Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a polifarmácia se caracteriza pelo uso rotineiro e concomitante de quatro ou mais medicamentos por um paciente – com ou sem prescrição médica. O aumento da expectativa de vida é um fator relacionado à prática da polifarmácia, tendo em vista a maior prevalência de doenças crônicas na população com idade mais avançada.
A utilização simultânea de múltiplos medicamentos está associada não só à maior incidência de efeitos colaterais e complicações decorrentes de interações medicamentosas, mas também, a maiores despesas associadas às operações hospitalares e custos na saúde pública em geral.
A incorporação de medicamentos à base de cannabis na prática médica pode ser uma ferramenta valiosa nesse cenário, pois já se sabe cientificamente que os derivados canabinoides reúnem uma série de propriedades terapêuticas capazes de aliviar e manejar uma diversidade de sintomas.
Neste conteúdo, falaremos melhor a respeito de tratamento com Cannabis medicinal, mostrando por que os médicos precisam se atentar para esse arsenal terapêutico para reduzir a polifarmácia e aumentar a qualidade de vida dos seus pacientes.
Polifarmácia no Brasil
Uma pesquisa publicada em 2017 na Revista de Saúde Pública da Universidade de São Paulo mostra que os índices de polifarmácia no Brasil estão mais frequentemente associados à hipertensão arterial, diabetes mellitus, depressão e dor crônica e estão em consonância com os resultados de outras pesquisas nacionais e internacionais sobre o assunto.
Segundo o referido estudo, essas são condições prevalentes no país, sobretudo na população idosa, cujo tratamento pressupõe o uso simultâneo de múltiplos medicamentos. A pesquisa foi conduzida com um total de 9 mil usuários da atenção primária do SUS, abrangendo as cinco regiões brasileiras.
Os resultados mostram que a prevalência de polifarmácia entre os usuários de medicamentos foi de 9,4% na população geral e de 18,1% em idosos acima de 65 anos. As medicações de uso mais comum foram as relacionadas ao aparelho cardiovascular.
Outros medicamentos também foram destaque entre os mais utilizados pelos pacientes de polifarmácia, como amitriptilina, clonazepam, diazepam, fluoxetina e ibuprofeno.
Interessantemente, as condições frequentemente tratadas por esses medicamentos – como transtornos de ansiedade, distúrbios do sono e dor crônica podem apresentar respostas promissoras com cannabis medicinal.
>> Leia a pesquisa completa em: Polifarmácia: uma realidade na atenção primária do Sistema Único de Saúde.
Riscos e custos associados à polifarmácia
Embora o uso de simultâneo de múltiplos medicamentos possa representar uma forma eficaz de controlar e combater algumas doenças, a prática da polifarmácia aumenta a probabilidade de interações medicamentosas e a ocorrência de efeitos adversos nos pacientes. Além disso, em muitos casos, o uso simultâneo de remédios dificulta a adesão e a eficácia dos tratamentos.
Os idosos, por exemplo, são mais suscetíveis à toxicidade e à ação de determinados medicamentos, devido às alterações fisiológicas próprias da idade, como a diminuição das funções metabólicas e a perda de massa muscular.
E são justamente os idosos, o público que mais utiliza a polifarmácia, para o enfrentamento de quadros crônicos como doenças cardiovasculares, pulmonares,, Alzheimer, dor crônica, entre outros.
Reduzir a polifarmácia é uma questão importante não só para promover a saúde da população em larga escala, mas também, para reduzir as despesas relacionadas às operações hospitalares e de saúde pública em geral.
Afinal, quanto maior o número de remédios prescritos, maior o custo para o paciente e maiores as despesas assistenciais, relacionadas inclusive ao tratamento das repercussões advindas dos efeitos adversos associados ao uso de múltiplos medicamentos.
Tratamento com Cannabis medicinal na prática médica
Pesquisas científicas mostram que o Sistema Endocanabinoide está envolvido em uma série de funções no nosso organismo, como controle do apetite, balanço energético, neuroproteção, modulação da dor, respostas inflamatórias diversas, e muitos outros processos fisiológicos.
Por isso, terapêuticas baseadas no Sistema Endocanabinoide, em especial, os derivados canabinoides podem trazer resultados promissores para diversas condições clínicas, configurando um cenário otimista na redução da polifarmácia. E o melhor, resultados aliados à uma baixa ocorrência de efeitos adversos aos pacientes.
O avanço dos estudos sobre o potencial terapêutico dos canabinoides e as recentes resoluções que regulamentam a comercialização de produtos à base de Cannabis no Brasil e no mundo, estão cada vez mais potencializando essa terapêutica na prática médica.
