributos medicinais da Cannabis. Apesar de o SEC ter sido desvendado pela ciência somente na segunda metade do século XX, esse sistema regulatório vital está presente nos seres humanos e em todos os animais vertebrados há centenas de milhares de anos.
O SEC está envolvido em praticamente todos os nossos processos fisiológicos e patológicos, através de um conjunto de receptores, ligantes e enzimas que atuam como sinalizadores entre as células. A função primordial desse sistema é restaurar a estabilidade das funções fisiológicas, de modo a (re)estabelecer a homesostase do organismo.
Trata-se, portanto, de um sistema vital para a nossa saúde, pois qualquer desequilíbrio no Sistema Endocanabinoide pode ser decisivo para o desenvolvimento e/ou progressão de doenças. A interação dos receptores endocanabinoides com seus principais ligantes regula e modula uma série de funções, como a função cardiovascular e gastrointestinal, as respostas imunológicas e inflamatórias, além dos processos de aprendizagem, memória e regulação das emoções.
As substâncias canabinoides podem ser produzidas pelo nosso próprio organismo – por isso, são chamadas de endocanabinoides ou canabinoides endógenos – ou podem ser encontradas na planta Cannabis – sendo chamadas de fitocanabinoides ou canabinoides exógenos. Não à toa, a interação dos endocanabinoides com o SEC pode ser estimulada pelos compostos químicos da Cannabis, explicando o vasto potencial terapêutico dessa planta.
Assim como a diversidade de canabinoides é grande, também é ampla a gama de situações para as quais essas substâncias podem ser medicinalmente úteis. Alguns exemplos incluem dores crônicas, transtornos neurológicos e doenças psiquiátricas. Além disso, a Cannabis pode ser um valioso adjuvante no tratamento do câncer. A seguir, falaremos mais a respeito dos canabinoides.
Canabidiol (CBD)
O canabidiol (CBD) é o elemento químico da Cannabis até o momento, mais explorado e amplamente utilizado, devido a variedade de propriedades terapêuticas, a citar, anti-inflamatória, anticonvulsivante, ansiolítica, e também, por apresentar menor potencial psicotrópico, quando comparado ao THC.
O receio no uso medicinal do THC está frequentemente associado ao seu potencial psicotrópico, que pode culminar em psicotoxicidade. No entanto, em contextos prescritivos assertivos, reações psicotóxicas decorrentes do uso dessa substância são raras e adequadamente manejáveis. Além disso, é importante ressaltar que o THC apresenta importantes atributos terapêuticos, inclusive quando comparados a outros fitocanabinoides, como o próprio CBD.
Em nosso organismo, o CBD interage com neurotransmissores como adenosina, serotonina e dopamina. Conforme sugerem os estudos científicos, essas interações provocam efeitos positivos em diferentes contextos patológicos, como no controle da ansiedade, na melhora da performance motora e na percepção da dor.
No tratamento da dor, variados estudos vêm demonstrando os benefícios desse fitocanabinoide, a exemplo deste trabalho norte-americano realizado com 214 pacientes que sofrem com dores crônicas nas costas. Os resultados comprovaram a eficácia do CBD nesse contexto, no qual 66,7% dos pacientes relataram alívio na dor.
Houve respostas positivas no tratamento de:
- cervicalgia (37,0%);
- dores irradiadas para membros inferiores (35,2%);
- dores irradiadas para irradiadas para membros superiores (9,3%)
Outros pontos favoráveis do uso do CBD nesses pacientes incluem:
- melhora de quadros de insônia (25,9%);
- redução da ansiedade (20,4%);
- melhora global do humor (18,5%).
>> Leia o estudo completo em: Prevalence of Cannabidiol Use in Patients With Spine Complaints: Results of an Anonymous Survey.
Tetra-hidrocanabinol (THC)
O tetra-hidrocanabinol (THC) é popularmente conhecido devido aos efeitos psicoativos decorrentes do seu uso. Entretanto, diferentemente do contexto de uso recreativo da planta, no uso medicinal da Cannabis a psicoatividade associada a essa substância é pequena e o risco de reações psicotóxicas é raro.
A biodisponibilidade do THC pelas vias de administração inalada e oral são bastante distintas, e a prescrição de medicamentos predominantes em THC ancorada em conhecimento científico e experiência prática minimiza de forma significativa os potenciais efeitos adversos relacionados à substância.
É de fundamental importância ter conhecimento técnico para explorar o potencial terapêutico desse composto. Esse fitocanabinoide apresenta resultados promissores para diferentes quadros clínicos, como dor crônica, em especial dor neuropática, quadro de náuseas, vômitos e inapetência, além de transtornos do sono.
Por reunir um conjunto valioso de propriedades terapêuticas, o THC pode ser bastante útil como adjuvante no tratamento de pacientes com câncer, aliviando dores e incômodos resultantes dos protocolos de radio e quimioterapia e proporcionando melhor qualidade de vida e bem-estar para as pessoas que estão nesse estado de profundo sofrimento físico e psíquico.
Quer saber mais sobre os atributos terapêuticos do THC? Conheça as particularidades desse fitocanabinoide e desconstrua mitos e estigmas associados à substância.
Podemos dizer então, que a escolha por produtos isentos de THC (THC free) nem sempre é a melhor decisão. Dependendo do quadro clínico, o THC terá um potencial terapêutico mais impactante que o próprio CBD. Além disso, a presença do THC é importante para o Efeito Entourage , no qual a sinergia de atuação de todos os elementos químicos da planta é responsável por potencializar os efeitos terapêuticos dos canabinoides e modular possíveis efeitos adversos.
Outros canabinoides promissores
A maioria das pesquisas científicas sobre Cannabis medicinal têm o CBD e o THC como protagonistas. Contudo, existem numerosos estudos que investigam as propriedades terapêuticas de outros canabinoides. Um exemplo é esta pesquisa que sugere o potencial do Canabinol (CBN) em quadros de dor muscular crônica, como nos transtornos temporomandibulares e na fibromialgia.
>> Leia a pesquisa completa em: Cannabidiol, cannabinol and their combinations act as peripheral analgesics in a rat model of myofascial pain.
Outro exemplo de canabinoide que pode ter utilidade na prática clínica é a tetra-hidrocanabivarina (THCV), como mostra esta pesquisa que investiga os benefícios da substância no controle da discinesia induzida por levodopa na doença de Parkinson.
>> Leia a pesquisa completa em: Beneficial effects of the phytocannabinoid Δ 9-THCV in L-DOPA-induced dyskinesia in Parkinson’s disease.
O canabigerol (CBG), por sua vez, vem chamando a atenção da comunidade científica por seu suposto potencial antineoplásico. Esta pesquisa, por exemplo, avaliou a relação entre o uso de CBG e a redução na progressão do glioblastoma, o câncer cerebral primário mais agressivo.
>> Leia o estudo completo em: Cannabigerol Is a Potential Therapeutic Agent in a Novel Combined Therapy for Glioblastoma.
O ácido canabidiólico (CBDA) – CBD em sua forma ácida – também reúne interessantes propriedades terapêuticas. Uma das mais conhecidas é seu potencial para inibir náuseas e vômitos. É o que revela esta pesquisa, comparando o uso de CBD e CBDA para este fim. O CBDA, além de demonstrar maior potência no combate aos vômitos, demonstrou também, ser uma alternativa viável no manejo de náuseas antecipatórias, para as quais ainda não existe terapia específica.
>> Leia a pesquisa completa em: Cannabidiolic acid prevents vomiting in Suncus murinus and nausea-induced behaviour in rats by enhancing 5-HT1A receptor activation.
Outro fitocanabinoide em pesquisas é o ácido tetra-hidrocanabinólico (THCA) – THC em sua forma ácida. Ao contrário do THC, esse canabinoide não apresenta efeitos psicoativos importantes, sendo, portanto, uma opção de relevante perfil de segurança.
Entre as propriedades já evidenciadas, destaca-se o que releva esta pesquisa sobre como o THCA pode melhorar substancialmente os sintomas da síndrome metabólica associada à obesidade e inflamação, prevenindo a esteatose hepática, adipogênese e a infiltração de macrófagos nos tecidos adiposos.
>> Leia a pesquisa completa em: Tetrahydrocannabinolic acid A (THCA-A) reduces adiposity and prevents metabolic disease caused by diet-induced obesity.
Outros canabinoides, como o canabicromeno (CBC) e o a canabidivarina (CBDV), também são alvos de pesquisas científicas. Acredita-se que o primeiro é capaz de aumentar os níveis dos endocanabinoides naturais do organismo, como a anandamida, relacionada às sensações de bem-estar e felicidade.
Já a forma varínica do CBD, o CBDV, apresenta propriedades bem próximas do CBD e mostra-se potencialmente útil no controle de sintomas neurocomportamentais. É o que releva este estudo que investigou o uso do CBDV na Síndrome de Rett, tanto para tratar as crises convulsivas, quanto para resgatar a performance de memória prejudicada pela doença.
>> Leia o estudo completo em: Chronic treatment with the phytocannabinoid Cannabidivarin (CBDV) rescues behavioural alterations and brain atrophy in a mouse model of Rett syndrome.
Novas descobertas em torno dos canabinoides
A recente descoberta dos heptilfitocanabinoides canabidiforol (CBDP) e Δ9-tetrahidrocanabiforol (Δ9-THCP) acrescentou ao debate uma série de questões relacionadas à abundância desses novos compostos desconhecidos na Cannabis e suas potencialidades medicinais, como mostra esta pesquisa que investigou a presença desses compostos em 49 amostras da planta, representando quatro quimiovariantes diferentes.
>> Leia a pesquisa completa em: The novel heptyl phorolic acid cannabinoids content in different Cannabis sativa L. accessions.
Convém pontuar ainda, as recentes discussões acerca dos canabinoides sintéticos (SCs), tendo em vista que muitas dessas substâncias também são alvos de pesquisas científicas. Um exemplo é esta revisão bibliográfica que investiga o potencial terapêutico de SCs e os eventuais efeitos adversos observados. Neste e em outros estudos, os efeitos adversos foram considerados mais intensos no uso dos canabinoides sintéticos em comparação ao uso dos canabinoides naturais da planta.
>> Leia a revisão completa em: Focus on cannabinoids and synthetic cannabinoids.
Todas essas evidências em torno dos fitocanabinoides deixam claro por que é importante estar atualizado e por dentro do assunto. Embora uma série de propriedades terapêuticas dessas substâncias já tenha sido cientificamente evidenciada – em especial, em relação ao CBD e ao THC – é fundamental ressaltar que uma prática prescritiva assertiva é determinante para alcançar bons resultados.
Isso significa que é necessário basear a terapêutica com medicamentos à base de cannabis nas particularidades de cada quadro clínico e no contexto de cada paciente.
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Referências
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