Quer saber mais sobre o uso dos canabinoides na prática médica? Conheça o amplo espectro terapêutico da Cannabis medicinal e veja como os medicamentos à base dessa planta podem amenizar diversos sintomas e quadros clínicos.
Como a Cannabis pode reduzir o uso de medicamentos
Embora o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol) sejam os canabinoides mais conhecidos e pesquisados entre as quimiovariantes da Cannabis, a planta reúne mais de 550 compostos químicos, entre eles flavonoides e terpenos com amplo potencial terapêutico.
Esses compostos atuam em diversos grupos de receptores em nosso organismo, receptores endocanabinoides, opioides, glutamatérgicos, gabaérgicos, dopaminérgicos, acetilcolinérgicos, receptores iônicos de canal transitório, receptores nucleares, dentre outros. Isso confere uma ampla gama de atuação dos derivados canabinoides, na modulação da dor e dos processos inflamatórios, do humor, do ciclo sono-vigília, apetite e balanço energético, dentre outros.
Em conjunto, os diferentes elementos químicos da planta atuam em sinergia para potencializar os resultados terapêuticos e reduzir a ocorrência de possíveis efeitos adversos. Esse processo é chamado de Efeito Entourage ou efeito em comitiva.
Para entender melhor como acontece o Efeito Entourage, acesse este conteúdo e veja como otimizar resultados utilizando os produtos de espectro total.
Já existem estudos relacionando o uso dos derivados canabinoides à redução da polifarmácia, como esta pesquisa norte-americana publicada em 2021 no Journal of Medical Cannabis and Cannabinoids. Esse estudo mostra que a terapêutica à base de Cannabis ajudou a reduzir ou descontinuar por completo o uso de medicamentos em 65% dos pacientes da amostra analisada.
Na pesquisa, foram avaliados 157 participantes (64 homens e 93 mulheres), com idade variando de 21 a 76 anos, que utilizaram cannabis medicinal para tratar ansiedade, estresse e dor. Além de reportarem importante efetividade terapêutica, quando perguntados se a frequência de uso de medicamentos convencionais diminuiu ao longo do tratamento com Cannabis medicinal, 78,3% dos pacientes relataram mudanças em relação ao consumo das medicações OTC (“over the conter”, que são os produtos de venda livre nas farmácias, como analgésicos e anti-inflamatórios diversos).
Como 17% desses pacientes forneceram informações incompletas, alguns resultados não puderam ser categorizados. Após eliminá-los da análise, as conclusões dos autores foram as seguintes:
- 102 pacientes (65%) relataram redução ou descontinuação total de pelo menos uma prescrição ou medicamento OTC;
- 41 pacientes (26%) relataram redução da ingestão de pelo menos uma prescrição ou medicamento OTC;
- 72 pacientes (46%) relataram a interrupção da ingestão de pelo menos uma prescrição ou medicamento OTC;
- 11 pacientes (7%) relataram redução e descontinuação de uma prescrição ou medicamento OTC.
>> Leia a pesquisa completa em: Demographics, Perceptions, and Use of Medical Marijuana among Patients in Florida.
Redução no uso de opioides, benzodiazepínicos e antidepressivos
Outro exemplo onde a Cannabis medicinal trouxe resultados positivos na redução da polifarmácia está nesta pesquisa norte-americana que associa a redução do uso de benzodiazepínicos ao tratamento com canabinoides. O estudo foi realizado com 146 pacientes (idade média de 47 anos, sendo 61% do sexo feminino).
Os resultados mostram que 30,1% dos pacientes descontinuaram o uso de benzodiazepínicos após dois meses fazendo uso de Cannabis medicinal. Após três meses de prescrição de cannabis medicinal, 66 pacientes desse grupo (45,2%) conseguiram descontinuar por completo o uso de benzodiazepínicos.
>> Leia a pesquisa completa em: Reduction of Benzodiazepine Use in Patients Prescribed Medical Cannabis.
Para saber mais sobre Cannabis e benzodiazepínicos, acesse este conteúdo e entenda como os canabinoides ajudam a conter o uso crônico dessas substâncias!
Resultados ainda mais expressivos do impacto da Cannabis medicinal na redução da polifarmácia é em relação ao uso de opioides para o manejo de dores crônicas e oncológicas. A “crise dos opioides” nos Estados Unidos ilustra bem esse cenário, tendo em vista que, num período de 14 anos, o país somou mais de 160 mil mortes devido à sobredosagem dessa classe de medicamentos.
O uso assertivo da Cannabis medicinal tem ajudado a conter essa taxa alarmante. Além de atuarem positivamente no alívio de quadros de dor crônica, os fitocanabinoides CBD e THC funcionam como adjuvantes em estratégias de desmame prescritivo em pacientes que fazem uso crônico de opioides e outros medicamentos psicotrópicos, comumente utilizados em quadros de dor crônica.
Uma pesquisa conduzida em 2020 pela Society of Cannabis Clinicians em Sebastopol, nos Estados Unidos, avaliou 525 pacientes que fizeram uso de canabinoides em combinação com opioides, os quais lhes foram prescritos por pelo menos três meses para tratar dor crônica. Os resultados mostraram que:
- 40% dos pacientes conseguiram interromper por completo o uso de opioides;
- 45% dos pacientes conseguiram diminuir parcialmente o uso de opioides;
- 65% dos pacientes conseguiram sustentar a diminuição na dosagem de opioides por mais de um ano;
- 48% dos pacientes conseguiram reduzir de 40% a 100% o índice de percepção das dores
Além de contribuir para a redução no uso de opioides, a Cannabis medicinal demonstra potencial para reduzir o uso de outras medicações, como os antidepressivos. É o que mostra esta pesquisa que avaliou um questionário de 107 perguntas respondido por 271 usuários de cannabis medicinal.
Os resultados indicaram que os usos medicinais mais comuns foram para tratar quadros de dor crônica e condições de saúde mental. Os achados incluíram o uso de Cannabis como um substituto eficaz para diferentes medicamentos prescritos (63%), com destaque para os opioides (30%), benzodiazepínicos (16%) e antidepressivos (12%).
>> Leia a pesquisa completa em: Medical cannabis access, use, and substitution for prescription opioids and other substances: A survey of authorized medical cannabis patients.
Redução no uso de medicações associadas ao tratamento do câncer
Estudos científicos sinalizam que a Cannabis medicinal pode auxiliar na redução da polifarmácia também no contexto oncológico, funcionando como um valioso adjuvante no combate aos sintomas associados ao câncer.
Um exemplo é esta pesquisa que analisou dados coletados rotineiramente de um programa de tratamento de 2.970 pacientes oncológicos submetidos ao uso de Cannabis medicinal entre 2015 e 2017.
A média de idade desse grupo de pacientes foi de 59,5 anos, sendo 54,6% mulheres. Os tipos de câncer mais frequentes nesta avaliação foram: mama (20,7%), pulmão (13,6%), pâncreas (8,1%) e colorretal (7,9%), sendo 51,2% deles no estágio 4.
Os sintomas mais comuns que necessitavam de tratamento foram: distúrbios do sono, (78,4 %), dor (77,7%, com intensidade média 8/10), fadiga (72,7%), náusea (64,6%) e falta de apetite (48,9%).
Após seis meses do experimento, 902 pacientes (24,9%) morreram e 682 (18,8%) interromperam o tratamento. Dos 1.211 (60,6%) restantes, 95,9% relataram melhora em sua condição clínica, 3,7% não relataram alteração e 0,3% relataram piora no quadro.
Os autores concluíram que a Cannabis medicinal em pacientes com câncer em cuidados paliativos demonstra ser eficaz, segura e bem tolerada no manejo dos sintomas relacionados à malignidade dos tumores.
>> Leia a pesquisa completa em: Prospective analysis of safety and efficacy of medical cannabis in large unselected population of patients with câncer.
Redução nos custos assistenciais em saúde
Este estudo conduzido por pesquisadores norte-americanos mostrou ainda que a legalização da Cannabis medicinal no país pode contribuir também para a redução de custos assistenciais em saúde.
A análise incluiu dados de todas as prescrições de pacientes inscritos no Medicare Part D de 2010 a 2013. O Medicare Parte D é um programa do governo federal dos Estados Unidos que auxilia os beneficiários a pagar por medicamentos prescritos.
Os resultados da pesquisa estimam que os custos relacionados às prescrições do Medicare caíram US$ 165,2 milhões em 2013, considerando-se o uso da Cannabis como alternativa terapêutica para uma série de medicações convencionais.
>> Leia o estudo completo em: Medical Marijuana Laws Reduce Prescription Medication Use In Medicare Part D.
Vantagens da desprescrição
A desprescrição é uma das estratégias mais utilizadas para reduzir a polifarmácia e, consequentemente, os riscos associados a essa prática. Trata-se do processo de identificar e descontinuar o uso de medicamentos desnecessários, ineficazes, inseguros ou potencialmente inadequados para os pacientes.
A desprescrição requer uma estreita relação médico-paciente para avaliar o custo-benefício envolvido no uso de cada medicação, isto é, o quanto o paciente realmente pode se beneficiar daquele medicamento para que seja de fato vantajoso recorrer à polifarmácia.
Este estudo norte-americano publicado em 2018 no periódico científico Support Care Cancer mostra como 73% de medicamentos identificados como potencialmente inapropriados foram desprescritos e melhores resultados terapêuticos foram alcançados.
A pesquisa foi conduzida com 26 pacientes idosos portadores de câncer, os quais utilizavam uma média de 12 medicamentos diariamente.
Os pesquisadores fizeram a avaliação de polifarmácia com base nos Critérios de Beers e em outras três ferramentas de triagem. Os Critérios de Beers compõem uma lista dos medicamentos que são considerados inapropriados e/ou pouco seguros para os idosos.
De forma geral, fazem parte desse grupo medicações que demandam atenção quanto às interações com outras substâncias, medicações que devem ser evitadas em contextos específicos e medicações que precisam ter a dosagem ajustada conforme a função renal do paciente.
Pelos Critérios de Beers, foram identificados 38 medicamentos potencialmente inapropriados no referido estudo. As demais ferramentas identificaram 119 medicamentos potencialmente inapropriados.
Isso significa uma média de 5 medicamentos potencialmente inapropriados por paciente.
Após essa avaliação, 73% dessas medicações foram desprescritas, resultando em uma média de 3 medicações desprescritas por paciente.
Cerca de dois terços dos pacientes relataram redução dos sintomas apenas com a desprescrição. Os resultados apontaram ainda que, em relação às despesas de saúde, houve uma redução média de 4.282,27 dólares por paciente, considerando-se o período de captação dos dados para a realização da pesquisa, que foi de agosto de 2015 a abril de 2016.
>> Leia a pesquisa completa em: Pharmacist-led medication assessment and deprescribing intervention for older adults with cancer and polypharmacy: a pilot study.
Por que os médicos precisam se atualizar sobre tratamento com Cannabis?
As comprovações científicas em torno das propriedades terapêuticas da Cannabis vêm impulsionando a quebra de paradigma sobre o uso medicinal da planta. Atualmente, o PubMed reúne milhares artigos sobre o tema, os quais trazem resultados promissores envolvendo tratamentos com Cannabis.
Já existem evidências científicas apontando resultados positivos para uma série de doenças, que vão desde dores crônicas a transtornos psiquiátricos. Quanto mais as pesquisas evoluem, mais a comunidade médica percebe a necessidade para se preparar para esse cenário.
Como vimos, é possível reduzir a polifarmácia através de terapêuticas à base de Cannabis. Porém, é importante ressaltar que, para incorporar a Cannabis Medicinal com segurança e assertividade em sua prática prescritiva, os médicos precisam de educação tecnicamente qualificada na área.
A WeCann Academy ajuda você a se preparar para esse cenário. Conectamos referências nacionais e internacionais em uma comunidade global de estudos e pesquisas em Medicina Endocanabinoide, para unir conhecimento científico e experiência prática na área.
Quer fazer parte da nossa comunidade? Entre em contato conosco e saiba mais a respeito!
Referências
Bar-Lev Schleider L, Mechoulam R, Lederman V, Hilou M, Lencovsky O, Betzalel O, Shbiro L, Novack V. Prospective analysis of safety and efficacy of medical cannabis in large unselected population of patients with cancer. Eur J Intern Med. 2018.
Bradford AC, Bradford WD. Medical Marijuana Laws Reduce Prescription Medication Use In Medicare Part D. Health Aff (Millwood). 2016.
Lucas P, Walsh Z. Medical cannabis access, use, and substitution for prescription opioids and other substances: A survey of authorized medical cannabis patients. Int J Drug Policy. 2017.
Nascimento RC, et. al. Polifarmácia: uma realidade na atenção primária do Sistema Único de Saúde. Rev. Saúde Pública vol. 51 (Sup. 2) São Paulo. 2017.
Purcell C, Davis A, Moolman N, Taylor SM. Reduction of Benzodiazepine Use in Patients Prescribed Medical Cannabis. Cannabis Cannabinoid Res. 2019
Rosenthal MS, Pipitone RN. Demographics, Perceptions, and Use of Medical Marijuana among Patients in Florida. Med Cannabis Cannabinoids. 2020.
Whitman A, DeGregory K, Morris A, Mohile S, Ramsdale E. Pharmacist-led medication assessment and deprescribing intervention for older adults with cancer and polypharmacy: a pilot study. Support Care Cancer. 2018.